Entra hoje em sua última etapa a 9ª Conferência Nacional dos Direitos Humanos, na Câmara dos Deputados. Os projetos de Ordem e Progresso, as políticas que falam dos planos de paz e da restituição dos relacionamentos justos continuam tendo aparências enganadoras. Vejamos, a sociedade brasileira está pontilhada de frentes de violência e convive com focos incontáveis de violação dos direitos humanos. Ao desrespeito da pessoa, no tocante a sua qualidade de vida, corresponde a sua continuada desumanização. O mundo continua pasmo diante dos massacres do cotidiano: em todos os cantos do mundo, vidas humanas são caladas à força. Há quem se arrogue o direito de determinar quem deve viver ou quem será eliminado. Na realidade, vidas, antes peças descartáveis, muitas vezes, sem nenhuma chance de saída diante do fim iminente ou em razão da legislação interesseira e determinada pelo poder egoísta, opressor e excludente. O desrespeito à vida alheia e a desconsideração das relações fraternas têm provocado imagens aterradoras e rostos marcados pelo sofrimento e pela dor. Uma realidade que contradiz com o espírito que emana dos direitos básicos de toda a pessoa humana e uma marca contraditória em relação ao espírito promovido pela fé cristã..
A vida criada em toda sua amplitude é testemunhada nas Escrituras Sagradas como boa dádiva do Deus Criador. E viu Deus que tudo era bom. Ao sacrifício único e definitivo do Cristo crucificado, vítima de violência do poder dominante de seu tempo, são contrapostas as vítimas da violência na sociedade moderna. Acostumamo-nos a festejar e a reverenciar os mártires que entregam suas próprias vidas em favor da liberdade e da defesa da dignidade humana. A teologia da criação, conforme o Livro de Gênesis, parte da afirmativa de que a pessoa humana foi colocada no mundo como imagem de Deus, feito à sua semelhança. O direito à vida humana será sempre conseqüência dedutível dessa interpretação. A pessoa humana criada à semelhança de Deus, tanto em seus compromissos como em seus direitos, encontra verdadeiramente sua correspondência no Deus Criador. É qualidade especial, sinal de humanidade dignificada que assegura os direitos fundamentais da pessoa humana.
Nessa perspectiva, a pessoa feita à semelhança do Criador é dotada de qualidade especial que antecede as exigências face à preservação dos direitos que lhe são afins. Antecede, igualmente, a relação de confiança e de fé que determina a vivência diante deste Deus. A ação mais qualificada que a pessoa humana pode apresentar perante o Criador tem sua correspondência no ato que o desafia a assumir responsabilidades próprias! O testemunho bíblico identifica algumas áreas específicas, dentro das quais cabe à pessoa criada assumir responsabilidades pertinentes:
1) Enquanto pessoas de gêneros diferenciados, assumimos responsabilidades especiais no relacionamento de qualidade entre a mulher e o homem.
2) À pessoa humana, assim ocorre de modo análogo com as demais criaturas, é dada a tarefa de zelar pela continuidade da espécie, um sinal da presença bondosa de Deus, desafio à responsabilidade.
3) Dominium terrae, o domínio sobre a terra criada, é assegurado não como possibilidade para sua livre exploração. A nova prática de domínio implica, sobretudo, assumir a responsabilidade da guarda e dos cuidados especiais frente à criação e às demais criaturas.
4) O espírito de concorrência entre as criaturas e a criação em sua integralidade somente encontra equilíbrio à medida que o ser humano aposta no exercício de responsabilidade.
A garantia dos direitos humanos condizentes com a qualidade de criaturas especiais, bem como a preservação de toda a criação carecem de uma âncora firme: o compromisso da responsabilidade. Na verdade, a responsabilidade é o ponto de partida mais qualificado à vivência da paz, princípio fundamental à administração de relacionamentos justos entre pessoas humanas e no gerenciamento sábio de toda a criação.
Manfredo Siegle
pastor sinodal do Sínodo Norte-catarinense
da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)
em Joinville – SC
Jornal ANotícia – 02/07/2004