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Prédica: Lucas 13.31-35
Leituras: Salmo 42.1-5,9-11 e Filipenses 3.17-4.1
Autor: Silvia Beatrice Genz
Data Litúrgica: 2º Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 7/3/2004
Proclamar Libertação – Volume: XXIX
Tema:

1. Onde se localiza o texto?

O texto indicado para a prédica, Lc 13.31-35, faz parte de um bloco chamado a caminhada de Jesus da Galiléia a Jerusalém (9.51-19.27). Os v. 31-33 constituem material exclusivo de Lucas; os v. 34-35 têm paralelo em Mt 23.37-39.

O tema – lamento sobre Jerusalém – é retomado em Lc 19.41s.

Olhando para os textos do cap. 13, que fazem parte do bloco da caminhada de Jesus a Jerusalém, podemos ver que em 13.10-17 Jesus desmascara a hipocrisia de uma religião que não só não liberta, mas impõe um fardo mais pesado sobre as costas das pessoas com a lei do sábado. Os animais têm mais valor do que as pessoas. Enfim, a quem serve essa religião? Podemos ainda perguntar: O que vale a vida?

Jesus propõe o Reino que liberta e dá vida, que ele traz. Isto não é para acontecer com imposição e violência, mas vem como semente e como fermento, já está aí – Lc 13.18-21. Mas há muitas dúvidas, e a pergunta no v. 23 é: “são poucos os que são salvos?” Atual em nossos dias esta pergunta. Jesus responde: esforçai-vos por entrar pela porta estreita. Mas ele deixa claro que o Senhor Deus reconhecerá quem bate, não vai ser com conversa bonita que vamos conseguir; é com a nossa vida de fé, de relacionamento com Deus-próximo que se dá o reconhecimento. Jesus alerta: muitos virão de todos os lados e lugares; os últimos poderão ser os primeiros e os primeiros poderão ser últimos.

2. O texto Lc 13.31-35

v. 31 – Este versículo está ligado a uma conversa e uma ação anterior com as palavras; “naquela mesma hora”, essa discussão certamente provocou reações. A reação dos fariseus é clara: “Retira-te e vai-te daqui porque Herodes quer matar-te”.

Os fariseus não aparecem como inimigos, sugerem apenas que Jesus se retire. Na verdade, sugerem fugir de Herodes porque ele planeja matar Jesus. É pena ou é falta de convicção para enfrentar a verdade? Ou é concordância com o que se fazia em Jerusalém?

v. 32 – Jesus manda um recado: “Ide dizer a esta raposa…” A raposa é considerada inteligente e desnorteada, como alguém insignificante frente a Jesus.

Jesus deixa claro que a sua missão é determinada por outras vias e não pelo poder que Herodes representa. Herodes é inimigo do Reino e Jesus não se deixa desviar, continua em nome de Deus expulsando demônios e curando enfermos, enfim, a ação de Jesus está a serviço das pessoas, é para a vida e é necessário seguir até o fim. Herodes não consegue dar fim à missão de Jesus; em Jesus mesmo está o fim. Ou o começo?

v. 33 – Na palavra “contudo”, que é enfática e reforça a necessidade, a determinação de caminhar, apesar de tudo, hoje, amanhã e depois. Jesus afirma, e também os fariseus sabiam, que muitos profetas já foram mortos e apedrejados em Jerusalém e por Jerusalém, como se refere em 11.47 (Mq 1.1; Jr 1.1; e outros). A maioria dos profetas assassinados e apedrejados provinha do campo, e os movimentos contra o templo eram sufocados com ajuda dos romanos.

Ao dizer que pode morrer em Jerusalém, Jesus revela saber que sua eventual morte não destrói sua obra, mas a faz culminar. Ou seja, com a subida a Jerusalém ele busca não sua morte, mas a decisão final para o projeto do Reino de Deus.

v. 34 –“Jerusalém, Jerusalém”; com esta palavra repetida Jesus expressa a tristeza e o lamento com tudo o que já fizeram às pessoas, profetas que trazem a mensagem de Deus.

Jerusalém, a cidade, é o lugar escolhido por Deus para fazer habitar seu nome, lugar onde está o templo, “morada de Deus”. Jerusalém é símbolo da presença de Deus e da proximidade com Deus, mas também mata os profetas a ela enviados. Jerusalém não reconhece, não percebe quando Deus fala através dos enviados, não quer entender. Também não percebe agora, com a vinda de Jesus, não o reconhece, não ouve o próprio Deus, segue as suas orientações, baseadas na dominação do estado e legitimadas pela religião.

Jesus lamenta, conclui: “quantas vezes”, sim, diversas vezes Deus se dirigiu e não ouviram os enviados. Agora poderia se mudar. Jesus usa uma figura, a galinha, a mãe choca, para que os fariseus e outros que ali estavam na hora da discussão entendessem que esta era uma ação de Deus, mesmo com amor materno. Amor de alguém que se preocupa com seus filhos e filhas. Mas “vós não quisestes!” Quem são os vós? Também os fariseus?

v. 35 – Neste versículo Jesus afirma: “A vossa casa ficará deserta”. Sem proteção. Deus vai abandoná-la. A voz passiva indica que Deus mesmo abandona a sua casa. Ela não mais será refúgio. Deus não estará mais presente.

Há perguntas como: a casa é só o templo ou toda a Jerusalém?

Com o “vos” Jesus se refere a quem? Os comentaristas não respondem essas questões.

O que sabemos é que Jerusalém era o centro do poder religioso. O templo recebia muitos peregrinos – em Lc 13.1 fala-se de uma polêmica com os galileus e da proteção por Pilatos. Jerusalém era também o centro do poder político, protegido pelos romanos. Lá havia muitas autoridades, líderes religiosos, grupos e o povo. Na verdade, os líderes religiosos e políticos se unem contra os que vêm em nome de Deus e o povo é manipulado conforme os seus interesses. Tanto a cidade como o templo são dirigidos pelos líderes religiosos e políticos. Sobre o povo podemos ler em Lc 13.17 o seguinte: “O povo se alegrava por todos os gloriosos feitos que Jesus realizava”. Isto prova que há pessoas que reconhecem a presença de Deus em Cristo.

A ausência de Deus em “vossa casa” é até o momento em que conseguem reconhecer, e mais, saudar: “Bendito o que vem em nome do Senhor”. Isto é ouvi-lo e atendê-lo.

Bem, a palavra dita por Jesus poderia ser um aviso: ainda há tempo, e o tempo é agora.

Na entrada triunfal (Lc 19.28s), a multidão o saúda, aclama como mensageiro de Deus, mas também mais tarde o negará e o levará à cruz.

3. Trabalhando o texto na comunidade

Quaresma é o período em que acompanhamos Jesus no compromisso radical com o Reino de Deus. Na caminhada com Jesus, somos desafiados para a prática da solidariedade com as pessoas sofridas: mulheres, homens doentes, crianças abandonadas, idosos solitários, afastados, pessoas desiludidas, alcoólatras, drogados…

Quem não consegue seguir o caminho enfrentando os inimigos acaba sendo inimigo do Reino. Em Fp 3.18s, são chamados de inimigos da cruz e o destino é a perdição. Para mim, os fariseus podem até se apresentar como preocupados com Jesus, mas não entendem que a verdade é só uma, e é preciso enfrentá-la. Jesus não foi com violência nem agressão, mas foi caminhando e fazendo. Muitas vezes, nas comunidades temos situações de conflito, confrontos, mas não é fugindo, não é parando, não é mudando que vamos esclarecer, mas sim seguindo no cumprimento da vontade de Deus. É preciso avaliar a nossa ação, se ela está de acordo com a vontade de Deus. Deus usa a nós, a comunidade para servir de abrigo aos que precisam, para acolher as pessoas desamparadas. Sem esquecer que a comunidade precisa das asas protetoras-Deus.

A figura “choca” que Jesus usa nos lembra de ovos aquecidos, que geram vida. Lembra de pintinhos no frio, aquecidos pela mãe – os pintinhos não conseguem se agarrar, apenas se abrigar, e quem protege é a galinha. Não nos agarramos a Deus primeiro, é Deus quem nos protege. Jesus diz: “Eu quis ajuntar”. Os pintinhos se perdem, gritam e a mãe os chama. Deus nos chama. A comunidade de fé deve ser o espaço, o abrigo para os pintinhos perdidos, desprotegidos. A comunidade, as pessoas que confessam a sua fé em Jesus Cristo e o seguem podem ensaiar solidariedade e anunciar a presença viva de Deus conosco. A comunidade não é perfeita; ela também é fraca e deve estar consciente de que ela vive sob as asas protetoras de Deus. Membros em perigo a mãe-Deus ajunta e protege. Dá a sua vida por eles. A comunidade deve estar firmemente amarrada na ação de Deus em Jesus Cristo – morte e ressurreição e com os olhos fixos em “nossa pátria está nos céus, de onde também aguardamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo, o qual transformará o nosso corpo de humilhação, para ser igual ao corpo da sua glória”(Fp 3.20-21).

Encontrei uma história muito interessante no material que a “Rede de Liturgia e Recursos de Educação Cristã” do CLAI (Conselho Latino-Americano de Igrejas) enviou, sob o título “Bajo sus alas”:

“Após um incêndio no Parque Nacional Yellowstone dos Estados Unidos, começou a tarefa de limpeza e avaliação dos danos. Um guarda florestal ia caminhando pelo parque, quando encontrou uma ave carbonizada ao pé de uma árvore, numa posição bastante estranha, pois não parecia que morrera escapando, nem que fora apanhada, simplesmente estava com suas asas fechadas ao redor de seu corpo. O guarda, intrigado, encostou nela suavemente com uma vara; três pequenos filhotes vivos apareceram debaixo das asas da mãe. Mãe que sabia que seus filhos não poderiam escapar do fogo, por isso não os abandonou, nem os levou para o ninho sobre a árvore, onde a fumaça subiria e o calor se acumularia. Levou-os para debaixo da árvore, provavelmente um por um, e ali ofereceu a sua vida, para salvar a vida deles. Podem imaginar a cena? O fogo rodeando-os, os filhotes assustados e a mãe muito decidida transmitindo paz, dizendo-lhes: ‘Não temam, venham debaixo das minhas asas, nada lhes acontecerá’. Estavam tão seguros e protegidos do fogo, que horas depois do incêndio terminado ainda não tinham saído de lá. Estavam totalmente confiantes na proteção da mãe; somente após o encostar do guarda no corpo morto da mãe pensaram que deveriam sair. Tens a quem amar assim? Alguém tem te amado assim? Quem encontra um motivo pelo qual vale a pena viver encontra motivo pelo qual vale a pena dar a vida” (Contribuição de Verônica Balarezo – Quito, Equador).

A vinda de Deus, com Jesus a caminho, caminhando, é o modo como Deus ingressa na vida das pessoas.

Quaresma é um tempo de acompanhar Jesus na sua caminhada para Jerusalém. A serviço. Sem desvios. É caminhar:
– com coragem e firmeza de fé;
– com o objetivo = Reino de Deus, não promoção pessoal;
– obediente a Deus e não ao poder do mundo;
– com solidariedade aos sofridos e sofridas e não pensar que não tem mais o que fazer, já é tarde;
– sem pensar em deixar para os outros ou pensar que a mudança vai tardar: o Reino é só ….. ah, não sei quando;
– com a certeza das asas protetoras da mãe e na confiança: nossa pátria está nos céus, de onde aguardamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo;
– confiando que o nosso fim em Cristo não é de humilhação, mas de glória “segundo a eficácia do poder que ele, Cristo, tem de até subordinar a si todas as cousas” (Fp 3.21).

Proclamar Libertação 29
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia