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Paris a Dacar, que espetáculo de rally! Quanta emoção nas areias do deserto africano, e isso anualmente! Motocicletas, alinhadas com as máquinas pesadas, além dos automóveis saindo em disparada, rumo aos caminhos do deserto. Não faltam as surpresas, nem sempre há tempo para desviar dos atoleiros. A adrenalina alta mexe com os competidores. Passam dias e mais dias até a meta final. Os louros da vitória compensam todo o esforço e a ameaça dos inúmeros perigos. Não há tempestades de areia, nem distâncias ou caminhos, por mais longos e difíceis que sejam, até sumirem no horizonte fantástico, assim como não existem distâncias nem dificuldades que possam resistir a força das máquinas ou a velocidade dos aviões, quando sobrevoam aquela imensidão de planos e coxilhas. São inexistentes as superfícies encobertas pela areia e pelo pó, intercalados por pequenas ilhas verdes, oásis frágeis, capazes de impedir a passagem dos competidores ou fazer frente à potência e à velocidade desenvolvida a partir dos motores de suas máquinas..

Do deserto e de suas areias esbranquiçadas e secas, de suas tempestades caóticas e desconcertantes, sobram a cada ano rastros e restos, mais exóticos do que uma ameaça à curiosidade e a vontade de vencer do homem moderno. A tecnologia aliada à pesquisa efetuada nos campos transforma a paisagem do deserto em áreas cultiváveis, em solo fértil, instrumento de produção de alimentos e de vegetação exuberante. Sempre permanecerão áreas vazias e áridas do deserto; na realidade, espaços criativos e organizados pela indústria lucrativa das empresas de turismo.

Apesar das iniciativas desenvolvidas pelos avanços da tecnologia transformadora de áreas secas em lugares de vida, prestando serviços à cultura de alimentos, permanecerá o símbolo dos corpos secos, continuará o desenho dos rostos angustiados, gente faminta e miserável. Permanece na sociedade o semblante das crianças magérrimas e doentias, fragilizadas nos barracos improvisados, sob a ação do calor do sol escaldante das areias abrasadoras. Longe da sombra dos arbustos e afastadas dos mananciais de água refrescante, vivem pessoas humanas, totalmente integradas na dureza do deserto, e cujas experiências de vida são a fome e sede.

Apesar do domínio dos motores sobre a imensidão ameaçadora das areias, fica a teimosia de quem precisa resistir na vida árida do deserto. Metrópoles e cidades refletem para o alto e para os lados construções e blocos mais parecidos com silos do que com habitações promotoras de vida humana. O mar de concreto, símbolo da cidade moderna, assume ares como se fosse de uma paisagem do deserto. A vida verde, os rios de águas limpas, os pequenos riachos alimentadores, as nascentes do líquido precioso, o verde das plantas, agradável aos olhos e necessário ao descanso dos seres humanos e também dos animais, os lençóis que guardam as reservas de água potável cedem espaços caros a uma cultura arquitetônica de pouca criatividade e marcada pela monotonia das cores e das formas.

A política das monoculturas instaladas, em larga escala, nas terras férteis de nosso País favorecem, primordialmente, a mentalidade lucrativa das empresas rurais, instigam o desmatamento descontrolado de enormes faixas de terra, cobertas pela vegetação que é co-responsável pelo equilíbrio do meio ambiente. É fonte inspiradora à qualidade de vida para todas as criações sob o céu de Deus. O deserto, em sua dimensão geográfica e fruto da ação física, na natureza, pode experimentar fases de retrocesso e de histórias de transformação. Continua, porém, a realidade da sequidão do deserto. Ela reflete vidas secas e miseráveis, chão propício para o amadurecimento dos frutos da violência, das políticas das guerras e das ações do fanatismo religioso e político, solo fértil para o terror que amedronta a sociedade moderna.

Águas da vida, Dia Internacional da Água, irmã água, água que restabelece vida e esperança, águas da purificação são realidades e reivindicações que resgatam a importância do elemento água e contrastam com a experiência do deserto. Deus nos conduz às águas tranqüilas, uma expressão de confiança, conforme os dizeres do salmo 23. Enquanto Deus assim nos conduz, continuamos sendo caminheiros irrequietos, inconformados com a procura ávida de fontes que não saciam, de fato, a sede das pessoas humanas. É preciso celebrar as águas, porque são sinônimo de vida, um bem comum e fundamental à sobrevivência da pessoa humana. O cuidado carinhoso desse precioso presente do Criador, a água, é preocupação ambiental, um compromisso da sociedade humana.

Manfredo Siegle
pastor sinodal do Sínodo Norte-catarinense
da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)
em Joinville – SC

Jornal ANotícia – 27/03/2004