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Nosso compromisso com a paz na criação de Deus

Salmo 95.1-6

O Salmo 95 nos convida para uma festa. Não só nós conciliares, mas todos os povos, todas as comunidades. Comparecer diante de Deus com ações de graças. “Pois ele reina em todos os lugares, toda a Criação é Dele e nela Ele está presente. A sua presença nos mares e em toda a terra, com a sua paz e seu espírito, motiva alegria, muita alegria.

O povo de Deus celebrou, pela fé, a criação como amiga e generosa, uma majestade que provém de Deus e contem a sua presença.

Conforme o Salmista, o Deus Criador é digno de louvor, de uma festa, da gratidão das pessoas e dos povos que reconhecem e expressam a bem aventurança da sua presença na Criação, nos mares e na terra.

Encontramos no Salmo 139 uma fé semelhante: não podemos escapar da presença de Deus, ele nos encontra nas profundezas da terra, ou nas montanhas. O Salmo pressupõe a presença de Deus em toda a Criação.

Para o nosso tempo esse anúncio é uma novidade. UMA GRANDE NOVIDADE! Nós não fazemos festa de ação de graça pela terra, pela chuva, pelos rios, lagos e mares. A nossa festa de gratidão a Deus restringe-se aos frutos e frutas, colheita dos alimentos. Não festejamos as fontes dos rios, saboreamos somente a água limpa que dali jorra. Permanecemos cegos diante da presença de Deus nas fontes de alimentos e de vida.

Os povos do ocidente, em geral, não cultivaram a amizade com a Criação. Em alguns momentos da história demonizaram as matas, os lagos, os mares. Ainda hoje lidam com a Criação como se ela fosse uma inimiga. Exercem a espoliação, roubam as riquezas da terra e dos rios, são irresponsáveis com belezas e com a presença de Deus na Criação. Também entre nós incorporamos comportamentos, valores, costumes e culturas, alguma delas de sobrevivência, que legitimam a destruição da Criação. Tanto assim, que nos falta rituais e práticas de louvor e gratidão pela Criação, pela presença e pela paz de Deus na Criação.

Certamente levaremos de 20 a 50 anos para incorporar em nossos rituais de fé, o louvor ao Deus Criador, por sua presença na Criação, na terra, nos rios, nos lagos, mares. Afinal, Isso não se consegue por decreto. É preciso a graça da fé. E ela vem do anúncio da presença de Deus na Criação, do testemunho e da vivência digna com a Criação, sob o espírito de cuidado, de amizade, sob o espírito de respeito e com amor. De outra maneira não edificaremos o compromisso com a presença de Deus na Criação.

Na história da colonização foi preciso mais de 200 anos para reconhecer os índios como gente, como pessoa humana.

Séculos para concederem direitos políticos e outros direitos às mulheres. Séculos para aceitarem as crianças no Sacramento da Santa Ceia. Anos e anos para darem acesso às pessoas com necessidades especiais à casa, cidade e aos templos, providenciando rampas, pontos de segurança, portas adequadas, etc. Da mesma forma, muito tempo para acolherem às mulheres ao exercício dos ministérios com ordenação.

Lembro que somos lerdos, muito lerdos e limitados, para aceitar que da água e da Palavra, no Batismo, Deus vem a nós e nos concede a graça da participação na vitória sobre a morte, e nos adota como cidadãos do seu reino. Como é difícil crer que Deus não precisa de nós para criar um novo nascimento, para nos fazer, tal como somos, hospedeiras e hospedeiros do Espírito Santo. Como é complicado aceitar essa maravilhosa dádiva e interagir com ela com liberdade, honestidade, confiança, esperança e compromisso.

O nosso compromisso com a paz na Criação de Deus está diretamente relacionado com a dádiva e a ação salvífica de Deus no batismo. Como o apóstolo Paulo já nos ensinou, desde o Batismo ganhamos a graça do recomeço: “Se alguém está em Cristo, é nova criatura: as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas” (2 Co 5.17).

Essa mesma dificuldade com a dádiva de Deus no Batismo temos ao resistir ao anúncio bíblico de que Deus reina e está presente em sua criação.

Não podemos esperar 20 a 50 anos para participar da missão de Deus sem a nossa reconciliação com a terra, com as águas, com toda a Criação de Deus. Já aprendemos a orar e clamar para e junto com as minorias, com os excluídos, famintos e empobrecidos. Chegou o tempo de ouvir o grito e os gemidos que vem das águas, da terra, da Criação ferida, atacada, vítima da destruição.

O nosso louvor, a nossa gratidão, a nossa festa a Deus, não serão completos, estarão comprometidos se permanecemos alienados, indiferentes e irresponsáveis às dores do mundo e da Criação.

Não podemos ignorar o primeiro artigo da confissão de fé que mais proclamamos. E a festa proposta pelo Salmo 95 nos convida para participar de um novo renascimento. Seguindo o salmista, abrir os nossos olhos e mente para ver e perceber a presença de Deus no mundo, desde as cavernas mais profundas até os montes e cordilheiras mais altos. Também nos mares, nos lagos e rios. Nascer de novo transbordados de alegria pela unidade da vida e pela paz na Criação com a presença de Deus, que transcende o nosso umbigo, e se estende aos mares, à terra e à toda a Criação.

Incluo nessa reflexão uma referencia às dezenas de vezes que a Criação de Deus, nos relatos bíblicos, foi tomada como mediadora do anúncio do evangelho: mensagens, metáforas, parábolas: o mar vermelho, o poço de Jacó, o dilúvio, o deserto, os montes, os animais, a flora, os ventos, as sementes. Mais um sinal que legitima a graciosa percepção de que Deus interage com a plenitude com a sua Criação e nos vocaciona para essa missão.

Por fim refiro-me a uma mensagem aprendida do Rio de Tietê:

O Rio Tietê nasce na Serra do Mar, na Mata Atlântica – várias fontes, frágeis, dádivas, tal qual o sacramento do batismo: uma dádiva pura, surpreendente, fonte de vida para a plenitude.

O Tietê passa pelas grandes cidades da Metrópole de São Paulo. Lá ele é ferido, atacado, desrespeitado, destruído – por lá ele passa morto. Nesse percurso o Rio Tietê espelha a presença da cruz de Cristo.

Depois de sepultado no percurso das grandes cidades de São Paulo, 20 a 30 km depois, o Rio Tiete renasce. Tal como a nossa fé e esperança na comunhão com o nosso Deus em Cristo ressuscitado, o Deus conosco.

Surpreendentemente o Rio Tietê está entre os poucos que corre em direção ao continente e não para o mar.

A fé na presença de Deus em nós e na Criação constrói a amizade e a reconciliação com a Criação – motivo de festa.

Esta fé e louvor cria compromisso, proteção, defesa da vida e da criação.

Desde o batismo estamos em comunhão com o Deus que, em Cristo e pelo Espírito veio a nós. E assim preparados, preparadas para tecer a reconciliação com a terra, os rios, lagos, mares, com toda a Criação.

Que o amor de Deus nos sustente nesse tempo de mudança e reconciliação com a Criação de Deus.

Guilherme Lieven, Pastor Sinodal
Sínodo Sudeste – IECLB