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Jesus desceu ao inferno ou ao mundo dos mortos. “Justamente no abandono e na fraqueza mais totais, Jesus é vitorioso sobre o inferno, a morte e seu poder. Não vivemos mais sob o império dos “terrores sem fim, mas o principio do fim de todos os terrores é chegado”. Walter Altmann

 Que lugar é este?

 A igreja teve como tema do ano, em 1996, “Aqui você tem lugar”. É um tema com linguagem popular, fácil de entender. Uma das idéias é abrir espaço para todas as pessoas e afirmar claramente que elas têm lugar na comunidade. A igreja é lugar para a expressão da diversidade brasileira. O tema é significativo para abrir horizontes e visão de mundo, de igreja, de fé, de esperança e de amor. Quer tornar a igreja mais aberta, amiga, acolhedora e significativa para todas as pessoas das mais diferentes culturas, raças, etnias, ides sociais, idades, condições de vida.

 Por outro lado, nos perguntamos em que lugares gostamos de ir para a serviço de Deus e da humanidade. Se por um lado a igreja deve ser espaço para todas as pessoas, por outro lado ela, isto é, seus membros na diversidade dos dons são convocados por Deus para “ ir e fazer discípulos em todas as nações” (Mt 28.19a). Todas as nações são, hoje, todos os lugares bonitos ou escabrosos. Então, em que lugares vamos e em que lugares não vamos? Em que lugares vamos com alegria e prazer e em que lugares temos medo de ir? Em que lugares estamos indo para pregar o Evangelho, isto é, ensinar e viver a palavra do Senhor sob diferentes jeitos? Há alegria em ir? O que significa esta alegria? Há dificuldade em ir? Que dificuldade é e o que ela significa?

Durante um estudo bíblico, o grupo resolveu inovar e discutir o assunto. As pessoas se manifestaram. Uma pessoa disse que ela não vai junto aos bêbados que estão nas rodoviárias. Pois, ela teria medo de se misturar com aquela gente. Disse, também, que tem medo de ir a um lugar onde só há gente estranha ou de cor diferente da sua. Outra disse que não quer ir onde tem gente doente, machucada, sangrando, chorando ou gemendo. Uma terceira disse que tem pavor de velório e lá não podem contar com ela. Ir ao cemitério ou, então, dormir numa casa onde houve recente falecimento, nem pensar. Alguém disse que não vai, de gente nenhum, num presídio. O grupo concluiu que o que esses lugares têm em comum é que despertam medo e lembram “inferno”. Despertam medo e insegurança. As pessoas se sentiram inseguras, sem motivação e fragilizadas para irem a estes lugares. E a pergunta que vem logo é: existe algum lugar ou alguma situação que é soberana e que não conta com Jesus? O que você acha? Em que lugares você não vai para ensinar e viver o evangelho de Jesus Cristo? Converse sobre o assunto.

 Podemos ir?

O grupo de estudos bíblicos foi curioso. E resolveu investigar e estudar o assunto dos lugares que metem medo na gente. Perguntou o que a Bíblia, os escritos confessionais evangélico-luteranos e teólogos da atualidade dizem sobre o assunto. Veja abaixo as impressionantes reflexões e conclusões.

O Credo Apostólico confessa que Jesus “desceu ao inferno” ou, na versão atual, “desceu ao mundo dos mortos”. A morte de Jesus foi tão real, o abandono em que se viu jogado tão completo, que até mesmo de Deus foi desamparado ( Mt 27.46). Daí dizer que ele desceu ao inferno (hades), isto é, ao mundo dos mortos, que, segundo a tradição judaica, era o lugar mais afastado de Deus. Esse parece ser o sentido original dessa confissão, que só em 359 entrou para o Credo Apostólico. Descer ao inferno significa o ponto mais profundo do sofrimento de Cristo. Não há recanto, por mais distante de Deus, a que Jesus não tivesse ido. Dialeticamente, porém: “Ele é divino precisamente em que tenha se tornado nosso irmão através de todos os infernos”.

A partir daí se desenvolveu um segundo sentido para essa confissão: a conquista do inferno, do mundo dos mortos. Nada há lugar, por mais distante de Deus, que escape a seu propósito libertador. Não há nenhuma época nem pessoa alguma, mesmo de tempos passados, que não sejam por ele resgatados.

Ambas as linhas, a do abandono de Jesus entre os mortos e a da vitória de Jesus sobre o mundo dos mortos, já estão mencionadas em diferentes passagens bíblicas. At. 2.27 e Rm. 10.7 falam da presença de Jesus entre os mortos, enquanto que I Pe. 3.19;4.6, além de Mt. 27.52s e Ap. 1.18, dizem, de modos diversos, que Jesus venceu o inferno ou o mundo dos mortos.

A junção dos dois significados, à primeira vista contraditórios, não deixa de ser significativa em si: justamente no abandono e na fraqueza mais totais, Jesus é vitorioso sobre o inferno, a morte e seu poder. Não vivemos mais sob o império dos “terrores sem fim, mas o principio do fim de todos os terrores é chegado”.

Sobre esse pano de fundo existencial, ficam claras a obra de Jesus e a razão da linha descendente, desde o Pai até o inferno. A linha é imposta pela necessidade da redenção, do resgate. “A palavrinha ‘Senhor’… significa tanto como Redentor” (Livro de Concórdia, p. 450), e tudo quanto Jesus fez não foi “para si mesmo, nem o necessitava” ( p. 451). Sua vinda desde o céu até a profundeza da morte e do inferno foi “a fim de socorrer-nos” (p. 450). Os “tiranos e carcereiros estão afugentados, e seu lugar foi ocupado por Jesus Cristo, Senhor da vida, da justiça, de todo bem e ventura” (idem). Nós fomos libertados, postos sob a proteção divina e seu governo de justiça.

Jesus, o Senhor, desce das alturas de Deus à nossa vida, até a morte na cruz, até mesmo ao mais profundo abandono na profundeza do inferno. Que descida impressionante para quem não tinha necessidade alguma, para si mesmo, de sair de Deus. Compartilha, porém, a condição humana de vida, com suas misérias, sofrimentos, de bêbados na rodoviária, de quebrados, de cemitérios, de choros, de gemidos, de dores, de presídios, de estranhos, de diferentes, de mortos e de opressões. Jesus, igual a Deus, se tornou humano, bem humano! Ele é o Senhor singular, porque se tornou nosso irmão, irmão solidário e irmão sofredor. As misérias e os sofrimentos, os inúmeros infernos de nosso mundo, mesmo que ainda reais e poderosos, já perderam seu terror, porque não são mais sem Jesus”.

3. Quem é que vai?

O descer de Jesus se faz necessário, não para conformar-se com a miséria e o sofrimento, mas para resgatar os encarcerados de toda a espécie de males. “Descer ao inferno” se faz necessário, por que o pecado humano estabeleceu relações de opressão, morte, ódio, indiferença, violência. Jesus paga o preço por esta sua descida ao inferno. E sua obra, para nós maravilhosa, liberta a humanidade das situações de inferno em que se meteu. Os que crêem e confiam no Senhor, vivem a liberdade, o consolo e o alívio da ação de Jesus. Ao mesmo tempo, livres libertados combatem as causas que levam às prisões, à miséria e ao mal.

O grupo de estudos bíblicos foi crescendo e mudando de idéia. O que as pessoas acham que era impossível fazer, se tornou razoável no horizonte de suas ações. Após estudo, oração e prática reflexiva comunitária, sua postura em relação aos lugares escabrosos mudou. As pessoas entenderam e perceberam que não há lugar, por mais complicado que seja, que escape do senhorio de Jesus Cristo. Isso foi uma grande libertação do grupo. Planejaram fazer uma vista ao presídio. Na semana seguinte, o grupo foi lá. Algumas pessoas, ainda, estavam receosas. Mas compreenderam que estavam sendo libertadas por Deus que as convidava para fazer o seu trabalho de regeneração, reconciliação e ressocialização de pessoas em conflito com a lei, consigo mesmo, com o próximo e com o direito. Ali, também, Jesus está e pelos presos morreu para que tivessem oportunidade de vida e salvação.

Outra parte do grupo foi ao encontro de um povo diferente e criaram amizade e comunhão com uma comunidade que vive em outro bairro. Fiéis ao Senhor que os libertou, foram pelos caminhos da esperança para irem, também, aos lugares mais distantes e diferentes de sua realidade. As pessoas têm lugar na igreja. A igreja livre libertada tem lugar no meio do povo, pois, ela é povo de Deus. Como povo de Deus, vive e educa na fé para a reconciliação.

P. Teobaldo Witter, Cuiabá, MT – e-mail: twitter@terra.com.br

 

Referência Bibliográfica:
ALTMANN, Walter. Desceu ao inferno. In: Proclamar Libertação: Suplem. 1, São Leopoldo, RS, Ed. Sinodal, 1982.