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Estamos em junho, mês de muitas festas populares. Festas de santos – começa com Santo Antonio, passa por São João, termina com São Paulo e São Pedro. Festas e santos, algo um tanto complicado na tradição luterana. Na verdade, estas festas todas são de santo mesmo. A origem delas é deveras interessante e importante no Brasil rural. Todas festas agrícolas! Festas de colheita do milho, do feijão, de tantos outros produtos básicos para o povo brasileiro. Os lavradores, grande parte dos/as brasileiros/as até poucas décadas atrás, agradecidos com a abundância dos frutos da terra, oferecem produtos aos santos protetores (cada comunidade roceira escolhe o seu) em agradecimento à colheita. Os frutos da terra colhidos são resultado das mãos lavradoras, da terra santa e da mãozinha do santo. Os/as lavradores/as não atribuem a colheita como fruto somente do seu trabalho, mas da ajuda divina e dos santos, ajudantes de Deus. Assim, milho, feijão, batata, abóbora, etc. têm parte com Deus. E a Deus, aos santos, voltará uma parte. É oferta sagrada! É dádiva! É tempo de refeição coletiva!

Festa de santo, festa junina, num Brasil rural, era festa de distribuir e partilhar a colheita e a alegria do alimento cotidiano colhido. Todos entregam uma parte de sua colheita para alegrar a festa. Só tem festa se tem comida. Só tem comida se tem ajuda do santo. E só tem alegria se tem comida. Festa, comida, alegria, povo… encontro de todos com todos e com o sagrado. Ninguém cobra nada de nada, ninguém compra comida, ninguém compra alegria, ninguém compra festa, ninguém compra Deus. Festa de santo é partilha no concreto e na força simbólica. Cada ano se renova a tradição da partilha, da oferta, do agradecimento, da troca de alegria.

Numa sociedade mercantilista, este tipo de festa fica estranho. Partilha e lógica distributiva é algo que não cabe no mercado. Começa a ter barraca e se vender comida em festa junina! O povo da roça acha descabido: “No tempo de dante é que havia fartura. Agora ninguém qué dá, não há mais casa da festa; na cidade se quisé um pão bento tem que trocá por vela, custa dinheiro. Os devoto não tem mais aligria, tá haveno muita exploração… Tudo o de cumê era de graça. O pobre num come e a festa perdeu a graça”. (Alba Zaluar, Os homens de Deus, Zahar Editores, p.76) Barraca que troca comida por dinheiro não é comida ofertada ao sagrado em agradecimento e alegria para todos e todas partilharem. Rompe-se a lógica da festa do santo, onde todos/as comem e se alegram. Rompe-se com a renovação simbólica da comida para todos/as sem dinheiro. Acaba a festa! Acaba a alegria! Fica o mercado! Fica a exclusão! Fica a vontade de comer! Fica a fome e a tristeza. Fica o santo e a barraca. Fica junho sem festa de verdade.

João 2, 1-11
Deuteronômio 26, 5-11
Êxodo 23, 14-19

Ficamos nós, luteranos, sem saber o que fazer com a festa de santo dum Brasil catolicizado, afro e indígena. Uma mistura danada que deu em festa! E muita festa num Brasil sudeste, norte e nordeste. A lógica da festa distributiva após a colheita da cultura afro-indígena vai se misturando com os santos. Vieram os padres, colocaram barraca, começaram a vender comida. Nós fazemos a festa por folclore, meio sem saber direito como ficar nela. Sem santo, sem negros, sem índios… É nesta época de festa de santo que fica muito estranho ser, ao mesmo tempo, brasileiro/a e luterano/a… precisamos achar nosso lugar nesta história. Gostamos de festa também, mas não sabemos como ficar nestas festanças… Com santo ou sem ele, podemos aprender o princípio das festas e o segredo da alegria dos povos indígenas e africanos migrantes. Festa é celebração de gratuidade, da reciprocidade. De comida distribuída. De renovação a cada ciclo do milagre da colheita, dada por Deus, pela terra e por nossas mãos. E de gratuidade parece que entendemos! Pois não foi Lutero quem recobrou o princípio da g r a ç a na tradição cristã no começo da modernidade? Como não entender de gratuidade, se é central em nossa teologia, em nossa confissão?? Poderíamos ensaiar melhor esta melodia da gratuidade, da graça, junto a nossos irmãos e irmãs indígenas e afros, para tornar nossa espiritualidade e prática cotidiana numa festa cheia de GRAÇA. Temos a teologia, falta-nos a espiritualidade centrada na graça, que traz a verdadeira alegria.

Em nossa tradição cristã tem muita festa. Na tradição bíblica há muitos relatos sobre festa. O povo israelita, assim como os lavradores/as no Brasil, também celebravam três grandes festas agrícolas no ciclo anual. Festas de colheita do cereal, das uvas e frutas (Ex 23 – calendário das festas israelitas). Ali, tudo era oferecido para Javé, Deus dos israelitas, pois era dele a terra e a graça da produção. Nada pertencia a ninguém. Tudo era de Deus e para o bem comum. A lógica da reciprocidade está na raiz das festas e da alegria. A lógica do acúmulo sempre acabou com as festas.

A comunidade do Evangelho de João introduz a atuação de Jesus com o cenário da FESTA. Este mesmo cenário já o temos em Gênesis 1 e 2, onde é apresentada a grande festa de Deus, a criação do cosmos, de tudo o que nele existe (água, ar, terra, fogo, plantas, animais, aves, muita comida e beleza). Também nós, homens e mulheres, fazemos parte desta grande festa. A festa de Deus é obra de muita VIDA. Imagem e semelhança de Deus. A festa é lugar de muita comida, bebida, de flores, de beleza e, acima de tudo, tem um clima de alegria. Nas festas da Palestina, especialmente nas judaicas, o vinho era fundamental. Quando o vinho acabava também a festa acabava. Enquanto havia vinho e pão a festa prosseguia.

Neste Brasil, tão cheio de festas neste mês de junho, quem sabe podemos tirar algumas lições para nossa vida pessoal, comunitária e eclesial…

– Recuperar e interiorizar a dimensão integral da CRIAÇÃO (planeta, seres humanos). Somos a festa de Deus. A vida em toda sua integralidade é a festa de Deus. Recuperar esta dimensão do todo, em que cada qual se perceba como um pedaço relacional da criação, torna-se cada dia mais imprescindível para podermos salvar a festa de Deus. Cada qual é um personagem da mesma festa, cada ser humano é um convidado a desfrutar da festa. Uma festa com muita comida, muita beleza, alegria. Será que temos consciência deste convite e desta festa?

– Se tivermos presente que a Criação é uma grande festa de Deus e nos sentirmos de fato como partícipes dela, logo, vamos ter a capacidade de perceber quando ela vai se acabando. Só percebe que a festa está acabando quem está nela. Precisamos tomar contato com a crise (festa da vida). Precisamos desenvolver a sabedoria e sensibilidade para perceber a crise desta festa. A sociedade sempre viveu em crises, diferenciadas por lugares e temporalidades, mas parece que a crise de agora tem dimensões ameaçadoras. Mais de um terço da população mundial está passando fome e mais da metade do planeta já foi desmatado… Há buracos na camada de ozônio, as fontes de água potável ameaçadas…

– Às vezes, sabemos compreender os sinais dos tempos, queremos agir, mas não sabemos como, por onde começar. As festanças rurais de santo e os textos bíblicos (tradições culturais tão diferentes, mas tão parecidas) podem nos ensinar: recriar no meio, com, a partir do velho. Da velha terra nascem todo ano novamente brotos novos que dão espigas e alimentam o povo. Na vida é assim. Nada nasce do nada. Transformar o velho que há em nós diariamente (Lutero), nos misturarmos no meio dele para juntos fazermos surgir o novo diariamente. De pouco em pouco, cada dia! É só assim que a festa pode continuar. Este ato transformador possibilita a continuidade da festa, a VIDA!

– Acreditar que a vida é possível sem barraca que troca comida por dinheiro. Recuperar a dimensão da gratuidade, que é crista, é indígena, é afro, é oriental. A festa se transformou numa grande barraca onde se vende tudo, até alegria (será?). É uma questão de fé acreditar firmemente na lógica da gratuidade – ela é um milagre – para que nossa vida possa encher-se mais de sentidos profundos, quebrando assim, dentro de nós um pouco desta lógica do mercado onde tudo se mercantiliza, até a relações entre as pessoas. As relações entre os seres humanos passam pela “coisificação” – tudo é comprável e vendível. Crer de fato que há abundância de colheita nesta terra e que precisa aparecer para a festa, ofertada a Deus, partilhada entre irmãs e irmãos. Sem essa oferta aparecer não vai ter festa, não vai ter alegria, para ninguém. 

Pª Haidi Jarschel