Prédica: Marcos 14.12-26
Leituras: Êxodo 24.3-11 e I Coríntios 10.16-17 (18-21)
Autor: Wanda Deifelt
Data Litúrgica: Quinta-feira da Paixão
Data da Pregação: 17/04/2003
Proclamar Libertação – Volume: XXVIII
1. Introdução
O texto de Marcos 14.12-26 já foi trabalhado, integral ou parcialmente, em outras edições do Proclamar Libertação (nos volumes VI, XVI, XXII). Em todos os auxílios há análise exegética, reflexão teológica e propostas para pregação. Para não repetir as ótimas colocações feitas anteriormente, tratarei de três vertentes específicas: o processo traditivo envolvendo a páscoa, a páscoa celebrada por Jesus e a teologia da ceia. Cada um destes tópicos corresponde a uma das subdivisões da perícope e permite correlação com os outros dois textos previstos para este dia (Êxodo 24.3-11 e l Coríntios 10.1-16)
O texto está dividido em três grandes blocos. O primeiro bloco (versículos 12-16) mostra o preparo da páscoa judaica. Esta parte do texto indica que Jesus e seus discípulos eram seguidores das práticas do judaísmo e que a páscoa já era uma festa celebrada muito antes do cristianismo. A segunda parte (versículos 17-21) é o anúncio da traição durante a refeição. Jesus não nomeia seu traidor, mas deixa entrever que é um dos discípulos. Já o último segmento (versículos 22-26) con-tém a celebração da ceia, com as palavras de instituição.
2. Havia uma páscoa antes de Jesus?
Lemos o texto de Marcos 14.12-26 a partir de uma perspectiva atual, cristã. O seu uso está previsto, dentro do calendário eclesiástico, para a quinta-feira santa. Fazemos toda interpretação dos acontecimentos da páscoa já pensando na perseguição, crucificação, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Vislumbramos o que vem depois do texto, mas não necessariamente o que vem antes dele. Lemos o texto a partir da experiência da comunidade de fé seguidora dos ensinamentos de Jesus Cristo, com os olhos da comunidade para a qual o evangelista Marcos escrevia. Mas a páscoa era uma tradição judaica.
Isto pode soar estranho para muitas pessoas. A simples constatação que Jesus não era cristão, mas judeu, que seguia preceitos judaicos, que celebrava festas judaicas, mostra que a páscoa, na verdade, tem uma tradição riquíssima, à qual foram se sobrepondo novos elementos. O v. 12 parece estar falando para uma comunidade que não tem raízes no judaísmo; por isso, explica quais eram os procedimentos para comer a páscoa: no primeiro dia dos pães asmos, quando se fazia o sacrifício do cordeiro pascal, disseram-lhe seus discípulos: onde queres que vamos fazer os preparativos para comeres a páscoa?
No texto de Êxodo 24.11, há uma referência importante sobre a origem da celebração da páscoa entre os judeus: Ele não estendeu a mão sobre os escolhidos dos filhos de Israel. Páscoa, Pessach, é o passar adiante, quando Deus poupa seu povo do poder destruidor. Trata-se da memória da saída do Egito, como demonstra um texto paralelo: É o sacrifício da páscoa ao Senhor que passou por cima das casas dos filhos de Israel no Egito, quando feriu os egípcios e livrou as nossas casas. (Êxodo 12.27) Por causa disto, é feito o sacrifício de um cordeiro sem defeito, macho, de um ano.
A páscoa acontece no mês nisan (corresponde ao mês de março ou abril em nosso calendário). Os preparativos começam no dia 10, com a escolha de um cordeiro para cada família. Se a família é pequena, deve-se convidar o vizinho para a ceia. No dia 14, ao pôr do sol, o cordeiro é sacrificado. O texto de Êxodo 12, em que Moisés institui a páscoa para os judeus, mostra a preocupação com o ritual: o cordeiro (ou cabrito) deve ser imolado com o povo reunido, o sangue utilizado para pintar os marcos das portas, a carne deve ser assada (nada deve ser comido cru ou cozido em água) – cabeça, pernas e vísceras incluídas – e toda carne deve ser comida nesta noite, acompanhada de pães sem fermento e ervas amargas. Este memorial lembra a saída, às pressas do Egito. Por isto, deve-se comer a páscoa vestido para viagem: cintos na cintura, sandálias aos pés, cajado na mão.
No texto de Marcos 14.12, há referência a que o sacrifício do cordeiro coincide com o primeiro dia dos pães asmos. 'lambem aqui o texto de Êxodo 12 ajuda a entender a tradição envolvendo a celebração da páscoa judaica a partir dos preceitos ditados por Moisés. Por sete dias, a contar do dia 14 do mês nisan, não se comerá pão com fermento. Qualquer pessoa que comer coisa levedada será eliminada de Israel. Também este é um memorial do dia em que Deus tirou o povo do Egito. Os pães não-levedados são uma lembrança da pressa com que o povo saiu, pois não houve tempo de esperar que o pão fosse preparado devidamente.
É importe observar, no entanto, que, no judaísmo, a páscoa tem duas vertentes fortes que precedem a descrição da páscoa por Moisés. Primeiro, a páscoa é uma festa pastoril, particularmente de pastores semi-nômades, quando estes saíam à procura de outros campos de pastagem para seus rebanhos. Isto se dava no final do período das chuvas, entre os meses de março e abril. Como esta também era a época do início da colheita do cereal, os campos ofereciam palha para ali montar os animais. Buscando estes recursos, os pastores migravam anualmente. Assim, o rito da páscoa era celebrado na mudança de acampamento, quando o cordeiro imolado deveria ser consumido com toda grande família ou clã. As estacas das tendas eram pintadas com o sangue, para evitar que o poder destruidor atingisse os viajantes e que ludo corresse bem. Comia-se o cordeiro com traje de viagem: cinto na cintura, sandálias nos pés, cajado na mão.
Segundo, a tradição dos pães asmos era uma festa de agricultores. Era a primeira do ano, celebrando o início da colheita de cevada (entre os meses de março e abril). O rito prescrito era comer pão novo e, portanto, sem a levedura tirada da massa do pão anterior. Conseguia-se levedura guardando um pouco da massa do pão para ser utilizada no próximo. Como se tratava de pão novo, ele não poderia ser misturado com a massa do pão velho. Portanto, ele não tinha fermento. O velho e o novo não podiam ser colocados juntos (não se pode armazenar a colheita nova com a velha). No início, tratava-se somente da celebração de um dia, mas com o tempo foi instituído que pães asmos deveriam ser comidos por sete dias. Assim também a proibição de ter fermento em casa.
A junção destas duas celebrações – a da páscoa e a dos pães asmos – dá-se pelo seu teor: ambas visam afastar o mal destruidor. Não se sabe exatamente quando estas duas tradições se juntaram em uma só celebração. Elas têm em comum a data e ritualizam aspectos do cotidiano. Justamente na saída do Egito, estas tradições são acentuadas mais fortemente. As práticas e os costumes dos diferentes grupos que formaram Israel foram mantidas, mas foram reinterpretadas para ganhar um novo sentido. Agora elas passam a celebrar a saída do Egito. É a memória de que Deus libertou escravos hebreus, ouvindo o seu clamor.
A festa da páscoa era uma celebração familiar e a dos pães asmos era vinculada aos santuários locais. Com o passar do tempo, especial¬mente no período da monarquia, estas celebrações foram centralizadas. Com a reforma de Josias e a proibição de efetuar sacrifícios fora de Jerusalém, tanto a páscoa como a festa dos pães passaram a ocorrer no templo. Assim, as duas tradições se misturaram. Os pães sem fermento e o sacrifício do cordeiro passaram a integrar a celebração da páscoa. Assim, 14 de nisan é a páscoa. Ao entardecer deste dia, o cordeiro é sacrificado no templo e por outros sete dias não se comerá pão levedado.
Esta longa tradição da páscoa explica por que encontramos os discípulos de Jesus preocupados com a celebração da páscoa. A páscoa devia ser celebrada em Jerusalém e era necessário prepará-la. Como o número de pessoas realizando o cerimonial no templo era grande, os sacerdotes oficiavam apenas o abate dos cordeiros no átrio do templo. A refeição pascal acontecia nas casas em Jerusalém ou em seus arredores. A última refeição de Jesus com seus discípulos é esta festa da páscoa. Ela foi celebrada dentro dos antigos preceitos, em caráter familiar ou de pequena comunidade, seguindo os ritos do judaísmo.
3. A páscoa celebrada por Jesus
Seguindo a tradição da páscoa judaica, também Jesus e seus discípulos dirigem-se para Jerusalém para celebrar. Dois discípulos são enviados antes, para deixar tudo preparado. No entanto, Jesus mesmo já havia tomado providências. Um homem trazendo um cântaro de água é a senha (como carregar água é trabalho feminino, um homem fazendo este serviço deveria chamar atenção) que os levaria a uma casa onde seu dono os ajudaria. Ali encontrariam um espaçoso cenáculo, mobiliado e pronto.
A maioria de nós, ao ler este texto, tem em mente a famosa pintura de Leonardo da Vinci, A Última Ceia (concluída em 1498), em que Jesus aparece sentado no centro de uma longa mesa, com seis discípulos em cada lado. Esta, sem dúvida, é uma representação medieval da ceia, e é bem provável que a disposição não tenha sido exatamente como a que da Vinci pintou. Na verdade, nem sabemos exatamente como se dava a disposição dos lugares. Informações da época indicam que não se utilizavam mesas altas ou cadeiras. As refeições comuns eram feitas no chão, sobre um tapete. Já as ceias festivas aconteciam ao redor de uma mesa baixa e as pessoas se recostavam para comer. No estilo greco-romano, usavam um reclinatório ou almofadas, um braço sustentando o corpo enquanto o outro podia alcançar a comida. Muitas vezes ficava-se de costas para outras pessoas, dependendo da disposição ao redor da mesa (se era em círculo ou semicírculo).
Na festa da páscoa, dá-se ênfase ao aspecto da comunidade, do grupo. A ceia deveria ser celebrada dentro dos preceitos antigos, ou seja, em casas de família, em grupos de 15 a 20 pessoas. Como se tratava de uma festa da comunidade, mulheres e crianças também participavam. O texto de Marcos, porém, não menciona outras pessoas além de Jesus e dos discípulos. Assim como em tantos outros textos, ficam no anonimato as pessoas envolvidas com a preparação da ceia e quem a serviu. O texto diz que Jesus foi com os doze, mas não diz se havia outras pessoas esperando para celebrar com eles. O que fica claro é que a festa da páscoa não deveria ser comida sozinha, porque ela lembra o que Deus fez por todo seu povo. Por isto também Jesus se reúne com seus discípulos para celebrar.
A festa da páscoa é uma festa alegre, porque lembra com alegria a libertação do jugo egípcio. A celebração da saída do cativeiro, a travessia pelo mar, a passagem pelo deserto, a liderança de Moisés são assuntos trazidos à memória na páscoa. Mas Jesus aproveita a oportunidade para apontar que nem tudo é alegria, embora sejam dias de festa. Ele revela que será traído. Semelhante ao texto de l Coríntios 10.1-16, Jesus aponta que também entre os escolhidos há quem fica para trás. Nem todos os que saíram do Egito chegaram à terra prometida (sabemos que nem mesmo Moisés chegou lá). O texto de Marcos revela que nem todos os discípulos são exemplares, apesar de fazerem parte do círculo mais próximo de Jesus.
Jesus, ao dizer aos seus discípulos que um deles o trairia e que este um meteria com ele a mão no prato, não nomeia especificamente quem o trairá. A comunidade para a qual Marcos escreve já sabe que se trata de Judas, mas ainda assim a narrativa mantém um certo suspense. Como é possível que Jesus mencione traição e comer do mesmo prato referindo-se à mesma pessoa? Além disso, por que Jesus manteria um tom enigmático sobre seu traidor? Pode-se deduzir que, na celebração da ceia, os pratos eram compartilhados, ficando em aberto quem metia a mão no prato com Jesus. Ao não revelar o nome do traidor, parece haver consenso que todas as pessoas, independentemente de seus méritos, devem participar da celebração da páscoa.
Nisto reside um aspecto teológico importante. Antes de celebrar, Jesus lembra que há pessoas falhas, que traem. E eles começam a entristecer-se e a dizer-lhe, um após outro: porventura sou eu? Nenhum discípulo parece estar isento de mácula, capaz de se justificar por seus próprios méritos. Todos demonstram fraqueza e dúvida, pois cada um pergunta a Jesus se é ele o culpado. Na ceia, há a palavra de juízo (melhor lhe fora não haver nascido) e o anúncio do perdão através da nova aliança. Na ceia, Jesus não faz distinção: come com puros e pecadores, bons e maus, e a todos oferece a salvação.
Os discípulos de Jesus, na sequência deste texto, não se portam como exemplos de discipulado: Judas o trai e Pedro o nega três vezes. Exatamente ao mostrar a fragilidade dos seguidores de Jesus e a vulnerabilidade de seu movimento, o evangelista provoca a comunidade a pensar em sua própria atuação e discipulado. Se Jesus aceitou pessoas tão imperfeitas para segui-lo, por que não haveria de aceitar até mesmo o mais simples, humilde e pecador de qualquer comunidade? Na ceia não há qualquer distinção ou discriminação, pois Jesus recebe a todas as pessoas de braços abertos.
Na páscoa celebrada por Jesus, ele mesmo se torna comida e bebida. É, ao mesmo tempo, o que serve e o que é servido, o que partilha e é partilhado, o garçom e a comida. Nos versículos 22-26, já não há mais menção do cordeiro pascal, porque a comunidade para a qual Marcos escreve entende que Jesus mesmo é o cordeiro imolado, que lava os pecados, cujo sangue é derramado para que nenhum outro sangue inocente precise ser. Por isso, o texto refere-se somente ao pão e ao fruto da videira (que não precisa ser necessariamente vinho, mas costuma ser interpretado assim).
Os versículos 22-26 mostram que a instituição da ceia (que se tornou sacramento na igreja cristã) se dá concomitantemente à celebração da páscoa. Tanto o versículo 18 (quando estavam à mesa e comiam) como o 22 (e enquanto comiam) mostram como, de fato, havia um jantar sendo servido enquanto Jesus pronunciou a eucaristia. Esta passa a usar dois elementos: o pão e o fruto da videira. Ambos são corpo e sangue de Cristo. Em Jesus há uma nova aliança, uma nova interpretação da páscoa, que passa a ter um novo significado.
4. Qual é o significado da ceia?
A interpretação da ceia é dada, na perspectiva da quinta-feira santa, a partir dos dois textos auxiliares. No texto de Êxodo 24.3-11, colocamo-nos em contato com a interpretação da páscoa judaica e toda a tradição de libertação que ele celebra. Na saída do Egito, é feita a aliança entre Deus e Israel, seu povo. Esta aliança é baseada na lei, no seguimento dos estatutos que Moisés havia recebido de Deus. A aliança fica selada com o sacrifício de novilhos. O povo concorda em seguir as leis de Deus, dizendo: Tudo o que falou o Senhor, faremos, e obedeceremos. Metade do sangue dos novilhos é aspergida sobre o altar e a outra metade é colocada em bacias, utilizada depois para aspergir sobre o povo. Este é o sangue da primeira aliança, feita entre Deus e o povo quando ainda estavam a caminho da terra prometida.
O texto de l Coríntios 10.1-16 (18-21), em contrapartida, lembra que muitas vezes o povo de Israel se desvirtuou, esquecendo as leis que Deus havia dado, preferindo seguir os seus próprios caminhos. O texto faz referência à idolatria, ao sacrifício a demônios, à imoralidade, que foram castigados no passado. Assim como conhecemos bem a libertação do Egito e a aliança entre Deus e seu povo, também sabemos, por intermédio dos profetas, que o povo se desviava do caminho de Deus e seguia os seus próprios desígnios. Assim como os discípulos de Jesus não eram perfeitos, o povo de Israel também não era. Por isso, o texto de l Coríntios aponta para a necessidade de uma nova aliança, não mais feita sob o jugo da lei, mas estabelecida pelo amor de Jesus.
Jesus oferece o pão e o vinho não só para as pessoas perfeitas, mas também para aquelas que ele sabe que vão traí-lo. Também estas precisam do que Jesus oferece. A comunidade de Jesus, mesmo na ceia, não é uma comunidade perfeita, sem mácula, daqueles já redimidos. Ao contrário, a comunidade inclui todas pessoas, as que têm muitos e as que têm poucos pecados. Jesus se torna sacrifício vivo, de pão e vinho, por toda a comunidade reunida. O seu corpo é dado e o seu sangue é derramado para salvar, para anunciar o perdão dos peca dos, para propiciar uma nova vida, para celebrar libertação, para participar na comunidade, para ser sinal de esperança no mundo.
A síntese desta nova aliança está em l Coríntios 10.16: Porventura o cálice da bênção que abençoamos não é a comunhão do sangue de Cristo? O pão que partimos não é a comunhão do corpo de Cristo? O significado da ceia passa a ser a nova aliança feita pelo corpo e sangue de Cristo. O pão é o corpo de Cristo, o fruto da videira é o sangue de Cristo. A nova aliança traz nova vida, libertação, reconciliação, perdão de pecados e salvação. Assim como era na tradição judaica, a nova aliança enfatiza a dimensão comunitária: Porque nós, embora muitos, somos unicamente um pão, um só corpo; porque todos participamos do único pão (l Coríntios 10.17).
A fórmula utilizada em Marcos 14.24, Isto é o meu sangue, o sangue da nova aliança, derramado em favor de muitos, denota um caráter universal. O termo muitos, na tradição semítica, denota a totalidade (Isaías 53.11-12). Mesmo que, na concepção judaica, o Messias devesse redimir somente o povo de Israel, as primeiras comunidades seguidoras de Cristo ampliaram esta noção para a humanidade toda. Assim, o evangelista assume a noção do servo sofredor que toma sobre si a dor e a transgressão do mundo, expiando-as. É um sacrifício que visa impedir e abolir sacrifícios de qualquer modalidade. Nem pessoas, nem animais precisam ser sacrificados. Ao participar da ceia, onde o corpo e sangue de Cristo são partilhados, o perdão é anunciado e a alegria é restabelecida.
Jesus toma o pão, abençoa-o, parte-o e diz: Isto é o meu corpo. Toma o cálice com o fruto da videira, dá graças e diz: Isto é o meu sangue. Ambos os elementos são dados aos discípulos. Ao participar da ceia, seguidores e seguidoras de Jesus fazem a memória desta celebração, em que Jesus, em sua misericórdia, toma sobre si os pecados da humanidade. A nova aliança é reconhecida e proclamada porque é um sinal visível do amor de Deus por nós. A ceia não é um sacrifício meritório, mas é um presente de Deus. Por isto, deve ser recebida com ação de graças e louvor, pois é uma dádiva. Jesus, ao dizer que jamais beberá do fruto da videira até a chegada do reino, mostra que a ceia é também uma promessa, que seu amor será lembrado toda vez que a comunidade se reunir em torno desta refeição.
As palavras finais na ceia remetem para uma realidade última: a do reino. Assim como Cristo está presente na terra – em, com e sob pão e vinho – assim estará conosco no reino. A ceia é, por conseguinte, uma antecipação da realidade do reino de Deus, um aperitivo da festa que virá. Ele encontra em nós morada para nos assegurar o perdão dos pecados, e preparará uma nova morada no reino. Este reino é uma realidade futura, mas já experimentada parcialmente aqui e agora. É a concretização do amor de Deus, experimentado no perdão, na justiça, no amor à vida, na solidariedade. A ceia antecipa a abundância do reino, é uma ocasião festiva, comunitária, uma promessa que o amor de Cristo nos acompanha até o final dos tempos. Este amor sustenta, anima e fortalece, assim como uma boa refeição.
A ceia é uma refeição alegre, onde celebramos libertação de pecado, medo, opressão, escravidão, sofrimento, injustiça. Esta é a tradição da páscoa: celebrar que Deus é bom, que nos salva, que está sempre presente no meio de nós. A ceia é celebrada publicamente, para anunciar este amor aos demais. Por isso, a ceia jamais deveria excluir, antes, deveria acolher. Lamentavelmente a ceia representou, na história do cristianismo, um dos grandes temas de divisão e disputa teológica. Ao invés de congregar, os diferentes entendimentos sobre a ceia geraram exclusão e acusações que acabaram, elas mesmas, quebrando o corpo de Cristo. Para nós, cristãos e cristãs, deveria ser motivo de escândalo o fato de não podermos celebrar em conjunto a ceia do Senhor por motivos de diferença teológica.
Neste sentido, a proposta da hospitalidade eucarística – onde recebemos à mesa do Senhor pessoas de outras denominações cristãs -é também um sinal visível que estamos em franco diálogo ecuménico. Não que as diferenças sejam ignoradas, mas que estas diferenças não são mais motivo de repúdio e exclusão. A prática da hospitalidade eucarística é um exemplo de como a antiga prática do judaísmo, de celebrar a saída do Egito, assume a dimensão libertadora. Na ceia reconhecemos a presença de Cristo e pregamos publicamente o amor de Deus por nós. Mas também testemunhamos que toda comunidade, partilhando desta refeição, é o corpo de Cristo. Ao partilharmos do mesmo pão, confessamos que somos um só corpo.
Bibliografia
BERGER, Norberto; GAEDE, Rodolfo; KRAUSER, Vitório. Quinta-feira santa – Mc 14.17-26. In: KIRST, Nelson (Ed.), Proclamar libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1990. v. VI, p. 156-161.
DREHER, Carlos A. Por que esta noite é diferente das outras?: A festa da Páscoa no Antigo Testamento. Palavra Partilhada, São Leopoldo, v. 12, n. l, p. 5-17, 1993.
GENZ, Silvia; GAULKE, Dalcido. Quinta-feira da Paixão – Mc 14.12-26. In: KILPP, Nelson, WESTHELLE, Vítor (Eds.). Proclamar libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1990. v. XVI, p. 134-139.
SCHOENHERR, Ivo. Quinta-feira da Paixão – Mc 14.12-26. In: SCHNEIDER, Nélio; DEIFELT, Wanda (Eds.). Proclamar libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1996. v. XXII, p. 104-108.
Proclamar Libertação 28
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia