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Prédica: Gênesis 2.4-15
Leituras: Lucas 13.6-9 e Romanos 8.18-25
Autor: Antônio Carlos Ribeiro
Data Litúrgica: 15º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 21/09/2003
Proclamar Libertação – Volume: XXVIII
Tema:

1. Introdução

Não havia ainda nenhuma planta do campo na terra, pois ainda nenhuma erva do campo havia brotado; porque Javé Deus não fizera chover sobre a terra, e também não havia homem para lavrar o solo. (Gn 2.5)

Quando os deuses ainda não eram invocados nos lugares altos e debaixo da terra não havia nenhum nome (…), quando os juncos ainda não estavam fixados nem os caniços visíveis; quando ainda não havia aparecido nenhum deus nem tinha recebido qualquer nome nem se submetido a qualquer destino (…). (Enuma Elish)

Tu, Aruru, criaste Gilgamesh, agora reproduzes uma imagem dele! (…) Quando Aruru ouviu isto criou no seu interior uma imagem de Anu. Aruru limpou as mãos, pegou um pouco de barro e ali a moldou (…). (Gilgamesh)

O despertamento da consciência cristã ocidental para os crimes cometidos contra a natureza aconteceu tardiamente e de forma irrefletida, pelo menos para alguns grupos de cristãos. Não se sabe se por ignorância ou simples arrogância, muitos dos que professavam a fé em Cristo foram tomados por um sentimento de apatia em relação ao mundo criado, enquanto outros posicionaram-se num patamar de superioridade, próprio de quem esqueceu o Cristo crucificado ao descansar seu olhar no glorificado, deixando de perceber a luta dos movimentos ecológicos nascentes, pequenos, periféricos e caracterizados como de esquerda, e até de exóticos.

Entre vários teólogos que começaram a buscar uma resposta da fé às demandas do ambiente estava Francis Schaeffer, um reformado suíço interessado num tema que, pela inexistência de catalogação, usava de empréstimo a categoria de Teologia Social Cristã ou mesmo Ética Cristã. Seu livro Poluição e a morte do homem, publicado em 1970 numa linguagem apologética e fundamentalista, em resposta a artigos publicados em revistas científicas, já pleiteava uma resposta do cristianismo ao desafio do meio ambiente.

Hoje é comum perceber a consciência ecológica nos segmentos da população com maior acesso à educação, especialmente em ambientes urbanos. Nos ambientes pré-urbanos, onde as posturas política mente correias precisam de um tempo para serem assimiladas, os ecologistas só agora têm criado estrutura para elaborar e veicular seus discursos na mídia, conseguindo tocar corações e mentes, e serem cada vez mais aceitos. Além disso, o que há é certa familiaridade com a natureza e sensibilidade na defesa dessas causas.

Os textos bíblicos indicados para as leituras neste décimo quinto domingo de páscoa e no dia da árvore chamam-nos a buscar uma espiritualidade que integra o meio ambiente e o respeito à natureza nessa perspectiva cúltica. O texto do Evangelho de Lucas (13.6-9) traz a parábola de Jesus sobre a figueira estéril que há três anos provocava frustração ao dono da propriedade. O responsável pelo pomar pediu mais uma chance e apelou para o adubamento orgânico. Só após esse expediente poderia ser cortada. O outro texto vem da carta de Paulo aos cristãos de Roma. Para falar sobre como a lei do Espírito, que se contrapõe ao cumprimento da lei de Moisés, proporciona liberdade aos filhos de Deus, Paulo se refere à natureza na carta aos Romanos (8.18 25), dizendo que a criação está sujeita à vaidade humana e aguarda a revelação dos filhos de Deus, para redimi-la do cativeiro da corrupção.

2. Contexto e ambiente

Os livros dos exegetas escritos até meados dos anos 80 vão fazer referência aos autores javista (J), eloísta (E), sacerdotal (P, de Priesterkodex) ou à Obra Historiográfica Deuteronomística (OHD) para tecer considerações sobre o Pentateuco, Tetrateuco ou Hexateuco, conforme a escola. Esta perícope é atribuída ao javista, ideia que não se sustenta mais com as recentes teorias dos ciclos de narrações e de tradições.

Para Schwantes, existem dois projetos em conflito, um ligado ao campo e outro à cidade, deixando perceber indícios de que os capítulos 2 e 3 contemplam uma tradição e que essa grande unidade não foi feita de uma vez. O trecho que fala dos rios que saídos do Éden irrigam o inundo todo (2.10-14), a busca da auxiliadora idônea (2.18-2'l), e até mesmo a árvore do conhecimento (2.7,17) foram alguns dos elementos reunidos na confecção do texto. Mas o contexto é o ambiente pré-urbano da roça, onde a terra tem importância ímpar (2.4), o caos é falta da 1'oca e do roceiro (2.5), a pessoa criada é constituída a partir do solo agricultável e dele faz parte (2.7) e o jardim, semelhante à roça, era cultivado e guardado (2.15).

O alimento surge a partir do trabalho da pessoa colocada no jardim para cultivá-lo e guardá-lo. Cultivar designa a dimensão produtiva d» terra e, segundo esse biblista, a forma substantivada do verbo hebraico designa a função do escravo. Mas guardar expressa a proteção à terra, ao que nela cresce e é arrancado para dar sustento, referindo-se às necessidades da própria natureza. Nas duas circunstâncias, há trabalho sem alienação, porque o alimento necessário à sobrevivência é retirado e a criação divina em toda a sua beleza e exuberância é preservada.

A relação entre o agricultor e a terra são expressivas do tipo de relacionamento possível entre o homem e o meio ambiente, de que as cidades, especialmente as metrópoles, passaram a ser uma ameaça. Da vida à morte. O homem vem do pó e passa a vida cuidando da terra, integrando seu suor à terra, cavando para dentro do chão, até ser por ele completamente absorvido. Até voltar a ser pó.

3. Análise do texto

Os exegetas elaboram os seguintes comentários a esses versos:

V. 4: o texto refere-se à terra ('adama) e ao homem dela criado ('adam). Seu nome vai lembrar-lhe permanentemente a sua origem. Ele é feito de matéria que pertence à terra.

V. 5: na estepe árida e imensa (éden), Deus plantou um jardim maravilhoso, com abundância de águas e plantas. Para o oriental, esse oásis é o verdadeiro paraíso. Aqui se contrapõem duas categorias de vegetais: a moita da planície, que cresce espontaneamente, e a erva da planície, os cereais, que não vingam sem a agricultura. Depois do pecado, a terra produzirá a vegetação não comestível (moitas, cardos, espinhos) e a comestível (os cereais). A primeira precisa apenas da chuva. A segunda demanda o trabalho humano, o esforço, o suor.

V. 6: a terra é descrita nua de vegetação pela falta da chuva para irrigar o solo. A irrigação vinha do seu próprio interior: um rio subia da terra para irrigar a sua superfície.

V 7: o mesmo Deus que criou (yasar) o homem como se fosse mu oleiro (yoser) soprou-lhe o fôlego de vida (nafah) nas narinas. Deus co locou naquele corpo o que o tornou vivo. Foi o Espírito de Deus (ruah’el) que me fez, e o sopro de Shaddai (nishmat shadday) que me animou (Jó 33.4). Essa concepção é a inversão do processo da morte. Ao morrer, o homem expele seu último alento para, na morte, desintegrar-se em pó.

V. 8: éden em sumério significa planície cultivável. E lá colocou o homem que havia criado, para trabalhá-la.

V. 9: nesse solo, Javé Deus fez brotar diversas árvores, inclusive a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal.

V. 10-14: os quatro rios que nascem no éden descrevem uma realidade mítica, mesmo lembrando os rios Tigre e Eufrates que, pela caudalosa corrente e fonte de fertilização, compõem o ambiente geográfico do Oriente Médio. O restante da descrição não corresponde a nenhum sítio encontrado na face da terra. O autor usa nomes simbólicos para referir-se a todos os rios da terra, em perspectiva universalista.

V. 15: o trabalho é constituinte básico da existência humana; c o que expressam os verbos cultivar e guardar. Isto nos empurra ao maior conflito humano sobre a terra: o trabalho como fonte do sustento. As sociedades não têm o direito de privar o ser humano da possibilidade de exercê-lo. Deus criou o trabalho humano com sentido e finalidade, e sem cansaço. A fadiga só aparecerá mais tarde (3.17-19). É o que se pode depreender da narrativa mítica.

4. Meditação: a árvore como protótipo da natureza

Cada vez que a NASA, a agência americana que monitora o espaço, publica relatórios denunciando ondas de desmatamentos em diversos pontos do planeta, ou ainda quando chegam as notícias de derramamento de petróleo nos mares, da pesca e caça predatórias e da emissão de gases poluentes, deparamo-nos com a nossa incapacidade de cultivar e guardar, tão belamente descrita na linguagem mítica do relato da criação.

Nesse contexto, as árvores têm um papel fundamental. Segundo Armindo Vaz, as árvores se destacam pela sua capacidade intrínseca de velar e revelar a força da natureza no ciclo anual da vida, ao regenerar-se periódica e persistentemente todas as primaveras e produz abundância de frutos maduros no verão depois de repousar e 'morrer' cada outono e inverno, e também por ser importante fonte de nutrição do homem ou de variegadas substâncias medicinais curativas, a árvore era espontaneamente associada com uma força biológica interior e invisível, que revivifica, faz crescer ou ressurgir de novo.

Para quem vive no ambiente rural, a relação com a natureza é tão viva que esta, por vezes, nem parece externa ao corpo, à família e aos pequenos ciclos de vida do cotidiano. Isso determina um modo de fruir a bela criação de Deus que é diferente do experimentado pelos que vivem nas grandes cidades. Apesar da consciência crescente da necessidade de preservar a natureza e até da pressão da população sobre os governos, ainda existe muita destruição, poluição e abandono.

O relato bíblico da criação deve provocar nova onda de reflexão sobre o meio ambiente, como o espaço criado por Deus para a vida. Num país com mentalidade jurídica patrimonialista, herança do regime colonial, a mentalidade de posse é profundamente arraigada, ainda que para o desuso dos bens da natureza, especialmente o solo. Esse atraso das elites econômicas gera pressões ilegítimas, mas economicamente poderosas no retardamento de avanços pelos quais a sociedade clama desesperadamente. Nesse contexto, aparecem as demandas por terra para o cultivo no campo e para a moradia nas cidades.

A defesa do lucro e do patrimônio privados é responsável pelo desperdício dos verdadeiros patrimônios públicos que são as florestas tropicais, os rios e os mares, os ecossistemas, as áreas de plantio, a exploração das reservas de minérios e as muitas outras riquezas exploradas de forma predatória e retiradas do país de forma ilegal e sem o recolhimento dos impostos devidos ao erário. Além de tudo isso, é preciso superar aqui o falso dilema de preservar a natureza da dilapidação dos seres humanos. Os exploradores, nesta parte do mundo, são gente rica, influente e que compra concessões a peso de ouro, corrompendo a todos para conseguir o que quer.

O outro grande patrimônio de nosso país é a sua gente desrespeitada e enganada, a quem os governos tratam com total descaso. Nesse ambiente, preservar a criação de Deus implica a construção dos espaços urbanos habitáveis, melhoria nas condições gerais de alimentação, saúde, educação e transportes, sem as quais a imensa maioria abandonada não pode fazer o caminho pedagógico de aprender a respeitar o patrimônio que herdou da natureza, a exigir parcimônia na administração dos bens públicos e reconstruir cotidianamente o espaço em que habita.

5. Subsídios litúrgicos

Cânticos
Cancioneiro O Povo Canta, p. 160, 69 e 66 Hinos do Povo de Deus, n° 107 e 165

Confissão de pecados

Confessamos, Senhor, nossa participação, passiva e ativa, nos muitos crimes praticados contra a tua criação. Por sermos tomados de medo e impotência, pedimos
Tem piedade Senhor.

Confessamos, Senhor, nosso medo de ficar isolados por demitia ar o que a sociedade não considera crime; recuamos e nos calamos e, por isso, pedimos
Tem piedade Senhor.

Confessamos, Senhor, nossa incapacidade de articular os demais filhos e filhas teus que têm essa consciência de defesa do mundo como espaço de fruição da vida e, por isso, pedimos
Tem piedade Senhor.

Bibliografia

BALLARINI, T.; GALBIATI, E.; MORALDI, L. Introdução à Bíblia Petrópolis: Vozes, 1975. t. 2, v. 1.
CIMOSA, M. Gênesis 1-11: a humanidade e sua origem. São Paulo: Paulinas, 1987.
HOMBURG, K. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1981.
SCHWANTES, M. Projetos de esperança: meditações sobre Gênesis 1-11. Petrópolis: Vozes/CEDI/Sinodal, 1989.
VAZ, A. S. A visão das origens em Gênesis 2,4b-3,24. Lisboa: Didaskalia/Carmelo, 1996.

Proclamar Libertação 28
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia