Prédica: Lucas 4.1-13
Leituras: Salmo 91.1-6,9-12 e Romanos 10.8b-13
Autor: Sidnei Noé
Data Litúrgica: 1º Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 29/2/2004
Proclamar Libertação – Volume: XXIX
Tema:
1. Introdução: A vivência inconsciente do texto
O assunto proposto para a homilia deste domingo apresenta nada mais nada menos do que um conteúdo central da existência cristã. A tentação está para a vida cristã, assim como, por outro lado, a fé, a confiança e a certeza (no sentido de certitudo e não de securitas, conforme a distinção de Melanchthon). São os dois lados, as duas forças, os dois poderes que paradoxalmente estão em uma constante tensão na vida cristã.
Como está em questão um conteúdo que toca todos nós, que ora sentamos para preparar os elementos a serem compartilhados e vivenciados no encontro da congregação neste final de semana com Deus, sugiro que nos preparemos de forma introspectiva. Comecemos por nós mesmos a aproximação a esse conteúdo!
Um caminho que pode permitir essa aproximação introspectiva ao texto é aquele que torna o subconsciente um aliado da reflexão. Para que isto se torne possível, sugiro uma leitura do texto, despojada de preocupações. Basicamente podemos contar com o auxílio do inconsciente na meditação do texto, de duas maneiras: através dos sonhos e através da livre associação.
Enquanto os sonhos têm uma dinâmica própria, com a qual só podemos contar mediante constante exercício de integração de suas mensagens ao nível consciente, as livres associações poderão nos ajudar de forma mais imediata. Leiamos o texto e tomemos o tempo para perguntar o que nos ocorre espontaneamente. Suspendamos neste momento aquilo que sabemos, que achamos importante, que queremos dizer a respeito e, inclusive, interrompamos esta leitura. Apenas perguntemos às nossas entranhas, às nossas emoções, o que esse texto evoca. Anotemos isso! Se não o aproveitarmos para a pregação, podemos aproveitá-lo para um melhor conhecimento de nós mesmos. Façamos isto agora!
– Interrupção desta leitura para visita ao texto!
Tomo a liberdade de compartilhar com você, cara leitora e estimado leitor, o que este texto evocou em mim. Senti-me profundamente dividido e me recordei de uma situação quando ainda era criança e tinha um objeto de desejo na mão e uma voz interior me dizendo que não poderia desfrutá-lo. Também me lembrei de uma daquelas eternas manhãs em que, enquanto filho único, estava sozinho em casa e margeava o desespero por não saber quando nem se os pais voltariam. E, finalmente, lembrei-me de um sonho, quando em meio ao culto dominical sobrevoava a congregação de braços abertos e de batina, abençoando os presentes.
Chamo atenção para o fato de que todas as pessoas que participam da celebração também realizam suas livres associações, à medida que ouvem a leitura do texto. Ao invés de ignorar, evitar ou combater essa participação dos inconscientes das pessoas que participam da celebração, a homilia atingiria um nível existencial e vivencial se fosse oferecida uma oportunidade e um espaço para que as pessoas presentes também fizessem esse exercício de livre associação e, eventualmente, pudessem compartilhar o resultado com a pessoa a seu lado.
2. Desdobramento: consciente e inconsciente meditam sobre o texto
Cheio do Espírito Santo: O que significaria estar cheio do Espírito Santo? Acaso seria sentir-se forte, poderoso, inatingível, acima de todas as coisas – do bem e do mal? Certamente aqui já começa a tentação para nós que lemos, ouvimos e meditamos sobre o texto. É aquela tentação que enfoca a pergunta pela vida sob a cruz ou sob a glória. A advertência vem de Lutero: Wer den bittern Cristum nicht wil haben, wirt sich am honig todfressen (Quem não quer aceitar o Cristo amargo, este se empanturrará até a morte de mel). A cruz supõe a condução, em meio à fraqueza, por bons poderes, enquanto a glória facilmente impele à soberba e ao menosprezo às dificuldades da vida cristã.
Levado ao deserto pelo mesmo Espírito: Aqui reside o inusitado do texto. Imbuídos de uma mentalidade maniqueísta, dificilmente conseguimos compreender que não é o outro, que não é o mal que leva ao deserto para a luta atroz contra a tentação, mas é o próprio Espírito Santo, ou seja, o próprio Deus. O próprio Espírito é quem leva Jesus qual ovelha ao matadouro, ao palco, onde ocorre o embate com as tentações. Esta constatação permite ao teólogo reformado suíço K. Barth afirmar que a mais terrível tentação, no sentido de provação, não é aquela que vem de dentro, nem aquela que vem de fora, mas aquela que vem de cima: “Todo trabalho teológico só será bom e aproveitável perante Deus e os homens se constantemente for exposto a tal fogo, se constantemente for levado a atravessar tal fogo – que é o fogo do amor divino, mas que não deixa de ser fogo devorador”.1 Essa tentação ocorre quando Deus fala “na terrível linguagem do seu silenciar”:
As mós da atafona giram – mas giram sem moer grão. As velas foram colocadas; mas não há vento que ponha o barco em movimento. O poço se acha aí, com o encanamento em perfeito estado; mas não produz água. Há ciência – mas não há conhecimento, a luzir, no poder de seu objetivo. Há crença – mas não há fé que Deus incendiou e que, em conseqüência, passe a transmitir o fogo a outros. O que há é que em realidade não acontece o que parece estar acontecendo. Pois o que acontece é que Deus, de quem está tratando pretensamente, se limita a silenciar a respeito de tudo que vai sendo pensado e falado – infelizmente não por ele, mas apenas sobre ele.2
Tentado pelo diabo: Similar à história de Jó, nas palavras de Bonhoeffer, “Deus parece estar complacente com Satanás” 3. Sua atuação nessa história é malograda do início ao fim. Segue, porém, o seu desígnio de tentar, provar, levar o ser humano ao desespero. No embate com Jesus, ele, porém, é colocado em seu lugar como criatura caída, que não logra triunfar diante do ser que vive em obediência e fidelidade a Deus.
Sentiu fome: Há algumas situações que tornam o ser humano especialmente vulnerável às tentações. Se lembrarmos a oração do Pai-nosso, onde suplicamos o pão nosso de cada dia dá-nos hoje, percebemos a profundidade dessa vulnerabilidade. Assim comenta Lutero: “É palavra breve e simples, mas também abrange muito. Pois quando mencionas e pedes ‘o pão de cada dia’, pedes tudo o que é necessário para que se tenha e saboreie o pão cotidiano e, por outro lado, também pedes que seja eliminado tudo o que o impede”4. Mais adiante, no comentário desta petição do Pai-nosso, Lutero relaciona essa vulnerabilidade à tentação através do diabo: “Em suma, dói-lhe que alguém receba um bocado de pão de Deus e coma em paz. E, se estivesse em seu poder e não o impedisse, depois de Deus, a nossa oração, certamente não nos ficaria haste no campo, centavo em casa, nem mesmo uma hora de vida, especialmente aos que temos a Palavra de Deus e gostaríamos de ser cristãos”5.
As tentações: Etimologicamente, sob o termo latino tentatio consolidaram-se ao longo da história basicamente dois significados relacionados, porém distintos: por um lado, tentação, enquanto ser provado por Deus, no sentido de tribulatio (tribulação). Ou seja, em meio ao sofrimento é testada a firmeza da fé. E, por outro lado, tentação, no sentido da sedução pelo e para o mal. Estes dois sentidos foram subsumidos no período medieval nas fórmulas tentatio probationis (tentação para a provação) e tentatio deceptionis (tentação para a sedução e/ou ludibriação)6. Dentro desta última seriam basicamente três as fontes da sedução para o mal: a carne, o mundo e os demônios, se bem que a carne e o mundo são, muitas vezes, instrumentos usados pelo mal para sua ação nefasta.
Em Lutero, vemos que ambas as formas de tentação fazem parte da vida cristã em sua fórmula oratio, meditatio e tentatio. O que importa não é fugir delas, mas enfrentá-las em confiança e fé: “O ‘não induzir-nos em tentação’ quer dizer, pois, que Deus nos dá poder e vigor para resistir, contudo sem que a tentação seja tirada ou anulada”7. Uma importância especial, nesse contexto, é dada aos sacramentos, pois, em meio à tentação, estes lembram a presença e a bênção de Deus.
Mande que esta pedra vire pão. Desde os primórdios da Igreja Cristã traçou-se um paralelo entre as tentações de Cristo e a narrativa da queda em Gênesis. Trata-se da aplicação da hermenêutica paulina à distinção entre o velho e o novo Adão. Na narrativa da queda, Adão não resiste à sedução do mal e come o fruto proibido. O novo Adão, po-rém, resiste à sedução do mal e assim, em nosso lugar, vence seu poder. Ao resistir a essa primeira tentação, onde pão seria sinônimo de carne, Jesus triunfa sobre o mal, enquanto ser humano, isto é, despido de qualquer poder extraordinário.
Eu lhe darei todo este poder e toda esta riqueza (…) se você se ajoelhar diante de mim e me adorar. A seqüência da ordem das tentações no texto paralelo encontrado no Evangelho de Mateus (Mt 4. 1-11) é notoriamente diferente.8 No referido texto há um crescendo, no qual primeiro vem, segundo D. Bonhoeffer, a tentação da carne, depois a espiritual e, finalmente, a última tentação, que ele denomina de tentação total: “Aqui não há mais camuflagem alguma, nem simulação. O poder de satã se opõe diretamente ao de Deus. (…) Seu oferecimento é imensamente grande e belo e mesmo sedutor. Ele exige em retribuição a adoração. Ele exige a franca apostasia de Deus, que não mais tem justificativa, a não ser a grandeza e a beleza do reino de Satanás. Nesta tentação, o caso é a clara e definitiva negação de Deus e a submissão a Satanás. Eis a tentação para pecar contra o Espírito Santo”9.
Se você é Filho de Deus, jogue-se daqui de cima, pois as Escrituras Sagradas dizem… A última tentação, ainda mais com a alusão ao Templo de Jerusalém e à citação das promessas bíblicas do Salmo 91.11-12, é contumaz, pois representa uma inversão no endereçamento da tentação: É o próprio Deus que é tentado, a partir de sua Palavra, em Jesus Cristo, pelo diabo. A tentação reside na exigência de um sinal da parte de Deus: “A fé que precisa de mais do que a simples Palavra de Deus em mandamento e promessa chega a ser tentação do próprio Deus”10. Há um paralelo com a situação do povo israelita no deserto e a provação de Jesus, com a diferença de que Jesus resiste à tentação de tentar a Deus, tendo como recurso tão-somente a passagem bíblica de Dt 6.16.
3. O texto e a nossa vida
Conhecemos estes três tipos de tentações: a tentação que vem de dentro, aquela que vem de fora e aquela que vem do alto. Elas fazem parte da existência individual do cristão e de sua existência comunitária. O embate dessa contenda é diário. Em Jesus Cristo, porém, temos a antecipação dessa batalha por nós, para nós e em nosso lugar. Tanto mais importante se torna o modo como Jesus triunfa paradigmaticamente sobre o mal: é a confiança e obediência a Deus, despojada de qualquer poder sobrenatural, porém fundamentada na sua Palavra, que resiste à tentação. Assim, revestidos de Cristo, a partir do Batismo, e sustentados pela fé, podemos enfrentar a mesma contenda em nossas vidas. Não precisamos fugir, pois “levamos todos hoje a carne que em Cristo Jesus dominou o diabo”11.
As formas como essas tentações se expressam na vida individual e comunitária são múltiplas. Na existência individual podemos lembrar aqui, em especial, o momento da “derradeira tentação”12 diante da morte. Já o Livro Cristão dos Mortos do século XIV descrevia o processo do morrer como uma seqüência de peirasmos (provações). Seriam elas: a dúvida, o desespero, a avareza, a impaciência e a vaidade.13
Na vida comunitária, podemos lembrar aqui, de modo particular, as situações em que em nossas celebrações, muitas vezes sem o perceber, o diabo tenta através de nós o próprio Deus, exigindo sinais e exigindo que ele cumpra suas promessas.
De forma pessoal, retornando às livres associações feitas no início, o texto elevou ao nível consciente três situações: primeiro, o poder da sedução e o fascínio que determinados objetos exercem sobre mim e a luta atroz que se estabelece no sentido de reprimir seu surgimento. É a tentação que vem de dentro, a batalha que se trava na carne. A segunda associação dizia respeito aos pais que não vinham e à solidão. É o momento da batalha com a tentação que vem de fora, da substituição. É como se uma voz soprasse aos ouvidos – eles não vêm, mas eu tenho coisa melhor para oferecer. É a tentação total, pois aqui está em jogo, diante do silêncio de Deus, a desperatio. É render-se ao inimigo que oferece compensações maravilhosas diante da ausência de Deus. E, por fim, a última associação, do vôo sobre os fiéis, é a tentação de manifestar sinais prodigiosos em nome de Deus, o que representa, em última análise, tentar o próprio Deus. É, em outras palavras, a tentação espiritual, da hybris, de não saber seu lugar, da empáfia de deixar a posição adequada de criatura em relação ao Criador.
4. Idéias para a pregação
Pode-se usar a seqüência das tentações, atualizando-as a partir do contexto pessoal e comunitário, nos três níveis mencionados: as tentações que vêm de dentro, as que vêm de fora e aquelas que vêm de cima. Ou ainda: aquelas da carne, aquelas totais e aquelas do espírito. Apontar para os sacramentos como forma de vencê-las por intermédio de Jesus Cristo. Lembrar que não se trata de fugir às tentações, nem de reprimi-las ou tampouco ignorá-las. É necessário enfrentá-las! “As armas, o Senhor nos dá: Espírito, Verdade.”
5. Subsídios litúrgicos
Sugiro que se adotem os subsídios litúrgicos do Proclamar Libertação, Suplemento 1, p. 189. Recomendo o hino 97 de Hinos do Povo de Deus, vol. 1, para ser cantado após a prédica. Recomenda-se a celebração da Santa Ceia. Ideal seria a combinação da reflexão com a realização de um batismo.
Notas bibliográficas
1 Cf. K. BARTH, Introdução à Teologia Evangélica, p. 107.
2 Id., ibidem, p. 105s.
3 Cf. D. BONHOEFFER, Tentação, p. 46.
4 Cf. LIVRO DE CONCÓRDIA, p. 467.
5 Id. Ibidem, p. 468.
6 TRE, p. 691.
7 Cf. id., ibidem, p. 472.
8 Já em Lucas há uma clara preocupação no sentido de destacar a tentação no templo de Jerusalém, quando coloca esta como a última. Cf.: J. P. T. ZAPATIERO, Lutas e Conflitos das Comunidades Cristãs: Uma re-leitura de Lucas 4,1-13, p. 9.
9 Cf. D. BONHOEFFER, Tentação, p. 53.
10 D. BONHOEFFER, op. cit., p. 52.
11 Id., ibidem, p. 57.
12 Id., ibidem, p. 66.
13 Cf. Jean-Yves LELOUP, Além da Luz e da Sombra. Sobre o viver, o morrer e o ser. Petrópolis: Vozes, 2001.
Bibliografia
BARTH, Karl. Introdução à Teologia Evangélica. São Leopoldo: Sinodal, 1977.
BONHOEFFER, Dietrich. Tentação. Porto Alegre: Metrópole, 1968.
LELOUP, Jean-Yves. Além da Luz e da Sombra. Sobre o viver, o morrer e o ser. Petrópolis: Vozes, 2001.
LIVRO DE CONCÓRDIA. 4. ed. São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 1993.
THEOLOGISCHE REALENZYKLOPÄDIE (TRE). Tomo II. Berlim/Nova Iorque: Walter de Gruyter, 1978. p. 687-708.
VOLKMANN, Martin. A Sétima Petição. In: Proclamar Libertação. Suplemento 1. São Leopoldo: Sinodal, 1982. p. 183-190.
WEHRMANN, Günther K. F. A Sexta Petição. In: Proclamar Libertação. Suplemento 1. São Leopoldo: Sinodal, 1982. p. 173-182.
ZAPATIERO, J. P. T. Lutas e Conflitos das Comunidades Cristãs: Uma re-leitura de Lucas 4,1-13. Estudos Teológicos. N. 47. Petrópolis/São Leopoldo: Vozes/Sinodal, 1995. p. 8-14.
Proclamar Libertação 29
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia