Prédica: Marcos 15.1-15(16-20)
Leituras: Zacarias 9.910 e Filipenses 2.5-11
Autor: Valdemar Lückemeyer
Data Litúrgica: Domingo da Paixão (Ramos)
Data da Pregação: 13/04/2003
Proclamar Libertação – Volume: XXVIII
l. Preliminares
Proponho a reflexão sobre os v. 1-20, visto que os v. 16-20 destacam e detalham o que já havia sido mencionado nos versículos anteriores, contendo as mesmas ênfases.
O texto já foi estudado em PL XVI por Valdemar Witter (p. 129-133). Recomendo a leitura deste estudo e, em parte, retomo alguns aspectos.
O Domingo de Ramos não tem recebido entre nós, nas comunidades evangélicas luteranas, o mesmo destaque e a mesma valorização como, p. ex., na Igreja Católica. No entanto, dentro do ano eclesiástico, é um domingo especial, com sua mensagem específica. É o domingo que aponta para o novo rei e seu reinado.
As duas leituras bíblicas indicadas para este domingo enfatizam a temática da realeza deste rei aguardado. Zacarias anuncia: Alegra-te, eis aí vem o teu Rei (v. 9) e Filipenses aponta para a postura do Rei: A si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo (v. 7).
Por que não usar símbolos neste domingo? Não sei até que ponto os ramos atualmente ainda ajudam a lembrar a recepção do rei. Que outro símbolo pode ser usado para apontar para a realeza, para o senhorio, para a autoridade deste rei? Bandeiras, bandeirolas, faixas? Ademais, como não temos entre nós a figura do rei, pouco sabemos a respeito dos símbolos que melhor caracterizam e identificam um rei!
O Domingo de Ramos, em todos os casos, é um domingo especial para a maioria da população. Ele é conhecido e é importante, pois inicia a semana mais marcante na vida de fé da nossa gente. Por isso, entre outras coisas, é tão importante trabalhar em toda a celebração deste domingo, no culto todo, a tensão entre as duas (ou mais) compreensões da autoridade, do poder deste rei!
Hinos, orações, leituras, pregação, enfim toda a celebração deve trabalhar essa tensão.
2. Observações exegéticas
O nosso texto apresenta uma estrutura clara:
* v. l – ligação com o texto anterior, transição
* v. 2-5 – discussão sobre a realeza de Jesus
* v. 6-15 – a escolha entre Jesus e Barrabás
* v. 16-20 – a cena do ultraje, da zombaria.
V 1: os membros do Sinédrio, a mais alta autoridade judaica, reúnem-se de manhã bem cedo para oficializar e encaminhar a decisão tomada na noite anterior (14.53-65) e entregam Jesus à autoridade secular, no caso, uma autoridade romana. Pilatos, mencionado aqui pela primeira vez, é o procurador romano da Judéia nos anos 26 a 36. Historiadores descrevem-no como um déspota muito cruel.
Jesus foi entregado a Pilatos, isto é, foi apresentado ao tribunal para ser julgado. Interessante observar como o evangelista Marcos usa repetidamente o termo entregar e lhe dá um significado profundo: O Filho do homem será entregue nas mãos dos pecadores (9.31, 10 33 e 14.41).
V 2: o interrogatório é rápido, curto, sem determinação de local ou outros detalhes. A acusação/pergunta surge de repente: o evangelista nunca usou a expressão rei dos judeus antes! Está claro o paralelismo que há entre os dois interrogatórios de 14.53-65 e 15.1-20 (diante do Sinédrio e agora diante de Pilatos): naquele perguntam se ele é o Cristo e neste lhe é perguntado se é o rei dos judeus? Líder religioso ou líder político?
Tu o dizes é a resposta ambivalente, ambígua de Jesus. Marcos quer destacar que o interrogado é rei, mas não na compreensão de Pilatos. O próprio Pilatos não entenderia, se Jesus lhe explicasse!
V 3-5: os sacerdotes acusam Jesus de muitas coisas. Certamente são acusações genéricas, não explicadas pelo evangelista. Toda a atuação (palavras e atitudes) de Jesus foi incómoda para as autoridades. O silêncio do acusado mexe profundamente com Pilatos. Ele fica admirado, silencioso. Uma alusão ao Servo de Javé, com certeza (Is 52.13-15), pois diante dele nações numerosas ficarão estupefatas e reis permanecerão silenciosos.
V 6-7: não há registro histórico de que, nas grandes festas religiosas, tenha havido anistia para presos. Em todos os casos, o evangelista destaca que, no dia em que se festeja a libertação do povo da escravidão do Egito, liberta-se um prisioneiro. Barrabás é um preso político, preso por sua ação revolucionária. Ele participou de um motim, durante o qual houve morte.
V. 8-13: a multidão é um personagem central neste processo de acusação, de interrogatório, de silêncio, de admiração. A multidão assume diversas posturas, inclusive antagônicas entre si! Num momento, está ao lado de Jesus e o recebe com gritos de hosana (11.9) e, em outro, volta-se contra ele, ao gritar crucifica-o (v. 13). A multidão não é única, não é sempre a mesma, não é compacta e também não é autônoma. Ela transforma-se com facilidade em instrumento, do qual outros se valem!
Pilatos percebe a inocência de Jesus, ao constatar que este lhe fora entregue por inveja. A causa de todo esse ressentimento não é mencionada. Pilatos insiste na inocência de Jesus, mas acaba fazendo jogo duplo: serve a dois senhores. Por um lado, quer inocentar a Jesus, mas acaba fazendo o que a multidão quer (multidão usada agora pelas autoridades religiosas!). Pilatos não pensa na justiça; ele pensa em si, no seu privilégio.
V. 15: a flagelação de Jesus não é descrita, apenas mencionada. Mas os quatro evangelhos a mencionam. Ela faz parte do terceiro anúncio da paixão: O Filho do homem será entregue (…), o açoitarão e o matarão (10.33s.). Há vários relatos históricos que ressaltam a crueldade da flagelação. Por que Pilatos ordenou que Jesus fosse açoitado? Para encaminhá-lo à cruz ou apenas para satisfazer a multidão?
V. 16-20: o processo de Jesus termina com uma nova manifestação de zombaria e gozação, agora sem a multidão, mas com a participação dos soldados. A humilhação de Jesus é um espetáculo público. Além da humilhação e da zombaria, o desprezo é manifesto: cuspir em alguém é expressão clara e forte de desprezo! O rei não tem coroa (só de espinhos), nem cetro, nem povo que se prostre diante dele!
3. Meditação
Salve, rei dos judeus: esta é a acusação!
Um rei burlesco, por conseguinte. Um rei que faz rir. Mas aquilo que faz rir o não crente, comove e fascina o crente. Do seu ponto de observação privilegiado , o leitor fiel sabe que 'ridicularizaram alguém que é rei de verdade'. Aquilo que é feito a Jesus no escárnio, lhe cabe verdadeiramente. Mas somente quem crê descobre a majestade de Jesus (Maggioni, p. 237).
A grandeza, o senhorio, a realeza de Jesus lhe é conferida por sua obediência, por sua humildade diante de Deus. Ele ensinou, pregou, vivenciou o que significa ser grande: servir! Ele faz-se servidor, mostra-se aos discípulos e lhes ensina a imitá-lo ao despojar-se de todo poder, de toda autoridade, de toda glória. E é justamente no caminho para a cruz que se revela o novo rei.
Não é por acaso que o título de rei apareça unicamente no contexto da Paixão, até mesmo sobre a cruz, lá onde não existe mais nenhum espaço para atribuir à realeza de Jesus qualquer semelhança com a realeza mundana. Somente se o despojarmos de tudo o que comumente afirma, podemos atribuir a Jesus o título de rei. A Paixão e a cruz não são simplesmente o caminho que conduziu Jesus à realeza (assim, muitas vezes, se pensa), mas somente o lugar onde ela pôde revelar-se plenamente na sua surpreendente novidade. (Maggioni, p. 238).
És tu o rei? é a pergunta da autoridade secular, que, no entanto, não se sente ameaçada por Jesus. Quem se sente ameaçada é a autoridade religiosa, e é justamente ela que o acusa, que o leva a Pilatos. A resposta de Jesus a Pilatos é a resposta dirigida aos líderes religiosos; a resposta é teológica.
Os relatos da paixão tem, como se sabe, muita semelhança em Iodos os evangelistas. No entanto, Marcos destaca nitidamente a sua lese do segredo ou mistério messiânico em todo o relato da paixão. Marcos desenvolveu o esquema: revelação da messianidade aos discípulos, com ordem de manter silêncio e incompreensão até a glorificação de Jesus. Com o auxílio desse esquema, Marcos criou o género 'Evangelho', acentuando para todo o leitor: se alguém reconhecer a Jesus Cristo como o prometido, esse fato não é descoberta sua, mas dádiva. (Leonhard Goppelt, p. 193).
4. Pistas para a prédica
a) O Domingo de Ramos tem um destaque na tradição do ano eclesiástico. Como atualizá-lo para os ouvintes, aos participantes do culto? Em nossos dias, as autoridades são recebidas com buzinaços, faixas, foguetes. Um desfile, uma carreata pelas principais ruas não seria um bom símbolo para expressar nossa vontade de nos preparar para receber o rei?
A comunidade celebra o início da semana santa e se prepara para engrandecer e louvar o seu rei, a sua autoridade maior, aquele que determina a vida em todos os seus níveis e em toda a sua abrangência. Que autoridade é esta, que senhor é este, que é preso, caluniado, maltratado?
b) Por que a postura de Jesus é questionada? Por que as autoridades sentem-se questionadas diante do Evangelho, diante da Palavra, da obra de Jesus? Grande e importante é quem serve! Autoridade só é boa quando exercida em favor, em benefício da pessoa. Dar-se, doar-se: eis a postura realmente nobre, real.
c) A realeza de Jesus está justamente na sua postura de total esvaziamento de autoridade – e ele o fez para que Deus pudesse agir. Um novo conceito de rei, de autoridade e, ao mesmo tempo, evidencia de total obediência ao plano de Deus. Ele é o Servo de Deus, através de quem Deus revela o seu poder, o seu plano, a sua vontade para com toda a humanidade.
Eles queriam um grande rei, que fosse forte e dominador. E por Isso não creram nele e mataram o Salvador (estribilho do hino Eles queriam um grande rei).
d) O acusado e condenado é mesmo o Rei, o Rei dos reis, o Deus-conosco. Nele, Deus se escondeu e se manifestou. Queremos, como sua igreja, seguir hoje o seu caminho de obediência e de humildade.
Bibliografia
DORMEYER, Detlev. Der Sinn des Leidens Jesu. Stuttgart: Katholisches Bibelwerk, 1979. p. 63ss.
GOPPELT Leonhard. Teologia do Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1976. v. 1. .
MAGGIONI, Bruno. Os relatos evangélicos da Paixão. São Paulo: Paulinas, 2000.
SCHNACKENBURG, Rudolf. O Evangelho segundo Marcos: 2a. parte. Petrópolis: Vozes, 1974. p. 287ss.
Proclamar Libertação 28
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia