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Prédica: Hebreus 5.7-9
Leituras: Jeremias 31.31-34 e João 12.20-33
Autor: Werner Fuchs
Data Litúrgica: 5º Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 06/04/2003
Proclamar Libertação – Volume: XXVIII
 

Pregue sempre o Evangelho.
Se necessário, use palavras…

                         Francisco de Assis

1. Reflexão

Concordo com as considerações de Valdemar Gaede sobre o método de abordagem de Hebreus 5.7-9. Ele não parte do geral, mas do concreto. Fala-se do Cristo a partir de Jesus. Temos, portanto, neste texto, evidências claras de uma teologia primitiva, ainda livre daquele jeito de produção teológica que veio a dominar na história do cristianismo. É teologia popular, ligada à realidade da carne, das lágrimas, dos gritos, dos sofrimentos. O texto tem cheiro de chão, de gente (p. 126s.). Em nossa situação eclesiástica de grande déficit cristológico (o qual dá espaço para diversos desvios e desmandos: personalismo, autoritarismo, sacramental ismo, passividade, ou ativismo e carismatismo), essa leitura que valoriza a vida toda de Jesus traz o Evangelho de volta ao chão da realidade. Também a igreja-povo (com suas alegrias e seus clamores) precisa voltar a ser o lugar do fazer teológico.

O contexto de Hb 5.7-9: após mostrar que Jesus é superior a Moisés (cap. 3) e Josué (cap. 4), a partir de Hb 4.10ss., o autor o compara com Arão. Jesus é superior, porque seu sacrifício é de uma vez por todas (Hb 7.27) e perpétuo (Hb 7.24). Também existe um crescendo: Jesus é o Sumo Sacerdote (Hb 3.1), o Sumo Sacerdote fiel (Hb 2.17), o grande Sumo Sacerdote (Hb 4.14), e finalmente o Sumo Sacerdote segundo a ordem divina e eterna de Melquisedeque (Hb 5.10). Esta observação é importante para compreender melhor o sentido do v. 9 dentro da simbologia concreta de Hebreus (cf. exposto abaixo, no ponto 2, referente à pregação).

A atuação do sumo sacerdote envolve os aspectos da solidariedade no sofrimento humano (Hb 5.1), sem buscar glória própria (v. 5), e da oferenda de sacrifício (v. 7). Este segundo aspecto traz em si a mudança qualitativa. Não é o clamor em si, mas o clamor direcionado a Deus que gera salvação. Jesus apresentou, ofertou seu grito a Deus.

Quanto à aparente contradição (Vanhoye, p. 63, fala de forma paradoxal de atendimento) entre Jesus suplicar a Deus que o podia livrar da morte e que o ouviu = atendeu (v. 7), porém de fato não o livrou da morte, Laubach constata (p. 89): O atendimento da oração de Jesus (…) consistiu em força para sofrer, em superação do temor da morte, e não na reversão do caminho para a morte (cf. 2 Co 12.8,9). O atendimento da oração não libertou nem o próprio Filho de Deus da obediência frente ao Pai. Essa obediência não foi ganha sem esforço, mas ele a aprendeu exercitando-a no sofrimento. Também o Filho de Deus teve de aprender a obedecer. Essa obediência levou-o à paixão -até à morte de cruz (Fp 2.8). O próprio Jesus entendeu seu itinerário na terra como obediência perfeita. Afirmou: 'Eu nada posso fazer de mim mesmo […] porque não procuro a minha própria vontade, e sim a daquele que me enviou' (Jo 5.30). Por ter comprovado a obediência perfeita também no sofrimento, Jesus pode ordenar com autoridade divina a seus discípulos: 'aprendei de mim' (Mt 11.29).

A importância da vida toda de Jesus para a sua obra de salvação e para a nova aliança também aparece nas leituras complementares. Em João 12.31, Jesus afirma, no término de sua atividade pública: Agora é o julgamento deste mundo. Agora o príncipe deste mundo será lançado fora (TEB). Jesus já o derrotou. Ademais, Jeremias 31.31-34 insere Hb 5.7-9 dentro da perspectiva da nova aliança, inclusive para não-judeus, o que excede a antiga aliança. Berger (p. 203) observa a dificuldade de que nem o Antigo Testamento nem o judaísmo conhecem a idéia de uma aliança, ou de uma renovação da antiga aliança, associada ao Messias. Por isso, o cristianismo teve de fazer uma grande elaboração teológica. Berger comenta (p. 194s.): Com base apenas em Êxodo 24 provavelmente seria difícil construir uma abertura da aliança para os gentios. Isso muda quando olhamos para Jeremias 31.31-34, a passagem clássica para a 'Nova Aliança'. Aqui consta: (…) todos, pequenos e grandes, me conhecerão (…). Eu perdoo o seu crime (…) Existe uma relação interna entre aliança e perdão dos pecados. A carta aos Hebreus tinha motivos para citar diversas vezes essa passagem (Hebreus 8.8-12 e 10.16) (…). (A Nova Aliança) consiste essencialmente na libertação do pecado. Ademais se podia relacionar aos gentios a frase todos me conhecerão.

2. Pregação

A pregação, cujo esboço é apresentado a seguir, foi realizada em duas oportunidades (fora da época quaresmal, o que explica o destaque ao tema aprender). Na segunda, foi precedida por uma pequena dinâmica, ou brincadeira santa, a saber: empilhar mãos.

a) Motivação: existem verdades que aprendemos somente quando as fazemos, e não quando ouvimos outros ensiná-las. Os presentes são convidados a lembrar os tempos de criança. Devem formar grupos de 4 pessoas e, usando o encosto dos bancos da igreja (ou as costas de uma quinta pessoa, que se inclina, com as mãos apoiadas nos joelhos) empilhar alternadamente as mãos. Na primeira fase, a mão que está embaixo precisa ser tirada e colocada em cima da pilha de mãos, e assim por diante, num ritmo cada vez mais rápido. Risadas são permitidas. Num segundo momento, inverte-se o movimento. A mão de cima precisa ser colocada embaixo da pilha, e assim sucessivamente e cada vez mais rápido. O grupo que erra precisa recomeçar. Alguns grupos descobrem antes dos outros o segredo da segunda fase e são convidados a explicá-lo. Todos podem comentar a experiência. Na primeira fase, aparentemente mais fácil, cada um cuida apenas de suas mãos e, chegando na vez, as larga de qualquer jeito, com força, em cima da pilha: individualismo. Na segunda, é preciso erguer um pouco as mãos, não fazer peso nas mãos dos outros, para que o outro possa colocar a mão debaixo da pilha: cooperação, união, socialismo. Com um pouco de concentração (sensibilidade), essa fase é tão fácil quanto a primeira. Nem se precisa mais do apoio, das costas da quinta pessoa. Versículo bíblico: Submetei-vos uns aos outros, no temor de Cristo (Efésios 5.21). É o título para as exortações seguintes da carta, acerca do bom relacionamento entre marido e mulher, mas vale também em geral. Segredo: não fazer peso um sobre o outro, ter sensibilidade para a necessidade do outro, aliviar as cargas uns dos outros. Informação: o lugar vivencial das exortações com uns aos outros (Jo 13.14; Rm 1.12; 12.10; 15.7,14; 16.16; l Co 11.33; Gl 5.13; 6.2; Fp 2.3; l Ts 3.12; 4.18; Hb 10; 24; Tg 4.11; 5.9,16; l Pé 4.9; 5.5) é o pequeno grupo, a igreja caseira, onde podia ser praticada a comunhão e o partir do pão (socialismo).

b) Aproximando-nos de Hebreus 5.7-9: por que existem tantas exortações na Bíblia? Exemplos. Por que são dirigidas justamente a cristãos, e não a descrentes? Por que a pessoa que aceita Jesus, que tem nova vida em Cristo, que tem o Espírito Santo, não vive automaticamente a vida cristã? Por que precisamos de puxões de orelha, incentivos, empurrões? Tanto para ficar firmes na fé (p. ex., Hb 12.Is.) quanto para viver o amor ao próximo (p. ex., Hb 13.1ss.)? Respostas: continuamos falhos, humanos. Quando compramos um novo dei rodoméstico precisamos seguir as instruções do manual. Quem ganha um carro zero quilômetro nem por isso pode deixar de obedecer iis leis de trânsito. Mas essas explicações ainda são um tanto superficiais. Será que respondem de fato ao por quê?

Uma resposta inicial mais profunda: o Espírito Santo conduz a vida do cristão justamente assim: ensinando. Ele nos é dado como penhor (2 Co 1.22; 5.5; Ef 1.14), como sinal de negócio fechado, ao qual precisam seguir-se as outras prestações, a santificação. Ele convence-nos do pecado. Quem não crê tende a ignorar ou negar sua culpa, ou desculpar-se. O Espírito Santo nos convence do pecado (do nosso e do da sociedade, p. ex., das injustiças). Ele sensibiliza-nos. E o grande Ensinador (HPD 85). Vivemos a vida de fé quando constantemente aprendemos a vivê-la.

Mais profundo ainda: Embora sendo Filho, Jesus aprendeu (…) (v. 8). Como assim? Até Jesus? Se ele precisou aprender, quanto mais nós. Aprendeu a obediência. Aprendeu na prática o que significa ser fiel à proposta de Deus, ao reino. A carta aos Hebreus, muitas vezes considerada difícil e complexa, na verdade, é muito concreta. Fala da vida. Entra na vida. Jesus, nos dias da sua carne (v. 7), quando foi realmente humano, deixando a condição de Filho para ser escravo (cf. Fp 2.5ss.). Isso abrange toda a sua trajetória do natal até a Páscoa (não concentrar toda a importância na cruz e ressurreição). Aprendeu a obediência pelo que sofreu.

Sofrimento, dor, aflição: Por um lado, é verdade que Deus leva a sério e se compadece de todos os que sofrem, mas é preciso distinguir três tipos de sofrimento:

a) Sofrimento na luta por vida: contra doenças, males da velhice, falta de sentido. Viver é lutar pela vida.

b) Sofrimento por burrice, por rejeitar bons conselhos, por negligência, teimosia, etc. Acabamos pagando plos próprios erros. Sofremos até com nossos erros no computador, ou quando com o carro zero desobedecemos às leis de trânsito. O trágico é que outros sofrem as consequências também, inocente e injustamente.

c) Sofrimento por amor, por dedicação, por fidelidade a uma proposta, por obediência ao projeto de Deus. Foi deste terceiro tipo o sofrimento de Jesus. Forte clamor, lágrimas, orações, súplicas (Getsêmani, Lc 22). Sofreu por opção. Mas será que foi voluntário? O livre arbítrio é algo complicado. Do contrário, por que tanta martelada para sermos solidários, como, p. ex., em Hebreus 13.3? Jesus teve de submeter a sua vontade (de fugir, de reagir com violência aos perseguidores) à vontade de Deus. Sua obediência mostra-se justamente no fato de que, em suas súplicas, não excluiu os sofrimentos da vida real (da carne) e da morte real. Nunca fugiu do sofrimento solidário. Por causa dessa piedade, isto é, do temor e da fidelidade a Deus, ele foi atendido. Não gritou por gritar, mas ofereceu seu clamor, lágrimas, etc. a Deus, isto é, sacrificou-lhe tudo.

Depois de aprender a obedecer, a entregar e ofertar tudo na luta pela vida plena, foi aperfeiçoado (v. 9). Segundo a carta aos Hebreus (sobretudo Hb 9.1 Iss.), isso significa que Jesus foi aceito no santuário celestial como Sumo Sacerdote, purificando-o com seu próprio sangue, para possibilitar ali a verdadeira adoração. Simultaneamente, na terra, purifica nossas consciências (Hb 9.14; segundo o nosso texto, torna-se autor da salvação eterna para os que lhe obedecem). Ou seja, livra-nos do peso da culpa e nos inclui na caminhada da igreja, do povo de Deus. Mesmo cometendo pecados, não somos esmagados por eles, mas perdoados. Podemos seguir aprendendo confiantes. Isso é motivo para ofertar louvor, no meio do povo de Deus.

Resumindo, aprendemos a: a) não desviar o olhar de Jesus na carne quando estamos envolvidos pela nossa realidade concreta, pessoal, social, económica, política; b) não negar a proposta de Deus, de lutar solidariamente pela vida digna, ainda que isto implique sofrimento; c) como aprendemos? Agindo, tornando-nos solidários. Não através de aulas sobre o evangelho. Ele é feito muito mais de gestos, atitudes, engajamento e dedicação solidária. Quando necessário, usamos também palavras. Como consta no final do cap. 5: é pela prática que a comida sólida da palavra da justiça aguça nossas faculdades de discernimento não somente do bem, mas também das estruturas do mal (Hb5.14)!

Bibliografia

BERGER, Klaus. Wozu ist Jesus am Kreuz gestorben? Gütersloh, 2001 (a ser lançado em português por Edições Loyola, São Paulo).
GAEDE, Valdemar. Auxílio Homilético sobre Hebreus 5.7-9. In: KILPP, Nelson; WESTHELLE, Vítor (Coords.). Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1990. v. 16, p. 125-128.
LAUBACH, Fritz. Carta aos Hebreus. Curitiba: Esperança, 2000 (Comentário Esperança)
VANHOYE, Albert. A mensagem da Epístola aos Hebreus. São Paulo: Paulinas, 1983.

Proclamar Libertação 28
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia