Prédica: Lucas 10.38-42
Leituras: Salmo 15 e Colossenses 1.21-18
Autor: Heinz Ehlert
Data Litúrgica: 9º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 1/8/2004
Proclamar Libertação – Volume: XXIX
Tema:
1. Observação preliminar
Segundo a ordem de perícopes antiga (Alemanha), o presente texto era pregado no Domingo Estomihi. Fazia sentido, uma vez que introduz a época da Paixão (hoje geralmente chamada de Quaresma). O trecho faz parte do relato sobre a peregrinação de Jesus a Jerusalém, onde virá a ser preso, julgado, condenado, crucificado, para depois ressurgir. Conforme a ordem ora adotada, está localizado no 9º Domingo após Pentecoste. Pelo conteúdo não exige a observância de determinada época na tradição do calendário eclesiástico.
A perícope já foi estudada para fins homiléticos em três volumes anteriores de Proclamar Libertação (VI, XVII e 23). Quem tiver acesso aos referidos volumes poderá, com muito proveito, utilizar os respectivos estudos, que na atualização fazem jus a diferentes situações e enfoques. As considerações exegéticas do presente auxílio trarão necessariamente muitas coincidências em relação às anteriores.
Observe-se que, nas citações textuais, sigo a tradução de Almeida (edição revista e atualizada no Brasil), por considerá-la mais próxima do texto grego (mais literal).
2. Considerações exegéticas
O trecho em pauta se encontra, segundo tradicional subdivisão estrutural do Evangelho de Lucas, no contexto do grande relato de viagem, ou seja, de 9.51 a 19.57. Vários exegetas ainda adotam subdivisões dentro desse complexo maior. Para W. Grundmann, p. ex., fica localizado na primeira parte (9.51 a 13.21) do referido relato. Prefiro falar em última peregrinação de Jesus a Jerusalém em lugar de relato de viagem. Imediatamente antes de nosso trecho encontra-se a parábola do Bom Samaritano (10-25 a 37). Segue, depois dela, o testemunho como Jesus ensina a orar (11.1-13). Entre Jericó e Jerusalém (cenário da parábola mencionada), Jesus se encontrava, justamente, no caminho a Jerusalém.
A seguir analisaremos alguns detalhes ao longo dos versículos que descrevem a estadia de Jesus como hóspede na casa de Marta:
v. 38 – Pelo fato de uma aldeia samaritana ter-se recusado a receber Jesus (cf. narrado anteriormente, 9.51-53), poder-se-ia imaginar que voltaram à Galiléia. Isto porque fala em seus ais sobre cidades impenitentes, algumas localizadas na Galiléia (10.13-16: Corazim, Betsaida, Cafarnaum). Provavelmente tomou o caminho mais longo a Jerusalém pelo vale do rio Jordão, via Jericó. Este caminho passa pela aldeia de Betânia, onde moravam os irmãos Marta, Maria e Lázaro (cf. Jo 11).
Aqui simplesmente se fala de “um povoado” sem nome. Com Jesus deviam estar os discípulos (“Indo eles…”). “E certa mulher, chamada Marta, hospedou-o na sua casa.” Lucas, então, não pressupõe que seus leitores conhecem os irmãos. Esta Marta hospeda-o em sua casa (só para uma refeição ou por um ou mais dias?). Comporta-se, pois, como proprietária, dona da casa (Marta, aliás, significa “senhora” = dona, em aramaico). Ela parece agir soberanamente. E os discípulos? Pela agitação de Marta, narrada logo mais, pode-se deduzir que acompanharam Jesus.
v. 39 – Apresenta agora a irmã de Marta, de nome Maria, com quem aparentemente divide a moradia (e onde estaria Lázaro?). A cena é descrita com uma brevidade espantosa. Será que já existe uma mesa posta para a ceia logo depois? Schlatter é quem pensa numa cena de mesa. Ali está a Maria “aos pés do Senhor a ouvir-lhe os ensinamentos”. Nisso Jesus age de maneira diversa dos rabinos. Segundo a tradição, eles não ensinavam mulheres. Jesus o faz, sem se importar com as circunstâncias e os preconceitos existentes.
v. 40 – Em contraste com o ouvir tranqüilo e concentrado de Maria descreve-se a agitação de Marta, a senhora dona de casa. Não admira que estivesse ocupadíssima em muitos serviços. Como dar conta de servir bem (com farta refeição) e com todas as honras hóspedes tão importantes e ainda mais sozinha. Ela sabe o que cabe e o que agora é prioritário. Na convicção dela esta é a hora da “diaconia” (=serviço, originalmente o servir à mesa). Sua irmã Maria é que não. Folgada, deixa tudo nas costas dela. Dá para agüentar? Com todo o respeito à autoridade de Jesus (pois o interpela como Mestre e Senhor), pede a interferência dele para que a irmã assuma a sua parte na tarefa que agora está na vez. Não escapa um tom de censura ao próprio Senhor (“… não te importas…?”). Mas vai mais longe. O seu pedido mais parece ser uma exigência: “Ordena-lhe, pois, que venha ajudar-me”. Que intimidade ou ousadia é esta? Dada a autoridade de Jesus, reconhecida por ambas, Maria há de obedecer e tudo estará outra vez em ordem – na visão de Marta.
v. 41 – A resposta de Jesus, cheia de compreensão, reconhece o motivo justificado de sua inquietação. Concede que do ponto de vista dela tem razão. Mas este ponto de vista precisa ser corrigido.
v. 42 – As muitas cousas com as quais Marta está se estressando nem são necessárias: “…pouco é necessário…” Necessário para quê? Para satisfazer a fome dos convivas? Eles realmente não precisam de muitas coisas no estilo de vida adotado por Jesus e seus discípulos. Segundo o costume oriental, porém, acolher hóspedes exigia muito e não ficaria bem ser negligente. Era questão de honra – para a hospedeira. E o hóspede e seus companheiros? Não se deveria corresponder, sobretudo, à expectativa deles? “…ou mesmo uma só cousa…” ! [Os comentaristas apontaram para diferenças na tradição (manuscritos) do texto deste versículo. Alguns têm “só uma coisa é necessária” (assim, p. ex., o texto em que a tradução de Lutero se baseou), outros “… pouco é necessário”. Já o texto grego adotado por Nestle é o da tradução de Almeida (como citado acima).]
Qual é esta “uma só coisa”, que seria imprescindível nesse momento? Se é o que Maria escolheu, então só pode ser ouvir a palavra de Jesus, ou seja, receber o Evangelho. É a “boa parte”. Pode haver outras menos importantes, mas esta é prioritária.
3. Meditação
“Vem, Senhor Jesus, sê nosso convidado, e tudo que nos dás, nos seja abençoado. Amém.”
Bem conhecida em nossas comunidades e certamente também praticada é esta oração à mesa. Consideramos um bom costume fazer oração à mesa. Lembrar-se de Deus na hora em que podemos sentar para tomar as nossas refeições. Faz muito sentido, pois é testemunho de que se reconhece que a refeição tem a ver com Deus.
E que oração significativa esta, que talvez já aprendemos a orar como crianças. Será que faz parte da tradição em nosso lar? Mas será que sempre nos conscientizamos do que estamos fazendo aí? Estamos convidando o Senhor Jesus para estar conosco, participar da comunhão de mesa. Será que levamos a sério o que os nossos lábios pronunciam rotineiramente? A segunda parte da oração então é uma afirmação de fé: Foi Jesus quem nos presenteou com a refeição, seja ela farta ou simples e até parca. E pedimos a bênção dele.
Verdade é que essa oração, quando sincera, conta com um hóspede invisível.
O trecho bíblico que serve de base para a pregação deste domingo conta um episódio da vida de Jesus. Na sua última peregrinação a Jerusalém, passava com seus discípulos por um povoado onde moravam seus amigos Lázaro, Marta e Maria Betânia. A dona da casa era Marta. Para ela foi uma honra e grande satisfação receber Jesus e seus acompanhantes como hóspedes em sua casa. Um hóspede importante e amado a gente recebe com alegria e não mede esforços para bem servi-lo com o melhor que a gente tem. Para Marta, isso era o mais natural e, além disso, correspondia aos bons costumes de sua época. Na história, desde o início, Jesus é o personagem mais importante. Esse lugar também deve ocupar na pregação. A ele Marta dedica toda a atenção. Ela quer servir, dando o melhor de si. Quer caprichar em tudo. O empenho é louvável. Ou não? Mas ela não faz questão de servir sozinha. Ali está a irmã Maria (o irmão Lázaro aparentemente está ausente). Espera a ajuda dela. Mas esta mui tranqüilamente está aos pés do Mestre, ouvindo com toda a atenção os ensinamentos. Esqueceu o mundo ao redor de si e também as eventuais responsabilidades de auxiliar a dona de casa nos afazeres óbvios e mais prementes. Mesmo assim, ela será defendida pelo hóspede e até elogiada por sua atitude, quando censurada pela irmã. E por que isto? Só porque estivesse na posição inferior (senhora era Marta), a parte mais fraca? Aprendemos que não.
A gente sempre está inclinado a tomar o partido de Marta, mesmo depois de amavelmente exortada pelo Senhor. Não era agora a hora de honrar o sagrado dever de servir corretamente o hóspede? E não se precisavam para isso todas as mãos? A atitude de Maria, apesar disso, deve ser a exemplar? Não é muito fácil ser uma Maria quando se tem uma Marta? Deixar, pois, para os outros o trabalho pesado? E não se torna muito difícil ou até, conforme as circunstâncias, quase impossível ser uma Maria quando não se tem uma Marta? Não poderiam ambas pegar no pesado, para depois ambas ter tempo para ouvir os ensinamentos?
“Entretanto, pouco é necessário, ou mesmo uma só cousa!” Quanto seria o “pouco” e para quem? E o que seria “uma só cousa”? A boa parte que Maria escolheu – estar aos pés de Jesus e ouvir seus ensinamentos? E o que significaria isto na prática hoje?
Marta tinha os seus conceitos claros (e bem de acordo com os costumes vigentes) e tinha a coragem de defender o seu ponto de vista até diante de Jesus. A palavra e a atitude de Jesus, no contexto, devem levar-nos a refletir e repensar e, quem sabe, revisar nossos conceitos sobre aquilo que é necessário e prioritário para a nossa vida. Antes de tudo, o trecho nos ensina que Jesus é o senhor, isto é, a ele cabe definir o valor de cada coisa. Dar a orientação para a conduta de seus seguidores.
Isso já começa num assunto tão simples como uma refeição. O que ela representa? Qual é o papel que devem ter a comida e as coisas materiais para a nossa existência?
Marta queria servir – louvável intenção. Jesus, no entanto, queria antes de tudo presentear, doar-se. Quando oramos “tudo que nos dás”, reconhecemos que Jesus é o doador – não só dos alimentos eventuais. Ele quer dar a vida plena. O alimento faz parte. Ele próprio ensinou a orar “o pão nosso de cada dia dá-nos hoje”. Mas também declarou em situação crítica de sua missão: “Não só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que procede da boca de Deus”.
Antes de ser servido, ele quer servir – e dar a sua vida em resgate da pessoa humana. Para viver em comunhão com Deus. Por isso: “… buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas estas cousas vos serão acrescentadas” (Mt 6.33; ver também Jo 6.27). Esta busca (do Reino de Deus e sua justiça) não pode ser assunto de um dia nem de algum tempo ou época, mas de todos os dias de nossa vida. Para isso é preciso reservar espaço. Ter tempo para Jesus. Do contrário, não poderá ser recebido, e a gente em meio a tanta agitação da vida hodierna vai perder “a boa parte”. Isso acontecerá através do culto dominical, da comunhão com os irmãos na fé, inclusive na Santa Ceia, mas também do culto doméstico, da devoção diária, da leitura sistemática da Palavra de Deus. Assim teremos melhores condições de enquadrar e conferir o peso adequado às coisas materiais e ao trabalho por elas. E ainda sobrará tempo para dedicar-se a servir – ao próximo (p. ex., aos “pequeninos irmãos” de Jesus – Mt 25.40). Isso requer sabedoria. Uma boa administração do tempo e dos recursos materiais e até das energias do nosso corpo, alma e mente. Dos dons que Deus nos concedeu, naturais e espirituais, os dons de graça (=carismas). Isso será, então, o nosso “culto racional” ou “verdadeira adoração” ( cf. Rm 12.1).
4. Indicações para a pregação
Posso imaginar a seguinte temática e desdobramento:
Tema: Como receber Jesus e viver como discípulo.
a) Receber Jesus;
b) Buscar sua dádiva essencial;
c) Enquadrar o “pouco” necessário.
Para iniciar, pode-se recitar a oração de mesa referida, fazendo algumas perguntas e comentários a respeito dos sentimentos que evoca e do significado que tem para nós.
Passar à primeira parte, narrado como Marta e Maria o receberam, segundo o texto, valendo-se do que se procurou evidenciar na exegese e meditação. Marta querendo dar de si, segundo seu ponto de vista. Maria deixando de lado costumes e regras humanas, querendo receber o que Jesus tinha para dar. Enfatizar a palavra de Jesus a Marta do “pouco” e “uma só coisa”.
Na segunda parte, partindo daquela citação, perguntar o que aparentemente cada uma das irmãs esperava de Jesus. Marta: aprovação, elogio pela “boa obra”. Maria: sobretudo ser servida por Jesus, sorver sua mensagem. E o que esperamos nós de Jesus para a nossa vida? Qual seria a dádiva essencial de Jesus? O que nos comunica o Evangelho? Salvação e vida em abundância. Vida em paz com Deus e com o próximo. O tempo ele nos dá. Cabe a nós administrá-lo de acordo com as prioridades por ele colocadas.
Finalmente, teremos que refletir um pouco sobre o papel do “pouco” que é necessário. Qual o sentido do nosso trabalho, do fruto do nosso trabalho para nós e em favor do próximo, sempre atentos ao exemplo de Jesus e à sua palavra no dia-a-dia.
5. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados – Aproximamo-nos humildemente de Ti, Senhor, a confessar a nossa iniqüidade e culpa. Lembrando os teus mandamentos, sentimos culpa. Faltamos com o amor e respeito a Ti e ao nosso próximo. Primeiro em relação aos da família, da família da fé, mas também em relação aos “pequeninos irmãos” de Jesus, aos que se perderam em vícios, drogas e uma vida de pecado. Perdoa-nos a falta de sensibilidade, a indolência, a falta de coragem. Tem piedade de nós, Senhor!
Oração de coleta – Senhor, dá-nos tranqüilidade e concentração para ouvir a tua palavra. Ilumina-nos por teu santo espírito, mente e coração para receber a mensagem que tens para nós hoje. Fortalece-nos a fé na comunhão com os irmãos. Amém.
Oração final – Colher sugestões para motivos de oração da comunidade reunida em culto.
Temas que também poderiam ser incluídos: pelos pais, pelas famílias para que vivam em harmonia e paz, pelo respeito mútuo; pelos programas na comunidade que servem para fortalecer a comunhão: grupos de estudo bíblico, escola dominical, de jovens, OASE e outros; pelo trabalho missionário local e geral na Igreja.
Bibliografia
GRUNDMANN, Walter. Das Evangelium nach Lukas. 8. ed. Berlim: Evangelische Verlagsanstalt, 1978.
NESTLE, Dieter; NESTLE Angermann, Inge. Auxílio Homilético sobre Lucas 10.38-42 in: Neue Calwer Predigthilfen. Stuttgart: Calwer Verlag Stuttgart,1980.
RENGSTORF, Karl Heinrich. Das Evangelium nach Lukas in: Das Neue Testament Deutsch. 4. ed. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1949.
SCHLATTER, Adolf. Die Evangelien nach Markus und Lukas. Stuttgart: Calwer Verlag Stuttgart, 1954.
VOIGT, Gottfried. Die geliebte Welt: Neue Folge: Reihe III. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1980.
Proclamar Libertação 29
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia