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Prédica: Atos 11.19-30
Leituras: Salmo 98 e João 15.9-17
Autor: Harald Malschitzky
Data Litúrgica: 6º Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 25/05/2003
Proclamar Libertação – Volume: XXVIII
Tema:

1.Algumas observações gerais

Esta passagem de Atos constitui uma espécie de texto clássico do início da dispersão (diáspora) dos protocristãos, o que teve como consequência a ruptura do modelo comunitário praticado em Jerusalém e arredores, que se entendia como fruto da comunidade judaica. Antioquia era uma cidade grande (na época somente Roma e Alexandria eram maiores!), com jeito de metrópole. Sua localização estratégica a transformara em um pólo comercial, cultural e religioso, o que, por sua vez, contribuiu para um espírito tolerante em relação ao diferente, ao outro. Não que não houvesse também conflitos, mas a tolerância falava mais alto. Por isso, naquele contexto, o surgimento de uma comunidade cristã não era um fenômeno tão excepcional.

A expulsão dos helenistas de Jerusalém levou muitas pessoas a Antioquia e outros lugares. Ao mesmo tempo, cristãos de outros lugares também se dirigiam a Antioquia, unindo-se à comunidade. Ao que tudo indica, muito depressa pagãos foram aceitos com naturalidade, dispensando-se qualquer rito ou iniciação de origem ou conotação judaica. Assim, este grupo já não mais podia ser identificado simplesmente com uma seita judaica. Será em Antioquia que, pela primeira vez, estes seguidores de Jesus Cristo receberão o nome de cristãos, designação dada pelos outros (aliás, o epíteto protestante dado aos seguidores da Reforma do século XVI também veio da oposição e não foi exatamente um elogio!).

No entanto, os cristãos de Antioquia se sabiam ligados às comunidades de origem judaica pelo mesmo Cristo, o que, na prática, iria levá-los a fazer coletas para as pessoas que passavam fome nessas comunidades. Ruptura e unidade estão presentes nesse momento concreto dos cristãos de Antioquia.

O texto proposto como base para a pregação tem dois elementos constitutivos e essenciais de Igreja: A missão e a diaconia, sem que se possa dizer com exatidão onde termina um e começa o outro. A realidade é que determina a ênfase!

2. Detalhes do texto

Inicialmente a missão antioquena era uma espécie de prolongamento de Jerusalém. Os primeiros cristãos entenderam que deveriam dirigir-se somente aos judeus na dispersão (v. 19). Quase simultaneamente, porém, houve quem se dirigisse também aos gregos (v. 20). Enquanto a comunidade de Jerusalém continuava procurando convencer Israel, a expulsão dos helenistas de Jerusalém inicia, de maneira espontânea, a missão itinerante. Assim surge, cerca de 3 anos após a morte de Jesus, ao lado da missão centripetal em Jerusalém, uma missão centrifugal (Goppelt, p. 269). Floresce uma comunidade cristã fora de sua terra natal, uma mescla de pessoas oriundas de nacionalidades e tradições diferentes (v. 21). Não é de admirar que esta notícia chegue a Jerusalém, e se pode imaginar que inicialmente isso tenha causado alguma preocupação, não por último porque se tratava de um fenômeno espontâneo e porque o jeito das pessoas se ligarem à comunidade divergia da forma tida como correta em Jerusalém. A mão do Senhor estava com eles (…) (v. 21); isto era o bastante. Nada mais lógico do que enviar uma pessoa para ver o que estava acontecendo. Barnabé era um dos esteios em Jerusalém, ele que tinha vendido sua terra e colocado o que auferiu à disposição da comunidade (Atos 4.37); ele que ficara encarregado de ajudar Paulo a dar seus primeiros passos na fé (Atos 9.27); ele que tinha os dons de ser mestre e profeta (Atos 13.1): Ninguém menos do que ele foi enviado a Antioquia. Ele teria conhecimento e serenidade para discernir e se posicionar em relação ao que acontecia.

Ele deparou-se com uma grata surpresa. Uma comunidade florescia no mundo pagão. De certa forma, reconhecendo aquela comunidade como uma expressão legítima de Igreja, Barnabé adiantou-se em uma discussão que Paulo teria mais tarde com a liderança em Jerusalém (Gl 2), decidindo tacitamente em favor da posição que este assumiria! Ele não demonstra preocupação com a forma ritual adotada para acolher as pessoas na comunidade, mas se alegra com o que vê e experimenta. Sua pregação (v. 23) sugere um incentivo a que as pessoas fiquem sempre mais firmes naquele jeito de ser igreja. E há ainda um elogio a este pregador e representante legítimo das primeiras testemunhas do evento de Cristo: Ele era bom e cheio do Espírito Santo (v. 24), portanto, merecedor de todo crédito.

Há mais um traço digno de destaque em Barnabé: ele planeja os próximos passos a partir da realidade que encontra; ele identifica o potencial que existe naquela metrópole e busca ajuda: Saulo, seu conhecido, que estava em Tarso. Durante um ano ambos investiram seu tempo e seus dons em Antioquia. O trabalho não deixou de ter resultados. Se a existência da comunidade não fosse percebida naquele mundo diversificado, a ninguém teria ocorrido chamar seus integrantes de cristãos!

Antioquia, sem que isso tivesse sido um projeto de quem quer que seja, acaba sendo o berço da missão entre não-judeus e, dessa forma, nascedouro do modelo de missão concretizado por Paulo em suas di versas viagens por inúmeros lugares.

E como fica a relação desta comunidade com Jerusalém? Nossa passagem não tem uma letra sobre uma eventual discussão teológica (o que ocorreu com Paulo em outro momento). Para os cristãos de Antioquia, era líquido e certo que eles faziam parte de um todo que incluía Jerusalém. Tudo indica que eles respeitavam o papel da protocomunidade. Parece-me que é isso que transparece no fato de que profetas vindos de Jerusalém (v. 27-28) tiveram espaço e foram ouvidos, ao anunciar a fome que se avizinhava. Profetas eram comuns ao lado dos apóstolos nos primórdios da cristandade. Ágabo, um deles, no poder do Espírito de Deus, fala da fome e de suas consequências. Pode ter sido uma pregação escatológica que tinha como um de seus ingredientes a fome. Verdade é que os anos 48, 49 e 50 de nossa era viram fome em Roma, na Grécia e na Palestina (cf. Beyer, p. 73).

A pregação de Ágabo e dos demais que desceram de Jerusalém encontrou ouvidos atentos e corações receptivos. Organizou-se mais do que uma coleta, fez-se uma campanha para socorrer as pessoas na Judéia (v. 29). Barnabé e Saulo foram encarregados de entregar o que se arrecadou (v. 30). Há uma dificuldade em relação à data em que esta ajuda teria sido entregue em Jerusalém, pois, segundo Paulo (Gl 2.1), ele teria ido àquela cidade somente depois de um período de 14 anos, mas neste contexto ele não menciona a ajuda financeira. Independente deste detalhe, a ação solidária mostra como missão e diaconia andam de mãos dadas. Mostra também que, sob o mesmo senhorio do Cristo, é possível ter formas diversas de ser comunidade, sem que estas excluam umas às outras.

3. Meditando sobre o texto

Pessoas, grupos étnicos, comunidades eclesiais têm suas tradições, suas línguas, seus costumes, seus jeitos de ser. Isso não é necessariamente uma coisa negativa, pois tradições e costumes são parte da nossa própria identidade. O ruim acontece no momento em que se empresta um valor absoluto, que por definição é excludente, a uma tradição, um costume, uma língua. Muitos anos de nossa igreja no Brasil levaram esta marca, e até hoje há pessoas que gostariam de ter uma Igreja étnica. Não há dúvida de que ultrapassar os próprios limites oferece muitas dificuldades. No entanto, não fossem os cristãos anônimos de Antioquia (e outros lugares), não fossem os Barnabés e os Paulos, nós estaríamos – ao menos na igreja! – falando grego e observando os ritos de Jerusalém.

Ultrapassar os próprios limites sem, por isso, perder a identidade cristã (afinal foi em favor do Cristo que os Barnabés, os Paulos e outros até os nossos dias investiram e arriscaram as suas vidas) é um dos desafios colocados a qualquer comunidade cristã. E é em campos missionários que esta questão se torna mais candente.

Ultrapassar os próprios limites sem, por isso, deixar de se saber parte do todo é uma questão-chave para se opor a qualquer tipo de sectarismo. Se não estou equivocado, foi no movimento ecumênico do último século que se forjou a concepção da unidade na diversidade. Penso que isso é aplicável também no âmbito da igreja, sendo o critério, o fio condutor, o próprio Cristo (was Christum treibet, tomando emprestada uma expressão de Lutero). O apoio mútuo e a solidariedade (diaconia!) podem ser sinais concretos dessa unidade. A comunidade de Antioquia mostrou isto de forma exemplar.

4. Pistas para a pregação

Sugestão 1: a prédica pode ser estruturada de acordo com a sequência do próprio texto. Para atualizar a passagem, dever-se-ia destacar o aspecto da missão como compromisso (ir além dos próprios muros e comunidades) e da diaconia, que busca identificar as necessidades que podem estar colocando em risco a vida das pessoas (não se trata somente da fome física). A partir deste texto, a comunidade deve ser perguntada por sua própria identidade e papel na missão e diaconia, dimensões que tantas vezes estão ausentes.

Sugestão 2: elaborar uma prédica temática em que se mostra a relação intrínseca(l) entre comunidade, missão e diaconia. Se fosse possível ter uma palavra de alguém de uma destas áreas específicas em nossa igreja, seguramente prédica e comunidade ganhariam em concretude. A maioria de nossas comunidades de norte a sul foi alvo da solidariedade de outros; isto deve ser lembrado. As pessoas deveriam levar consigo a alegria de pertencer a tantos outros cristãos e cristãs e a pergunta inquietante pelo que elas estão fazendo e/ou deveriam fazer.

5. Celebrando

Saudação: Gálatas 3.28

Epístola: Colossenses 1.24-29 (Uma ilustração para o trabalho de Paulo e para a amplitude do amor de Deus).

Oração de coleta: Senhor, perdoa-nos, porque tantas vezes só mós mesquinhos, ficando somente entre nós e para nós. Obrigado por que tu nos colocas dentro da multidão e diversidade de tuas criaturas Dá-nos olhos e coração para os outros, os diferentes. Por Cristo, Senhor e Salvador nosso. Amém.

Hino do HPD (Hinos do Povo de Deus): 166

Bênção:

Cristo não tem mãos!
Somente as nossas mãos para fazer o trabalho hoje.
Cristo não tem pés!
Somente os nossos pés para guiar pessoas ao seu caminho.
Cristo não tem lábios!
Somente os nossos lábios para falar sobre Ele às pessoas.
Cristo não tem como ajudar!
Somente a nossa ajuda para ganhar pessoas.
Nós somos a única Bíblia que o público ainda lê; nós somos a últi¬ma mensagem de Deus escrita em palavras e ações concretas.
Assim, pois, abençoe-vos Deus, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Amém

Bibliografia

BEYER, Hermann Wolfgang. Die Apostelgeschichte. 6. ed. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1951.
GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento. 3. ed. São Leopoldo: Sinodal, 1988. v. l e 2.
RIENECKER, Fritz (Ed.). Lexikon zur Bibel. 5. ed. Wuppertal: R. Brockhaus, 1964.

Proclamar Libertação 28
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia