Prédica: Êxodo 2.1-10
Leituras: Lucas 2.41-52 e Provérbios 6.20-23
Autor: Nelson Kilpp
Data Litúrgica: 4º Domingo da Páscoa – Dia das Mães
Data da Pregação: 11/05/2003
Proclamar Libertação – Volume: XXVIII
Tema:
l. O tema do domingo
Neste ano, o quarto domingo da Páscoa coincide com o Dia das Mães. Certamente é mais adequado, em nosso contexto, abordar na pregação do culto dominical um tema relacionado com o Dia das Mães. Os textos previstos pelo lecionário ecumênico para o Quarto Domingo da Páscoa do ano B se agregam em torno do tema do bom pastor (Atos 4.23-33 ou At 4.8-12; l João 3.1-2 e João 10.11-18). Enquanto isso, os textos de pregação previstos pela série alemã para o Domingo Jubilate enfocam predominantemente o tema da videira (AT: Gn l.l-2.4a ou At 17.22-34; Epístola: l Jo 5.1-4 ou 2 Co 4.16-18; Evangelho: Jo 15.1-8 ou Jo 16.16-23). Não entraremos na discussão da relevância destes textos. Pelo motivo acima exposto, concentramo-nos no texto de Êxodo 2.1-10, escolhido por Proclamar Libertação para o Dia das Mães. Também não entro na análise dos outros textos (de leitura), pois os considero passíveis de revisão por estarem ou em contexto inadequado (a mulher adúltera em Pv 6) ou em aberta crítica aos pais (que esqueceram o filho Jesus no templo, em Lc 2.41-52).
Êx 2.1-10 é um texto marcante e extraordinário. Apropriado para uma reflexão para e sobre o Dia das Mães; pois o texto dá algumas pistas inusitadas para o que representa ser mãe. Temos aí a mãe biológica de Moisés, que teve que expô-lo porque estava ameaçado de ser morto; temos também, na filha do faraó, a mãe adotiva de uma criança abandonada; além disso, há a mãe de leite que se oferece para amamentar e cuidar do nenê. Por fim, temos ainda a irmã mais velha que cuida e zela pelo irmão menor. O texto, portanto, apresenta diversas mães e nos dá a oportunidade de refletir sobre cada uma delas em sua estratégia em favor da preservação da vida.
O tema sugerido pelo texto convida a extrapolá-lo, ou seja, ele oportuniza também a reflexão sobre aquelas mulheres que não podem ou não querem ser mães, preferindo dedicar-se a obras sociais, a serem mães para outros. Podemos falar sobre aquelas mulheres que chamamos pejorativamente de tias. Ou então sobre as mães que perdem seus filhos para as drogas, a violência, a mortalidade infantil; o projeto do faraó exige a morte de muitas crianças. Talvez também se queira abordar o tema da mãe solteira? Esta que é, muitas vezes, vítima de discriminação por parte da sociedade que impõe um certo tipo de família. Como vemos, o texto bíblico pode ser muito rico para o Dia das Mães!
2. Da exegese à pregação
a) Êx 2.1-10 é reconhecidamente um conto itinerante sobre a exposição de uma criança. O conto é narrado a respeito de diversas pés soas em diversas épocas e culturas. O exemplo mais próximo do Anti go Testamento talvez seja a história que se conta do rei Sargão de Acade, .que viveu na Mesopotâmia do século XXIII. A narrativa diz que sua mãe era uma sacerdotisa e seu pai um desconhecido. Talvez por causa da vergonha de ter engravidado de um desconhecido ou por ser proibido, na época, a uma sacerdotisa ter filhos, a mãe de Sargão deu-o à luz. em segredo, colocou-o numa cesta de junco, calafetou-o com betume e o lançou no rio Eufrates. Um homem que costumava tirar água do rio o encontrou, adotou-o como filho e lhe ensinou a profissão de jardineiro. Quando Sargão torna-se adulto, a deusa Ishtar apaixona-se por ele; mais tarde, Sargão torna-se rei da Mesopotâmia e governa por 56 anos.
Mas este não é o único conto paralelo. Também na mitologia grega temos exemplos da exposição de uma criança. O mais conhecido é o de Édipo, filho dos reis de Tebas, Laio e Jocasta. Ao saber, através de um oráculo, que o filho mataria o pai e casaria com a própria mãe, Laio expôs a criança no monte Citeron, suspenso de uma árvore pelos pés. Um pastor encontrou-o e o levou a Corinto, onde foi adotado pelo rei Políbio e pela rainha.
O exemplo mais conhecido da mitologia romana é a história de Rômulo e Remo, os fundadores de Roma. Conta-se que sua mãe teve que tornar-se uma sacerdotisa da deusa do fogo Vesta e assumir o voto de castidade. Ao dar à luz dois filhos, atribuídos a Marte, ela foi condenada à morte. As crianças foram colocadas num berço e lançadas no Tibre. O berço encalhou no monte Palatino, onde os gêmeos foram amamentados por uma loba e, mais tarde, adotados pelo pastor Fáustulo.
Um dos mais conhecidos exemplos da literatura folclórica germânica talvez seja a história de João e Maria. As duas crianças são abandonadas pelos pais no meio do mato. Dessa vez a causa é a fome. Poderíamos ainda citar um exemplo moderno, conhecido de todos: o do Super-Homem. O Super-Homem, originário do planeta Krypton, que eslava prestes a ser destruído, foi colocado por seus pais numa nave espacial que aterrissa numa fazenda dos Estados Unidos, onde é adotado por uma família de agricultores, (cf. J.-J. Glassner, p. 21s.)
Todas estas histórias têm em comum o fato de que uma criança é exposta por causa de uma ameaça à sua vida. A vida da criança pode estar ameaçada por alguém muito poderoso, a vida dos pais e da família está ameaçada pela pobreza e fome, a mãe e a criança estão ameaçadas por causa da ilegitimidade do nascimento. As crianças expostas são encontradas e salvas milagrosamente, e muitas vezes adotadas por uma pessoa importante. Por fim, a criança ameaçada e perseguida torna-se uma pessoa especialmente importante e poderosa numa determinada nação, país ou grupo (p. ex., fundador de uma cidade, rei de um império).
Mas como esta constatação pode ajudar-nos a melhor entender o texto de Êx 2.1-10? A adoção do conto itinerante conhecido certamente quer mostrar que Moisés é, em todas as épocas, uma das pessoas mais importantes do povo de Israel, comparável a um monarca ou ao fundador de uma nação. E pelo fato de a obra do Moisés adulto ter sido tão importante, também a infância de Moisés tem grande importância. Além disso, Êx 2, sem dúvida, também mostra que Javé está com este Moisés desde o seu nascimento (cf. Jr 1.5). Desde pequeno, Deus acompanha o seu escolhido, não o abandonando nunca em meio à perseguição e morte.
Ademais, a comparação entre o padrão da saga com a forma peculiar de Êx 2 ajuda-nos a ver o específico e próprio do texto bíblico, aquilo que o diferencia do padrão, e o que poderia representar a mensagem do texto. É o que veremos a seguir.
b) É praticamente impossível atribuir Êx 2.1-10 a uma das fontes traditivas do Pentateuco. A comparação do texto bíblico com o padrão do conto itinerante, no entanto, mostra que, Êx 2.1-10 incluiu, certamente ainda na fase da transmissão oral da história, um elemento novo, a saber, o trecho da irmã de Moisés, que se encontra nos v. 4.7-10a.
O leitor atento sempre já achou intrigante a repentina introdução da irmã de Moisés no v. 4, porque a impressão que se tem da leitura de Êx 2.1-2 é que Moisés é o primeiro filho do casal: um homem levita casa com uma mulher levita, a mulher engravida, e eis que nasce Moisés. De onde vem a irmã mais velha? O Targum e a literatura rabínica posterior procuram explicar o fato através da hipótese de um segundo casamento do pai de Moisés, o que, no entanto, não convence. A introdução da irmã é posterior e tem uma intenção teológica. Uma outra observação corrobora isto: por que a filha do faraó dá o nome ao menino somente depois de ele ter-se tornado grande? Não seria de se esperar que o menino recebesse o nome logo após ter sido tirado das águas, uma vez que « nome faz alusão ao que ocorreu no rio? Assim como está a história, Moisés, não teria tido nome nenhum antes de ter crescido (v. 10).
Portanto, se lermos o texto bíblico sem os v. 4.7-10a, teremos uma versão bem próxima do padrão do conto itinerante sobre a exposição de uma criança: Dentro do contexto da perseguição dos meninos israelitas recém-nascidos ordenada pelo rei do Egito, uma mãe expõe seu filho no Nilo, dentro de um cesto de juncos, calafetado com betume. O cesto e a criança são encontrados pela própria filha do faraó. Esta adota o menino (cf. a fórmula de adoção: e ele tornou-se filho para ela) e lhe dá um nome (Êx 2.1-3, 5-6,10b).
Mas por que a versão bíblica incluiu o trecho que fala da irmã de Moisés e da mãe que se torna ama de leite do próprio filho? O primeiro motivo parece óbvio: A mãe de Moisés não é tão insensível a ponto de deixar seu filho totalmente ao sabor do destino. A criança continua sendo observada. Ela não está só um minuto sequer. A irmã vela pela criança, ela quer saber o que vai acontecer com ela. Ela estará por perto se necessário. O trecho acrescido mostra que há uma nítida estratégia da mãe e da irmã para preservar a vida da criança. Esta estratégia conta com a cumplicidade da princesa, que prontamente aceita a sugestão da irmã do menino. O futuro da criança não se deixa à mercê da fatalidade. Deus não age de forma milagrosa para salvar o menino. Deus age e salva através de mulheres (cf. a história das parteiras).
Parece haver ainda um outro motivo. É provável que o texto queira acentuar que Moisés, desde a tenra infância, teve educação israelita e não egípcia. A vida na corte do faraó opressor ocorreu somente depois de Moisés ter-se tornado adulto (v. 10a), quando os mais caros valores israelitas já haviam sido aprendidos de sua mãe e não mais corriam risco de ser corrompidos.
Portanto, a ampliação que o conto itinerante sofreu em Êx 2 tem um significado: mostrar a astúcia e estratégia de mulheres que se tornam cúmplices no esforço de preservar a vida do futuro libertador do povo. Deus está com o pequeno Moisés desde o seu nascimento pela intermediação da inteligência, do sentimento e do zelo de três mulheres. O milagre ocorre por meio de mulheres corajosas e decididas. Não há diferença de raça ou classe social entre as mulheres. Todas se unem em torno de um objetivo: a desobediência civil contra o projeto de morte do faraó.
c) Os v. 1-2 identificam o contexto de perseguição e a origem da criança. Apesar de ter nome egípcio, Moisés não é de origem egípcia. Ao contrário do que pensava S. Freud, Moisés não foi um membro da nobreza do Egito, educado em toda a sabedoria egípcia, que se mostra condescendente com os israelitas. Historicamente não há por que duvidar de que Moisés tenha sido um integrante de um grupo de semitas que encontrou abrigo no Egito. O texto fala que Moisés pertence à tribo de Levi, que se destaca posteriormente por seu zelo religioso. É este zelo por Javé – e não tanto a genealogia – que o texto quer destacar; pois este zelo é expressão do anseio por libertação e por vida.
O texto bíblico não cita outros nomes além dos de Levi e Moisés. Isso não é mero acaso. Sabemos que Êx 2.1-10 não quer ser mera reconstituição histórica de um passado remoto. A opressão e perseguição do faraó não existiram somente no passado; a organização de mulheres não existiu apenas no Egito. Os faraós estão por toda parte; us protagonistas da vida surgem em todos os lugares. Também hoje Deus age através da inteligência e dedicação de mulheres que se unem em torno de projetos que buscam preservar vidas ameaçadas. Ao se unirem para preservar vidas, as mulheres extrapolaram a função doméstica, interferindo decisivamente no projeto político do faraó.
d) As mulheres de Êx 2.1-10 uniram-se para ludibriar o poder opressor e do faraó e, assim, preservar a vida de uma criança. Dessa forma, tornaram-se mães dessa criança. Poderíamos destacar algumas semelhanças entre as mulheres do texto e as mães de hoje. Em primeiro lugar, está a mãe biológica, a que pariu a criança, mas que não pôde ficar com ela por causa da falta de condições para criar um filho. Quantas mães são obrigadas a abandonar seus filhos? Conhecemos os motivos! Conhecemos alguns nomes! Algumas dão suas crianças para adoção, outras as abandonam. Como estas mães se sentem neste dia?
Há também a mãe que cuida dos filhos de outras! Cada vez mais mães trabalham fora, assumindo parcial ou até totalmente o sustento da família. Elas necessitam de outras pessoas que façam as vezes de mãe. Se não for o parceiro, são as mulheres da creche, as professoras, as tias, as babás e tantas outras. Essas mães, que assumem cada vez mais a função de cuidar e ensinar os filhos de outras, são mais e mais procuradas. Elas são devidamente reconhecidas socialmente? Não são elas as que mais facilmente são esquecidas nas homenagens às mães?
Há ainda as mães adotivas, que acolhem em sua vida e em seu coração a criança de outra mulher. Dedicam a ela carinho, atenção e um grande amor. É verdade quando se diz que as crianças adotivas são os filhos do coração. Pois elas sempre são desejadas, O amor das mães adotivas é muitas vezes maior do que o de mães biológicas; mesmo assim, as mães adotivas são desprezadas em algumas culturas por não poderem ter filhos próprios.
Deveríamos ir além do texto e também falar das mães solteiras? As que, por opção ou por não ter encontrado um companheiro responsável, assumem sozinhas a maternidade. Cada vez mais mulheres preferem criar sozinhas um filho que nasce de um relacionamento casual.
E uma decisão corajosa que deveria merecer o respeito de todos nós. As nossas comunidades lembram-se dessas mães neste dia?
E as mulheres que não podem ser mães por problemas biológicos ou não querem ser mães por opção? Muitas vezes estas mulheres ainda são vistas como coitadas ou, então, com espanto. Nota-se que mais e mais mulheres decidem não assumir o papel de mera reprodutora, ainda tido por normal em nosso contexto.
No Dia das Mães, a homenagem deve ser feita a todos os tipos de mães. A todas as mulheres que dedicam ou dedicaram parte de sua vida a cuidar de pessoas frágeis e vulneráveis e a conduzi-las a uma vida própria e autônoma. Mas a maternidade não pode ser idealizada pela sociedade nem vista como uma função necessária e imposta à mulher. A felicidade das mulheres deixou de coincidir com a maternidade; a realização das mulheres não está no ser mãe de outro ser. Não é a maternidade que dignifica ou valoriza a mulher, mas sua capacidade de atuar em benefício da vida. A maternidade deve ser uma opção consciente e responsável, não uma imposição social.
3. Subsídios litúrgicos
a) Símbolo motivador: o culto poderá ter como símbolo a água. A água é fonte de vida e marca toda a nossa vida. A criança desenvolve-se dentro do líquido amniótico; é o romper das águas que determina o parto. Também na Igreja, nascemos pelas águas do batismo. No texto de pregação previsto para o Dia das Mães, é das águas que uma criança é salva para a vida.
b) Acolhida
Bem-vindas, mulheres!
Mulheres que, rompendo as águas, dão luz à vida!
Bem-vindas, mulheres!
Mulheres que das águas perpetuam a vida!
Bem-vindas, mulheres!
Mulheres que, de seus corpos molhados
de suor, sangue, lágrimas e leite,
dão continuidade à vida!
c) Confissão de limites
Deus da vida, tão certo como o céu é sem limites, nós nos apresentamos como criaturas limitadas diante de ti.
Tão certo como as estrelas brilham neste céu sem fim, nós nos inclinamos para confessar-te os nossos limites.
Muito temos ouvido falar das crises familiares, que têm levado tantas vidas ao desespero, à insegurança, ao desamor. Confessamos que, como mães, pais, filhos e filhas, sentimo-nos perdidos e perdidas em muitas situações.
Aproxima-te de nós, estende-nos as tuas mãos, faz-nos compreensivos e compreensivas. Dá-nos sabedoria para que nossa finitude não seja desculpa para desistirmos de seguir pelos caminhos da paz, do amor, da mansidão e da justiça. Amém!
d) Intercessão
(As preces podem ser intercaladas com o refrão: Vem, Espírito Santo, vem! Vem nos consolar!)
* Por todas as famílias em todos os lugares, para que tenham condições dignas de vida.
* Por todas as mulheres que, com seu sangue e suor, lutam pela vida. Pelas que optaram por ser mães, pelas que fizeram outras opções. Que sejam respeitadas e apoiadas em suas decisões.
* Por todas as pessoas que, independentemente de raça, credo e condição social, unem-se contra toda opressão, tornando-se parceiras do Deus da vida.
e) Bênção
(Neste momento, as mulheres mais velhas da comunidade poderão aspergir água perfumada na comunidade, enquanto o/a celebrante dá a bênção)
Que a força criadora das águas derrame sobre nós a vocação da transparência, o dom dos movimentos e da purificação. Derrama sobre nós o espírito vivificante e curativo que vem das águas e nos anime e nos acompanhe em nossos caminhos! (Marga J. Ströher)
Os subsídios litúrgicos foram adaptados por Sônia Gomes Mota de:
ALVES, Rubem (Org.). CultoArte: celebrando a vida: Tempo Comum. Petrópolis/São Paulo: Vozes/Cebep, 2000; e
PASTORAL Popular Luterana. Águas da vida : celebrações. Curitibanos/São Leopoldo: PPL/CEBI, s. d.
Bibliografia
DEIFELT, Wanda. Entre o direito e o dever: a crise dos direitos reprodutivos ou a maternidade como opção e não obrigação. Mosaicos da Bíblia, São Paulo, v. 16, p. 11-15, 1994.
GLASSNER, Jean-Jacques. Um nascimento real no Oriente Antigo: Sargão de Acad. Estudos Bíblicos, Petrópolis/São Leopoldo, v. 54, p. 21-23, 1997.
SCHMIDT, Werner H. Exodus. Neukirchen-Vluyn, Neukirchener Verlag: 1988. p. 49-76. (Biblischer Kommentar Altes Testament, v. 11,1)
VV. AA. As parteiras : As mulheres hebréias são cheias de vida! (Êx 1,12-22). Estudos Bíblicos, Petrópolis/São Leopoldo, v. 29, p. 33-39, 1991.
Proclamar Libertação 28
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia