Prédica: Êxodo 22.21-27
Leituras: 1 Tessalonicenses 1.5b-10 e Mateus 22.34-40(41-46)
Autor: Marcos Bechert
Data Litúrgica: 23º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 03/11/1996
Proclamar Libertação – Volume: XXI
Tema:
1. Contexto
1.1. A perícope em questão faz parte do chamado Código da Aliança, que é um conjunto de leis antigas: Êx 20.22-23.19. Lendo nas entrelinhas deste Código, podemos concluir que ele surgiu entre agricultores (Êx 23.10s.,16), que conservavam costumes de uma vida familiar pacata, mas também cheia de problemas e conflitos violentos que ameaçavam desintegrá-la: problemas com escravos, estrangeiros, pobres, venda de filhas para a sobrevivência, cobrança de juros, enriquecimento, assassinatos, brigas por causa de mulher e de bois… Até a jus¬tiça era negada ao pobre, havia falso testemunho, suborno (23.1s.,7s.). Em suma: a vida tribal com seus costumes estava ameaçada de desintegração. Até na religião havia confusão, pois ao lado de Javé havia outros deuses que estavam sendo adorados ou invocados: ouro e prata (20.23), santuários cananeus (20.26), feitiçaria (22.18).
1.2. Quanto à origem do Código, a Bíblia diz que Deus o entregou a Moisés e que este o entregou ao povo, lá mesmo no deserto (20.22). Mas percebemos acima que o Código fala a um povo de agricultores e não a um povo nômade no deserto. Também não se menciona o rei, nem se fala de ameaças de reis externos. Disto pode-se concluir que o Código surge na época dos juízes, após o tempo do deserto e antes dos ataques dos reis vizinhos no fim da época dos juízes.
Creditar o Código à autoria de Moisés visa dar-lhe a autoridade deste, bem como a própria autoridade divina, e dar expressão aos valores da época do deserto: escravos libertos, Javé como Deus único, sem rei, sem trabalho escravo, sem acumulação de bens, sem empobrecimento, sem deuses falsos.
Expus no ponto 1.1., a partir de diversas passagens, que muitos destes princípios estavam sendo desrespeitados. Daí a necessidade de uma revitalização dos Dez Mandamentos: surge o Código da Aliança. Este deve ter surgido por volta de 1100-1050 a.C, recebendo sua última e definitiva redação bem mais tarde.
2. O Texto
Em Êx 22.21-27 encontramos a defesa dos direitos dos desprotegidos (forasteiros, viúvas e órfãos, e também dos pobres), um chamado à memória do povo (pois forasteiros fostes na terra do Egito) e a expressão de fé em Deus que ouve o clamor dos que estão sob opressão e que liberta da casa da escravidão(eu lhes ouvirei o clamor — v. 23; eu o ouvirei, pois sou misericordioso — v. 27).
2.1. É interessante perceber neste texto que as figuras, a linguagem e até as palavras de ameaça nos lembram da escravidão do Egito. O texto parece cunhado lá, dirigido ao faraó, mas o destinatário aqui é o povo que se libertou desta escravidão e vive na terra livre, onde manam o leite e o mel. Parece que o sistema do faraó vai se repetir entre o povo livre. Reproduzir o mesmo sistema parece o caminho fatal. Mas Deus não o permite. Ele intervém. O castigo anunciado é semelhante ao anunciado ao faraó. Deus quer ver respeitada a vida de todos, seja o do forasteiro, seja a do pobre.
2.2. Observemos os seguintes versículos: 21: não afligirás nem oprimirás o forasteiro; 22: não afligirás viúva nem pobre; 25: não cobrarás juros do pobre a quem emprestaste dinheiro; 26: a veste tomada como penhor deve ser devolvida antes do pôr do sol. Deles podemos depreender: havia forasteiros que estavam sendo explorados como escravos; às viúvas e órfãos não estavam sendo dados os direitos de sobrevivência e de proteção; ao pobre estava sendo tirada até a veste com que ele se cobria à noite, além de se cobrarem juros de quem tinha dívidas.
Além do problema econômico que encontramos nesta realidade, é preciso atentar para o problema social. E é esta a razão que leva Deus a tomar uma posição e fazer um alerta, chamando o povo à responsabilidade.
2.3. A primeira razão evocada para promover a harmonia e a integração social e econômica é o fato de que o próprio povo fora escravo no Egito. É preciso lembrar o povo, por meio desta lei complementar, que o seu passado fora cheio de sofrimento e opressão, e alertá-lo para que isto não se repita ao inverso, pois tornou-se um povo de senhores. A razão para não haver opressão agora é a lembrança de que foram forasteiros e escravos no Egito. E Deus os tirou de lá para viverem numa nova ordem, em convívio fraterno, livre e na condição de iguais.
2.4. Assim como outrora Deus ouviu o clamor que se levantou a ele, assim o fará também agora (vv. 23 e 27). Deus não compactua com a escravidão, com o desprezo da vida humana, da qual ele é o libertador. E sua presença constante vai ser experimentada até mesmo entre os forasteiros. Deus vai se revelando não só na memória histórica passada que pode ser celebrada, mas ele é presença reveladora também agora, com a mesma força libertadora de antes.
2.5. Deus age assim porque é misericordioso. Ele sente com o coração o sofrimento, a necessidade e a dificuldade dos forasteiros, viúvas e órfãos. Não tem necessidade de se preocupar consigo mesmo. Por isto ele vê, ouve e sente o clamor dos abatidos. Por isto vai ouvir, vai responder e ajudar.
2.6. Deus é misericordioso para com o desesperado, o oprimido, o sofredor. Assim como ouve a este com o coração, também vê com o coração o causador da injustiça: por isto a sua ira se acende. O castigo é assustador: serão mortos à espada, ficando suas mulheres viúvas e seus filhos órfãos.
É preciso, pois, que a relação econômica e social seja revista. Parece que a memória histórica, a promessa de ouvir os clamantes e as recomendações de como agir não são suficientes. É preciso uma palavra mais forte ao causador do mal.
2.7. Pretende-se uma nova forma de convivência, que não penalize o forasteiro, a viúva, o órfão e o pobre. É muito interessante que o forasteiro esteja incluído nessa defesa de Deus: isto indica a radicalidade do texto. É um texto fascinante: todos devem ter livre acesso ao trabalho e também ao fruto deste trabalho. Jesus, com a sua fala e a sua prática, concretiza este texto.
O texto do Evangelho para este dia e também o da Epístola do dia atualizam o texto da pregação para dentro do mundo neotestamentário. Tessalônica é apresentada como comunidade de prática exemplar, e o texto do Evangelho coloca o Grande Mandamento como condição para seguir Jesus, pois é na prática do amor ao próximo que se materializam a opção por Jesus e também o crer no Senhor''. E para uma prática que estou caminhando agora com a atualização.
3. Atualização
Inicio este terceiro ponto com uma poesia:
Vi, ontem, um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão.
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um HOMEM.
Além do verso forte deste poema, o que me impressionou foram o seu autor e também o ano em que foi composto: Manuel Bandeira, que o escreveu em 1947. O poema contém toda a análise necessária que se precisa fazer para dentro de nossa realidade. Mas quero concretizar um pouco mais a nossa prática social.
3.1. Todos nós já tivemos a sensação de estar no lugar errado: estávamos sobrando. Isto pode acontecer quando nos mudamos, quando um aluno entra novo na escola, quando vamos a um lugar onde não conhecemos ninguém ou a um culto numa comunidade longe de nossa residência. Muitas pessoas passam inclusive pela experiência de serem barradas. Isto pode acontecer quando se pretende entrar num clube, quando não se consegue vaga na escola, quando não se consegue trabalho ou quando o doente não consegue vaga no hospital, quando todo o mundo está comprando alguma coisa e o nosso dinheiro não dá. E aí o caldo começa a engrossar um pouco mais. Nós, membros das comunidades tradicionais, passamos por experiências de exclusão, mas geralmente elas não vão além de mexer com o nosso ego. Mas ser excluído permanentemente do mundo do trabalho, do acesso à terra, à comida, à roupa, à casa, à escola, isto é coisa bem diferente. Quando a barriga vazia ronca por comida permanentemente, a verdade passa a ser outra, e a experiência do estar sobrando também.
3.2. Há vários motivos de rejeição. Em geral as pessoas são rejeitadas:
— por medo (de violência, de pegar uma doença…);
— por preconceito (de raça, de classe, de sexo);
— por não serem consideradas produtivas (doentes, idosos, crianças, pessoas portadoras de deficiência);
— por terem um saber diferente (analfabetos, migrantes, camponeses);
— por terem feito alguma coisa que a sociedade reprova (encarcerados, drogados).
3.3. Precisamos tomar muito cuidado para que a prédica sobre este texto não se torne algo maçante e assustador. O objetivo deste culto deve ser motiva¬ção para uma prática solidária dos/das ouvintes. Um chamado para a realidade é necessário. E estou trazendo aqui algumas sugestões concretas de ação:
— Algo muito simples: prestar muita atenção à forma como lidamos com as pessoas ao nosso redor. Isto inclui família, passa pela comunidade, pelos/as colegas de trabalho e chega aos necessitados, desassistidos e desocupados que andam pelas ruas. É importante chamar a atenção para o comportamento para com os outros membros da Comunidade, pois cada um fica esperando que o outro tome a iniciativa de um acolhimento, pois sempre vemos no outro a Comunidade, enquanto que eu me considero aquele que deve ser acolhido. Comunidade somos todos; portanto, todos devemos acolher ao outro.
— Descobrir dentro da Comunidade e da sociedade pessoas e grupos que já desenvolvem um trabalho que visa integrar os estrangeiros-forasteiros.
— Tomar atitudes individuais que visem superar este sistema que exclui, marginaliza, passa por cima, esmagando o menor que já sempre está sobrando. Nunca devemos nos esquecer de que gestos individuais são importantes, mas que não mudarão a sociedade. Para isto é preciso ir bem mais longe; é preciso que se ofereçam oportunidades de vida e esperança, é preciso promoção de pessoas necessitadas e carentes, é preciso ter acesso à escola, profissionalização, assistên¬cia médica. Vocês percebem que é um problema estrutural. E aí complicou. Mas sabem de uma coisa? Nós vamos chegar lá. Deus quer, ele já tomou posição. Ele já falou. Amém.
4. Subsídio Litúrgico
Oração: Estamos aqui, Senhor, para ouvir a tua palavra. Nós sabemos do carinho que tens para com pecadores e rejeitados. Nós queremos ser acolhedores para com todos. Ajuda-nos todos/as a achar o teu caminho de salvação e de fraternidade. Ajuda-nos a amar, ao invés de julgar, e a ver no outro um filho de Deus, seja qual for a situação em que se encontre. Não nos deixes esquecer que sempre precisamos de perdão e novas oportunidades em nossa vida. Amém.
5. Bibliografia
MESTERS, Carlos. Bíblia: Livro da Aliança: Êxodo 19-24. São Paulo, Paulinas, 1986.
Proclamar Libertação 24
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia