Prédica: Marcos 9.38-50
Leituras: Números 11.4-6,10-11,16,24-29 e Tiago 5.1-6
Autor: Arnoldo Mädche
Data Litúrgica: 19º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 19/10/2003
Proclamar Libertação – Volume: XXVIII
Tema:
1. Introdução
Na linguagem de hoje, diria que os 12 discípulos fazem um estágio prático para verificação de seu aprendizado. Com Jesus, fazem um relatório de experiências, recebem orientação sobre o perigo da hierarquização no grupo e são advertidos sobre perigos e desvios de rota do objetivo do Evangelho, qual seja: testemunhar o reino de Deus! Estamos diante de um momento pedagógico (estágio e avaliação) e democrático (o poder do Evangelho também opera fora do círculo mais íntimo dos 12 discípulos) que culmina com uma lição: anunciar o reino é fazer uma opção pela vida!
2. Texto
Trata-se de uma composição de passagens que relatam momentos diferentes da atuação de Jesus com seus discípulos. Cada porção de texto poderia tornar-se uma perícope para pregação. O conjunto, porém, faz sentido e ajuda a construir uma mensagem interessante para a comunidade atual.
V. 38-40: o encontro dos discípulos com um exorcista que se recusa a aderir ao grupo levanta o tema da autoridade delegada: quem pode expelir demônios? Os discípulos, liderados por João, resolvem a questão proibindo: sem nós, nada feito! Em Marcos 9.17-18, porém, os próprios discípulos não puderam exorcizar o espírito que emudecia um jovem.
Diante desse fato, Jesus (v. 39-40) desaprova a atitude, colocando um critério: em meu nome tudo é possível ao que edifica, independente de sua posição no grupo de discípulos. Também fora do grupo dos 12, há fé e evangelho operando.
No contexto de nossa perícope (v. 33ss.), surge uma discussão sobre quem é o maior, que mais tarde será o grande tormento na história da cristandade. Cisões, excomunhões, heresias e ortodoxias terão suas causas nesta pergunta pela hierarquia reconhecida ou violada que, para surpresa dos leitores da Bíblia, está presente nos primórdios da Igreja.
Jesus desautoriza seus seguidores a monopolizar a graça e o poder de pregar em seu nome. Aliás, trata-se de um tema que já foi ou continua presente na história da IECLB.
V. 41-42: Jesus fala dos sinais daqueles que seguirão seus passos em prol do reino de Deus. As experiências da caminhada são amplas. No v.. 41, trata-se do fazer e, no v. 42, do evitar. A cidadania da fé exige de cada qual ser Cristo para os outros. Quando isso acontece, o galardão estará assegurado. E quem faz os outros tropeçar (skandalíse), principalmente os pequenos da fé, melhor seria amarrar-se numa grande pedra de moinho e jogar-se ao mar. Por detrás dessa figura e menção deve haver uma cultura histórica da Palestina, que não consegui encontrar nos comentários referentes a esta passagem.
V. 43-50: Jesus faz advertências individuais na 2a pessoa do singular, e isto para ser mais enfático. É a única passagem em que ele faz isto no Evangelho de Marcos. Pecados são tropeços que começam de maneira pessoal e que, entrando pelo corpo e pelos seus membros, centralizam-se no coração. Por outro lado, tua mão, teu pé, teus olhos são instrumentos vitais na cultura campesina que devem estar a serviço da coletividade familiar e do clã. Essa importância do indivíduo para o coletivo é a força do testemunho em favor da vida que o evangelho delegou à humanidade. É uma força que pode se tornar tropeço para o próprio crente e para sua comunidade mais próxima, que exige até o sacrifício da renúncia (mutilação). Melhor seria, diz Jesus, ser um maneta, um aleijado ou um caolho do que perder o centro da vida.
A opção de entrar no reino ou de ser lançado no inferno (v. 47) é muito real para os ouvintes de Jesus. O gee hinon, em hebraico, ou o geena, em grego, de fato, situa-se ao sudoeste de Jerusalém. Era o local do culto pagão ao deus Moloque (ver também Isaías 66.24), que, mais tarde, seria transformado em lixeira da cidade. Ali não se apagará o fogo que ainda arde em nossas lixeiras urbanas; ali era possível observar e se horripilar com a ação dos vermes e sentir o cheiro da putrefação que um dia aconteceria no juízo final.
Nos v. 49-50, é acrescida a figura do sal que também queima como fogo. O sal é bom, mas se vier a degenerar-se deixa de ser paz para os outros.
3. Meditação
O evangelho veio para libertar as pessoas do individual para a coletividade. Assim como na parábola do tesouro escondido (Mateus 13.44) ou da pérola preciosa (Mateus 13.45-46), o que importa é investir tudo, incluindo pagar o preço do sacrifício incomum. A fé exige a perspectiva futura que foi o consolo dos mártires e dos missionários, enviados para contextos difíceis. Bonhoeffer ensinou-nos que a igreja de Jesus Cristo só existe se for igreja para outros. Há muitos tropeços, individuais e coletivos nessa caminhada histórica de ser povo livre e de construir uma sociedade justa e amorosa.
Vejo, porém, o perigo de usarmos esse texto no sentido da catequese do medo: pintar o inferno para impor uma conduta moralista e oportunista aos crentes. Já vai longe o tempo em que a igreja oferecia às vítimas da escravidão o consolo do sacrifício aqui a favor do pretenso prêmio da eternidade junto a Deus. O fogo inextinguível (v. 43) e tudo que decorre dessa teologia do medo pode ser reinterpretado pelo próprio ato afirmativo de Jesus no v. 36 deste capítulo: o símbolo da criança no meio do grupo em avaliação! Tomando-a nos braços, um gesto de carinho pela vida, constitui uma outra interpretação possível para a nossa perícope. Quem luta pela vida para todos, o que também exige renúncias e sacrifícios pessoais, está a favor do reino que Jesus veio semear entre nós.
Jesus diz enfaticamente em João 10.10: Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância. Essa fé na vida estará presente enquanto estivermos atuando em nome de Cristo. O testemunho do crente e da comunidade em favor da vida com qualidade está na direção afirmativa de Jesus e hoje, mais do que nunca, precisa ser vivida e pregada. O texto, ademais, é rico em figuras e símbolos: exorcismo, lixeira a céu aberto com fogo e vermes, amputação de membros, sal bom e ruim, fogo salgado, o que permite falar de coisas muito reais de nosso tempo. Mais uma vez, as lutas pela fé evangélica continuam sendo de foro íntimo, mas suas conseqüências determinam desafios coletivos. Abraçar a vida dos outros é abraçar-se a si próprio, eis um lema para cada um de nós que estamos nos bancos das igrejas, seja no ministério ordenado, nos grupos de trabalhos comunitários ou no rol de membros do corpo de Cristo.
4. Pregação e liturgia
* Fazer uma introdução ao contexto maior de nossa perícope (8.22 10.152), o que nos ajuda a oferecer a moldura e a situação especial em que falávamos dessa reunião de avaliação dos discípulos com Jesus.
* O poder do Evangelho é de todos os que vivem e falam em nome de Jesus, o que implica a democratização do testemunho.
* O cuidado com as armadilhas e tropeços na caminhada da fé pessoal e coletiva
* O reino de Deus começa ao abraçarmos a vida em busca de sua plenitude (João 10). O escopo da perícope deve ser explicitado como desafio para o exercício coletivo do amor aos outros sem perder o horizonte individual.
Penso que, para a liturgia, o sal bom poderia ser abençoado e distribuído entre as pessoas presentes no culto. Com ele, cada qual poderia preparar um alimento para ser repartido com alguém carente na sua área de convivência, como um ato de partilha diaconal.
Bibliografia
GROB, Rudolf. Einführung in das Markus-Evangelium. Zürich: Zwingli, 1965. p. 143-150.
GRUNDMANN, Walter. Das Evangelium nach Markus. Berlin: Ev. Verlagsanstalt, 1980. p. 259-267.
JOÃO, Antônio L. Meditação sobre Marcos 9.38-50. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1996. v. XXII, p. 250-253.
SCHNEIDER, Sílvio. Meditação sobre Mc 9.43-48. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1977. v. II, p. 138-143.
Proclamar Libertação 28
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia