Prédica: Miquéias 5.2-4
Leituras: Lucas 1.39-45 (46-55) e Hebreus 10.5-10
Autor: Haroldo Reimer
Data Litúrgica: 4º Domingo do Advento
Data da Pregação: 21/12/2003
Proclamar Libertação – Volume: XXIX
Tema: Advento
1. Preparando o espírito
O texto previsto para a pregação já foi comentado em vários volumes de Proclamar Libertação (VII, p. 88s; XII, p. 63s; XXVII, p. 29s), porém todos com breves diferenças nas delimitações. Como a maioria dos auxílios homiléticos do PL tem enfatizado mais a “atualização” do texto ou o destaque de algum conteúdo específico, o presente estudo procurará apresentar alguns apontamentos exegéticos tomados de literatura mais recente na pesquisa. Eventuais inspirações para “preparar melhor o espírito” podem ser tomados dos estudos dos outros volumes, para quem os tiver à mão.
2. Apontamentos exegéticos sobre Mq 5.2-4
Na literatura sobre o livro de Miquéias, há um certo consenso de que este livro profético abriga vozes de épocas ou momentos históricos distintos, reunidas no texto através de processos vivos de releituras. Grosso modo, maneja-se a tese de que conteúdos dos capítulos 1 a 3 do livro remontam ao profeta Miquéias de Moresete-Gat, na segunda metade do século VIII a.C. Seria algo como o “escrito memorial de Miquéias” ou o “panfleto de Miquéias”. Para os capítulos 4 e 5 postula-se uma provável releitura exílica ou pós-exílica, que pressupõe os conteúdos anteriores, sobretudo já toma realizados o juízo e a desgraça anunciados pelo profeta. Sabidamente, há uma mudança abrupta de 3.12 para 4.1, isto é, do anúncio de um juízo radical passa-se em 4.1 para o anúncio de uma graça radical, que transignifica as grandezas antes denunciadas e ameaçadas com um juízo. Em relação aos capítulos 6 e 7, haveria que trabalhar com a mesma hipótese de releitura continuada, embora haja autores que pensem até em um profeta homônimo do reino do Norte do período pré-exílico.
Sobre o texto de Mq 5.2-4 (na numeração da Bíblia de Almeida), previsto para a pregação, trabalha-se, em geral, com dois pressupostos sedimentados na tradição. O primeiro tem a ver com o “corte” do texto, que isola os versículos 2 a 4 de 5.1 (no texto hebraico = 4.14). O segundo pressuposto lê o texto sob o rótulo de “texto de anúncio messiânico”. Sobre ambos os pressupostos há que fazer alguns comentários para uma melhor compreensão do texto.
Com bons motivos pode-se aceitar a tese de que em 4.8-5.3 (na versão de Almeida diminui-se um versículo a partir de 5.1, pois o texto hebraico 5.1 de Almeida equivale a 4.14) encontra-se “uma primeira camada da releitura do escrito memorial de Miquéias” (Kessler, p. 197). A composição de 4.8-5.3 é constituída de três ditos (4.9-10; 4.11-13 e 4.14-5.3), que iniciam com a partícula “e agora” (hebraico: we`attah). Comum a todos os três ditos é que são dirigidos a figuras femininas mencionadas na forma singular: “filha de Sião” em 4.10,13 e “filha do flagelo” (alemão: Tochter der Ritzung) em 4.14 (leitura preferível em lugar de “filha de tropas” – Almeida). Os três ditos tratam de um “tempo-agora” e de sua ruptura ou transformação.
Em termos de conteúdo, em 4.9-10 fala-se de uma deportação; em 4.11-13, de gozações de povos vizinhos sobre a desgraça acontecida; em 4.14-5.3, do final do reinado davídico.
Isso não precisa ser entendido como uma seqüência temporal em sentido histórico restrito, mas, muito provavelmente, como alusão e reflexão conjunta aos acontecimentos da destruição de Jerusalém em 586 a.C. e a conseqüente deportação da elite e de parte do povo. Tematicamente, trata-se de três necessidades distintas advindas dessa “desgraça” histórica: deportação, gozação e perda da autonomia política. Com isso também já se está direcionando a datação do conjunto de 4.14-5.3 e também do texto de Mq 5.2-4 como sendo de origem exílica ou até pós-exílica.
O texto de 5.2 (Almeida) tem uma relação estrutural e estilística com 4.8. Em ambos há uma alocução a uma grandeza (= “e tu”), seguida de uma indicação de nome e de lugar. Ambos os textos falam do retorno de um governante antigo, respectivamente de um novo governante. Em 4.8 fala-se de “a ti virá”; em 5.2, de “de ti me sairá”. O versículo 4.8 serve, assim, como introdução antifônica aos três ditos (Kessler, p. 197).
Mesmo que não seja para a pregação, pelo menos para a reflexão exegética convém analisar 4.14-5.3 (BHS) como uma perícope, ligada, por sua vez, ao conjunto maior de 4.8-5.3. Convém lembrar que a ligação estilística se dá justamente pela partícula “agora” (we`attah – uma olhada na disposição gráfica do texto na BHS ajuda neste sentido). Em 5.2-4 (= BHS: 5.1-3), trata-se de um anúncio de um novo governante e para isso justamente o versículo 4.14 constitui como que a “folha negativa” ou o pressuposto do anúncio. Igualmente convém ter presente que cada um dos ditos iniciados por “agora” indica uma necessidade ou dor específica, mas derivada do conjunto da destruição de Jerusalém. O tempo da “desgraça” é o tempo do “agora”.
No “agora” de 4.14-5.3 (BHS), a dor ou a necessidade já é expressa com a invocação “filha do flagelo”. O termo hebraico gedûd significa em vários lugares “milícia, tropa”, mas é preferível, aqui, fazer a derivação da raiz verbal gadad com o significado de “impingir-se flagelos”; em Jr 48.37, usa-se o plural do termo para designar o ato de “impor-se machucados de flagelação”. Com isso, a abertura do versículo estaria já indicando a dor da situação, talvez até apontando para rituais de penitência. O nome “filha do flagelo” seria aqui, então, um nome simbólico-substitutivo para Jerusalém. Essa situação de dor é a seguir melhor expressa por um citado dentro de 4.14: “Sítio pôs-se contra nós, com a vara fere-se a face do juiz de Israel” (Almeida: 5.1). A indicação deve ser para a situação de 586 a.C., na qual o governante da dinastia davídica é deportado, talvez até sob maus-tratos, como se pode depreender de exemplos similares a partir da iconografia mesopotâmica. O “bater no rosto” é indicativo para situações de humilhação do outro (2 Rs 22.24; Is 50.6; Sl 3.8; Jó 16.10). O termo “juiz” pode ser relacionado ao governante (Os 7.7; Sl 2.10) e a escolha do termo da raiz hebraica shpt pode ter sido motivada para servir de aliteração para o termo “com vara” (da raiz shbt).
Em relação a essa situação de dor e perda neste tempo “agora” da desgraça exílica ou pós-exílica, anuncia-se a vinda de um novo governante. O início de 5.1 (Almeida: 5.2) deve ser entendido de forma adversativa: em contraposição à Jerusalém flagelada indica-se para a Belém-Efrata redentora. A esperança por um novo governante provém da periferia. A associação com a tradição davídica é inegável, embora não se faça menção do nome de Davi. Da pequena Belém sairá aquele que será grande. Há um motivo de transformação de destino. Na expressão “de ti me sairá” deve-se entender o “me” como relacionado a Deus-Yahveh, embora em 5.3 (BHS: 5.2) se fale de Deus na terceira pessoa. Para Deus é que sairá o novo governante. Não se deve estranhar essa referência, pois a ligação Deus-governante pode ser verificada em outros textos (1 Sm 16.1). Esse governante é relacionado com um tempo das origens “tempos antigos” e “dias da eternidade”. Provavelmente trata-se de uma expressão de estrutura mítica: o reinado em Judá está relacionado com o lugar histórico-mítico de sua origem: Belém. De Belém saiu Davi, de Belém sairá o novo governante, estilizado com “cores” indicativas da dinastia davídica.
Em 5.3 (BHS: 5.2), há uma mudança de estilo. Agora fala-se de Yahveh na terceira pessoa. Deus é o sujeito, e os israelitas são o objeto da ação tratada. Em termos de conteúdo, começa a decidir-se o conteúdo “messiânico” desse texto. A referência da expressão “portanto” não fica totalmente clara; deve-se entender como indicativo de conseqüência do novo governante. A expressão “Yahveh os entregará (somente) até ao tempo” deve referir-se ao tempo do exílio ou das dores. A “virada” da situação é indicada com “a que está em dores tiver dado à luz”; aí, então, começará um novo tempo. É inquestionável que a tradição messiânica ulterior e, posteriormente, a interpretação messiânico-cristológica utilizou esse texto para, junto com outros elementos, “compor” a esperança messiânica no período intertestamentário e na época do Novo Testamento. Uma relação de 5.3 (Almeida) com Is 7.14 para sustentar o caráter messiânico tem poucos argumentos a favor, a não ser o uso do verbo yalad / “dar à luz”. Em Miquéias, a esperança não é uma criança que vai nascer, mas quando tiver passado a dor como a de uma parturiente, então começará um novo tempo, com um novo governante. A menção da “que está em dores (de parto)” deve ser relacionada com 4.9-10. Aí, a dor do tempo “agora” da desgraça é comparável aos momentos de dor intensa de uma parturiente. Essa dor intensa da desgraça é anunciada como tendo fim, e aí começará o tempo da “virada” com algumas conseqüências positivas para os filhos de Israel. Uma primeira conseqüência é indicada pela expressão “o restante dos irmãos voltará”, que pode estar indicando a volta do exílio e um novo começo.
Em 5.4 (BHS: 5.3), descrevem-se mais duas conseqüências. As expressões “ele se manterá firme e apascentará o povo na força do Senhor” indica a prática do governante, e “e eles habitarão seguros” refere-se à nova situação do povo no futuro da “virada”. Em 4.9-10, há um movimento para fora, para a insegurança do campo aberto; aqui em 5.4 há um movimento rumo à segurança, provavelmente na reconstrução e no repovoamento da Jerusalém outrora flagelada. Nesse novo tempo, o governante será engrandecido até os confins da terra. Há, pois, em 4.14 até 5.3 (BHS) os seguintes movimentos: “da humilhação do juiz de Israel vai-se para a pequena Belém-Efrata, e daí passando pelo tempo da superação da dor indo até o domínio universal” (Kessler, p. 228).
Embora haja uma tradição interpretativa nesse sentido, o texto de Miquéias 4.14-5.3 (5.2-4) não trata especificamente de uma esperança “messiânica”. Anuncia-se somente a vinda de um futuro, novo governante, pois o título “messias” sempre é usado em relação a um governante ungido vivo (1 Sm 2.10; 24.7,11; Sl 18.51), inclusive na referência a Ciro em Is 45.1. Este novo governante provocará a “virada” na esperança e na história do povo crente em Yahveh.
3. Rumo à pregação
Por se tratar do quarto domingo de Advento, em geral o espírito no dia da celebração estará voltado para a iminente celebração do nascimento de Cristo, o Messias da fé do povo cristão. Qualquer celebração deve contar com esse “espírito de Natal”.
Deve-se lembrar que o texto de Mq 5.2-4 é um dos elementos que ajudaram a “compor” a esperança messiânica no século I a.C. e um elemento importante para a interpretação de Jesus na linhagem de Davi através justamente da indicação de seu nascimento em Belém. Isto constitui uma tradição de memória de fé e esperança ativa. Para a comunidade cristã não basta a memória do passado (tradição), mas importa que a tradição se converta em experiência viva de fé na atualidade. Uma tônica da pregação poderia ser a reflexão de como a fé em Jesus como Messias ajuda a superar os tempos “agora” de desgraças, como nossa tradição sobre Jesus se articula na vivência viva da fé.
Bibliografia
DEFREYN, Vanderlei. Miquéias 5.2-5. In: HOEFELMANN, V.; SILVA, J.A.M. da. Proclamar Libertação, São Leopoldo: Sinodal; IEPG, 2001. p. 29-33.
KESSLER, Rainer. Micha. Freiburg; Basel; Wien: Herder, 1999.
ZABATIERO, Júlio Paulo Tavares. Miquéias: a voz dos sem-terra. Petrópolis; São Leopoldo: Vozes; Sinodal, 1996.
Proclamar Libertação 29
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia