Uma análise da realidade histórica, no mês de janeiro passado, nos leva a um confronto com uma série de eventos marcantes..
Recordando: há vários anos coexistem, embora afastados por milhares de quilômetros e também por uma enorme distância de propósitos, o Fórum Social e o Fórum Econômico Mundial. As convicções defendidas, assim como o espírito que emana de Davos, na Suíça, e a agenda de discussão somada à visão de mundo e de sociedade, em Porto Alegre, são muito diferentes.
Um segundo fato que alertou o mundo e repercutiu nos meios de comunicação foi a postura adotada no discurso de posse para seu segundo mandato, pelo chefe da nação mais poderosa e rica do nosso planeta. Causa espanto quando homens públicos sustentados pelo poder econômico e bélico se apresentam como “reformadores” do mundo, braços estendidos e profetas de Deus, inspirados pela vontade que vem de um mundo “extra nos”. Homens empenhados na garantia da liberdade tão sonhada, ao mesmo tempo avalistas sobre a realidade do bem e do mal, juízes que determinam o caminho ao céu ou para o inferno.
Na seqüência dos fatos, outro episódio merece destaque. Data de 72 anos passados: em 30 de janeiro ascendeu ao poder, na Alemanha, o ditador nazista Adolf Hitler. A esperança que ele semeou nas massas da nação alemã, corroída pela insustentável crise de ordem social e econômica, fez com que o ditador fosse aclamado como ídolo, um semideus. O salvador da pátria tinha supostamente encarnado!
E ainda um quarto detalhe a fazer história: em 27 de janeiro de 1945, aconteceu a libertação do campo de concentração de Auschwitz, na Alemanha. Um marco da desgraça, da tortura e da morte de vítimas do nazismo foi posto a descoberto e caiu!
Quando seres humanos perdem a orientação e a identidade que lhes é particular, se instala logo a confusão, o orgulho e a hybris do poder. Avança célere a força da desumanidade. A sabedoria expressa nos textos da Bíblia interpreta a tentação do homem, cuja ambição o leva a ser mais do que lhe compete, sendo um ato de extrema rebeldia contra o Criador. Nasce a potencialidade do pecado, um poder avassalador, muito mais forte do que um mero defeito na estrutura humana e muito mais grave do que um deslize moral. A desgraça, o desrespeito, o crime contra a vida alheia e a criação de Deus logo se apresentam como manchas geradoras do medo, do desespero e do sofrimento.
Jesus da manjedoura, o Cristo da cruz e da Páscoa nasceria para denunciar a divinização da criação e para desmascarar a tendência de auto-idolatria das pessoas humanas. Citando palavras do teólogo Klaus Wengst: “Deus vem ao mundo para reagir à violência humana não com nova contraviolência, mas com perdão e reconciliação. Naquilo que se apresenta, à primeira vista, como falência momentânea de seu Filho põe, ao mesmo tempo, novo início, não só para ele, mas para todos os homens.” Inicia-se um novo jeito de vida; em Jesus Cristo irrompe na realidade do mundo a presença do Reino de Deus.
Lutero, no século 16, asseverou que nós, os humanos, só podemos rogar pela vinda do Reino e nos associar às palavras de Jesus “Venha o teu Reino”. Se muito, talvez colocar aqui e ali um sinal que antecipa esta nova proposta de comunhão e de mundo. O Reino cresce e se desenvolve em silêncio, misteriosamente, à semelhança da semente colocada na terra. Nosso Deus prescinde dos “profetas armados” e também não conta com os salvadores do gênero humano. Autoridades humanas, tanto as civis como as religiosas, somente podem se empenhar por “salvações parciais”; elas geram somente o bem-estar com limites. A salvação plena e definitiva não é produção humana que vem de cima para baixo, e que se desenvolve a partir do “centro do poder.”
A vocação das pessoas cristãs é brilhar como luzes em meio às trevas, cooperar na transformação do mundo e frutificar onde aparentemente só há deserto e terra seca.
Estar a serviço da “salvação integral”, obra de Deus, jamais produção humana, é um grande privilégio. Na realidade, trata-se de um processo de aprendizagem constante. Enquanto aprendizes diante da vinda do Reino, seremos pacientes e ativamente tolerantes.
Manfredo Siegle
pastor sinodal do Sínodo Norte-catarinense
da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)
em Joinville – SC
Jornal A Notícia – 04/02/2005