|

Prédica: João 17.20-26
Leituras: Salmo 47.1-8 e Apocalipse 22.12-17,20
Autor: Gottfried Brakemeier
Data Litúrgica: 7º Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 23/5/2004
Proclamar Libertação – Volume: XXIX
Tema: Páscoa

1. Comentário do texto

1 – A perícope prevista para a prédica no domingo após a Ascensão compreende a última parte da oração sacerdotal de Jesus em Jo 17. A grande intercessão encerra os assim chamados “discursos de despedida” (cap. 13.31-16.33), precedidos da última ceia e do lava-pés (cap. 13.1-30). O bloco descreve uma longa “noite litúrgica”, uma vigília, preparando a auto-oferta do “cordeiro de Deus” (1.29) em favor do mundo (3.16). Após a Sexta-feira Santa, os discípulos experimentarão “orfandade”, sem a presença física de Jesus. Mas virá o Espírito Santo para guiar a comunidade, lembrando-lhe tudo o que Jesus disse (14.26 etc.). Também essa oração, chamada “sacerdotal”, insere-se no legado de Jesus. Acompanha a comunidade através dos tempos, assegurando-lhe proteção, orientação e consolo.

2 – O trecho constitui uma unidade relativamente autônoma no contexto. Subdivide-se em duas subunidades:

a – Os v. 20-23 falam da natureza da comunidade. Os discípulos são exortados a ser “um”, aliás não só os doze, mas todos os que vierem a crer através da pregação da palavra. Está em mira a Igreja de todos os tempos e lugares. Jesus quer que ela permaneça fiel à sua vocação, anunciando a palavra e mantendo a unidade “a fim de que o mundo creia”.

b – Os v. 24-26 falam da destinação da comunidade, isto é, da comunhão escatológica com seu Senhor. Cristo quer que sua comunidade esteja onde ele, o ressuscitado, está para que participe integralmente de sua glória.

Mandato e destino da comunidade têm por base o “ser um com Cristo”, assim como Jesus é um com seu Pai. Somente nesta estreita relação concretizam-se a unidade e o pleno conhecimento de Deus. O “estar com e em Jesus” é sinônimo do estar “no amor” que Deus demonstrou por ele.

3 – Cabe ressaltar que a unidade da comunidade não é criada por estruturas institucionais. Fundamenta-se na fé das pessoas (v. 20), revestidas por Jesus de glória (v. 22), assim como Deus conferiu glória a Jesus (v. 24). Glória significa “transparência para a presença de Deus”. Assim como em Jesus Deus se torna visível, assim também na comunidade, quando crê e divulga a palavra. Aliás, o que se pode enxergar de Deus não é sua natureza. É seu amor manifesto no envio do Filho. Devido a este amor, capaz de ressuscitar o crucificado, existe a esperança de a comunhão com Jesus não ser interrompida pela morte. A comunidade está a caminho da perfeição escatológica, do pleno conhecimento de Deus (v. 26), da participação definitiva da glória (v. 24). Vivendo a unidade, anunciando a palavra e documentando o amor de Deus, a comunidade leva adiante a missão de Jesus.

4 – O texto, pois, coloca em pauta a Igreja cristã, representada aqui pelo grupo dos discípulos. Jesus intercede junto ao Pai, expressando a sua vontade para com ela. A Igreja de Jesus Cristo deve ser uma, arraigada naquele que é o seu Senhor, testemunhando a obra de Deus. É este o “testamento” de Jesus, formulado antes de ele morrer, ressuscitar e voltar a seu Pai. Por ele manifesta sua última vontade (E. Käsemann). Ela compromete sua Igreja também no século XXI.

2. Meditação da mensagem

1 – O texto em apreço costumava ser previsto para a prédica no dia da Ascensão. Assim também no auxílio homilético elaborado por Heinz Ehlert no Proclamar Libertação VIII, 1982, p. 198-204. A nova ordem das perícopes prevê outra “ocasião”. Mesmo assim, a proximidade com a Ascensão permanece. Ela está em forte evidência nos textos “laterais”, que são o Salmo 47 e o capítulo 22 do Apocalipse. Falam do senhorio de Deus e da instauração de seu Reino. Dessa maneira lembram a passagem “sentado à direita de Deus Pai, todo-poderoso” do Credo Apostólico. Pois Ascensão é isso. Celebra a “tomada de posse” de Deus mediante a entronização do Jesus crucificado como “Cristo Rei”. Disto não é falado em Jo 17.20-26. A Ascensão não é tema expresso. Não obstante, existe uma referência indireta na alusão à futura revelação da glória de Jesus no v. 24. A prédica poderá e deverá fazer ligeira menção. Isto é justificado pela proximidade da data e pelo teor dos textos paralelos. No mais, porém, sugerimos a concentração no conteúdo específico desse texto.

2 – A explicação do mesmo, porém, não é nada fácil. A linguagem joânica parece “truncada”, abstrata, “mística”. Oferece obstáculos à compreensão. É de grande profundidade, ainda assim. Sem nenhuma pretensão de esgotar a riqueza do texto, desenvolvemos a reflexão a partir de alguns elementos-chaves. Nós os formulamos assim:
– a Igreja deve aprender a unidade;
– o mundo deve aprender a fé;
– todos devem aprender o amor;
– isto por mediação de Jesus Cristo;
– do que brota esperança para o futuro.

3 – Jesus quer sua comunidade unida, coesa, unânime. O imperativo ecumênico tem no v. 21 seu mais enérgico amparo. Mas o que significa “unidade”? Não há consenso quanto a isto. Unidade não exclui diversidade. Diz o artigo VII da Confissão de Augsburgo que para a verdadeira unidade basta haver acordo quanto à doutrina do Evangelho e a ministração dos sacramentos. Cerimônias, costumes, tradições, estruturas, tudo isto pode variar. E realmente, diversidade é riqueza. Possibilita a complementação mútua. Mas ela se transforma em prejuízo ao redundar em concorrência, difamação mútua, briga (cf. 1 Co 3.1s). Desunião desacredita a Igreja. Prédica sobre esse texto não poderá contornar a problemática “ecumênica”. Deve encorajar a buscar a “comunhão dos santos” mediante a superação de falsos exclusivismos e mediante o retorno ao fundamento comum que é Jesus Cristo. Somente nele e por ele poderá concretizar-se o sonho da paz. Unidade quer ser aprendida.

4 – A finalidade é “que o mundo creia”. O texto não dá razões para a necessidade da fé. Mas o evangelista não deixa dúvidas a esse respeito. Somente quem crê tem a promessa de vida eterna. Não é fé qualquer que se pede. É fé “em Jesus” (6.35 etc.) e “naquele que o enviou” (5.24 etc.). Portanto, é fé no Deus que ama sua criatura e cujo supremo mandamento é o amor (13.34). Sem tal fé não há perspectivas de o mundo sair dos impasses. Da fé depende a salvação, hoje e amanhã. Em contrapartida, a fé falsa, perversa, a fé que se prende a ídolos, ainda que se esconda sob manto cristão, mergulha o mundo em perigosos conflitos, em perdição e caos. Fé é assunto a merecer maior atenção hoje. Quais são os credos em voga na sociedade e como devem ser avaliados?

5 – A Igreja cristã atribui seu conhecimento de Deus a Jesus Cristo. Ele é mais do que profeta, mais do que mensageiro, é a encarnação do Verbo de Deus (1.14). Podemos chamá-lo de plenipotenciário, representante de Deus na terra, embaixador. Isto porque o Verbo que manifesta não se resume a uma mensagem acústica. É demonstração prática. Inclui cruz e ressurreição. Jesus manifesta Deus através de sua vida. E esta vida foi amor. Chegamos a saber, por Jesus de Nazaré, não tanto o que Deus é, mas como age. Sua palavra é ação, e é ação amorosa, redentora, reconciliadora. Ela faz aparecer a história da humanidade em nova luz e abre perspectivas de libertação dos cativeiros.

6 – Por Deus ser o Deus do amor, a aprendizagem da fé não pode ser dissociada da aprendizagem do amor. Não haverá mundo “humano” sem amor. Ao falar em amor, o Novo Testamento não pensa em sentimentos românticos, simpatias ou paixões emocionais. Para a Bíblia, amor é uma questão da vontade. Não o que eu sinto, mas o que eu quero em relação ao próximo é decisivo e define a ética. Somente por ser assim, o amor pode ser conteúdo de um mandamento. Vontade pode ser treinada. Amor é aquela atitude que quer o bem inclusive do inimigo. É exatamente isto o que enxergamos em Jesus. Por ele Deus se inclina aos perdidos, oferecendo-lhes o pão e a água da vida, o bom pastor, o caminho, a verdade, a ressurreição. Sem amor, este mundo cai em ruínas, razão suficiente para engajar-se em sua aprendizagem.

7 – Amor abre as portas para um “outro mundo”, diferente daquele sob o qual sofremos. Não devemos pensar de imediato no mundo pós-mortal. Já aqui o amor é o mais poderoso remédio contra as dores. Faz milagres. Cura enfermidades, desajustes, feridas. Reconcilia inimigos. E vai além. Remove as cancelas da morte e promete cumprimento numa glória indizível, própria de Deus somente. Então as cruzes que horrorizam as pessoas pertencerão todas (!) ao passado, e estaremos lá onde está Jesus, que “subiu ao céu”. Lá não mais haverá “choro e ranger de dentes” e teremos acesso direto à “árvore da vida” (Ap 22.14).

3. Sugestões para a prédica

1 – Propomos que a prédica siga os passos da meditação acima, procurando traduzir a mensagem do texto para a realidade da comunidade ouvinte. Isto significa que a prédica pode iniciar por “situar” o texto na despedida de seus discípulos. Jesus confiou-lhes seu testamento, válido para toda a cristandade. Eis aqui seu “patrimônio”, o tesouro que legou. A intercessão expressa o afeto de Jesus pelos discípulos e, simultaneamente, os compromete.

2 – Antes de mais nada, Jesus quer a unidade da cristandade. Infelizmente há motivos de preocupação nesse tocante. O ecumenismo avançou, graças a Deus. Cresceu a fraternidade entre as igrejas, do que existem exemplos bonitos. Mesmo assim, a unidade continua deficiente. Convém lembrar a posição luterana com respeito ao assunto e refletir com a comunidade sobre falso e verdadeiro ecumenismo. O esforço pela unidade é nada opcional. É obrigatório. Mas ecumenismo não deveria ser confundido com uniformização, sincretismo ou uma atitude de “vale-tudo”. Importa ensaiar “comunhão” eclesial. Como se faz?

3 – Igreja cristã é chamada a pregar a Palavra de Deus para que o mundo creia. Falta fé neste mundo. Aliás, existe fé sim. Toda pessoa tem uma determinada fé. Mas no que importa crer, quanto a isto existe confusão. Então, o que merece a fé? O Evangelho de João responde claramente: é fé no Deus que ama o mundo de tal maneira que deu seu filho unigênito em seu favor (3.16). Fé cristã é fé no Deus-amor, que se encarnou em Jesus Cristo, seu porta-voz e representante. Decorre daí a ética cristã: é ética do amor, da compaixão, da reconciliação, da solidariedade, do perdão, da partilha, da comunhão.

4 – Fé atuante no amor vai mudar o curso de indivíduos e do mundo, agora e no futuro. Ela tem promessa escatológica. Vai consertar o mundo, transformar sofrimento em alegria, trazer luz ao cotidiano, além de cumprir os anseios por vida já não mais ameaçada pela morte. O “estar com Cristo”, o “ver face a face”, a participação na glória do Cristo ressurreto é esperança cristã. Com essa perspectiva a prédica encontrará seu desfecho lógico.

4. Subsídios litúrgicos

Confissão de pecados – Senhor, nós te confessamos nossas fraquezas, nosso desânimo e nossa frustração. É o que por demais vezes domina nosso dia-a-dia. Nós nos incomodamos com o vizinho, as pessoas ao nosso lado, com o trabalho, o tempo, com mil coisas. Perdoa-nos a falta de fé, a falta de amor, a falta de esperança. Sabemos que também cristãos não são poupados de dificuldades. Mas pedimos: queiras dar-nos forças para vencer e ânimo para sorrir. Queiras dar-nos a fé da Páscoa, que não recua nem diante da morte. Senhor, tem compaixão de nós!

Oração de coleta – Senhor, nós te agradecemos pela vitória de Jesus Cristo. É ele o Senhor, capaz de derrotar as forças do mal. Seu é o governo no mundo. Seja feita a sua vontade. Ansiamos por manifestação visível de seu poder. Queremos que reinem neste mundo a justiça, a paz, a alegria. Cumpre, Senhor, as tuas promessas. Salva este mundo de suas enfermidades e dá-lhe um novo Espírito. Amém.

Intercessão – Senhor, nós te pedimos em primeiro lugar por tua Igreja. Queiras unir os cristãos e as cristãs em amor. Elimina as rixas entre as igrejas, fazendo com que aprendam a conjugar as suas forças, seu testemunho, sua ação. Somos membros de teu corpo, diferentes é verdade, mas chamados a servir cada qual com nosso dom. Cria paz na cristandade. Da mesma forma te pedimos por paz em nosso mundo, entre as nações, os povos. Armas, violência, guerra jamais poderão assegurar a boa convivência. Por isso te pedimos: Arranca as raízes do ódio. Planta raízes do amor, que tem o bem do vizinho por propósito. Assiste toda pessoa que se sabe comprometida com a tua vontade. Segura a mão de quem vacila, sofre ou anda no vale da sombra da morte. Senhor, confiamos em ti e em teu poder. Vem socorrer o nosso mundo aflito. Pai nosso…

Bibliografia

GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento. v. II. São Leopoldo: Sinodal / Petrópolis: Vozes, 1982. p 542-557.
KÄSEMANN, Ernst. Jesu letzter Wille nach Johannes 17. Tübingen: J.C.B. Mohr (P. Siebeck), 1967.
SCHULZ, Siegfried. Das Evangelium nach Johannes. Das Neue Testament Deutsch, v. 4, 2. ed., Göttingen: Vandenhoeck, 1972.
WIGGEERMANN, Karl-Friedrich. Christi Himmelfahrt – Joh 17-26. Neue Calwer Predigthilfen. Stuttgart: Calwer Verlag, 1982. p 298-305.

Proclamar Libertação 29
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia