Prédica: João 1.43-51
Autor: Ervino Schmidt
Data Litúrgica: 1º Domingo após o Natal
Data da Pregação: 04/01/1987
Proclamar Libertação – Volume: XII
Tema: Natal
l – Observações preliminares
A nossa perícope, que não tem paralelo nos evangelhos sinóticos, está intimamente ligada aos trechos precedentes (vv. 29-34; 35-42). Pela composição e pelo estilo pode mesmo ser entendida como conclusão. O esquema que adota é semelhante ao esquema dos vv. 35-42: De um lado os dois discípulos de João seguem a Jesus, de outro lado Felipe recebe o convite de seguir o Mestre. E mais: André leva Simão a Jesus, Felipe convida Natanael. No final, porém, o nosso trecho vai além, maiores cousas do que estas verás. O versículo 51 introduzido pelo solene em verdade, em verdade vos digo (…) indica culminância. Parece que há um crescendo até o ponto mais alto da compreensão do Cristo.
A título de curiosidade: André e Felipe são apóstolos de nome grego. Quando os gregos quiseram ver a Jesus, manifestaram seu desejo a Felipe. E André se encarrega de transmitir a intenção dos gregos a Jesus (12.20-22).
Outra coisa que chama a atenção. Conforme João, no início da atividade de Jesus encontramos Natanael com suas dúvidas. No final do evangelho (20.24 ss) temos Tomé na maior incredulidade: Enquanto um reconhece que o crucificado vive, o outro reconhece que Jesus não é somente aquele que cumpre a promessa, mas o Filho do homem em íntima e permanente união com Deus. Os dois participam da grande pesca e da ceia com o ressurreto (21.2 ss). Quando Jesus disse vinde comei, não duvidaram, mas sabiam que era o Senhor.
II – O texto
Vv. 43-44. Jesus se movia da Judéia para a Galiléia. Após essa breve indicação geográfica, é narrada a vocação de Felipe. Apesar de não ocupar amplo espaço o encontro entre Jesus e Felipe, ele é extremamente importante. Aqui se torna visível quem é que chama para o seguimento. Jesus pessoalmente diz segue-me. Ele chama. Nenhum outro! Também onde o convite parte dos que já se encontram no discipulado, o sujeito é sempre Jesus.
É mencionado que Felipe provém de Betsaida, cidade de André e Pedro. É uma cidade da Galiléia, ao norte do lago Tiberíades. A concluir a partir do contexto: com essa menção se destaca o fato que era um grupo bem específico, ex-discípulos de João, que passou para Jesus (R. Bultmann). Nos sinóticos Felipe aparece somente nas listas dos apóstolos (Mt 10.3p). No quarto Evangelho, porém, ocupa lugar importante (cf 6.5-7; 12.21-22; 14.8-9).
Vv. 45 Felipe, num ato de obediência, testemunha a outros o que lhe sucedera. Encontrou a Natanael. Este é um discípulo do qual somente João fala. Em 21.2 encontramos uma nota segundo a qual Natanael era de Cana da Galiléia. Desde a Idade Média se tem levantado a hipótese de se tratar de Bartolomeu mencionado nos sinóticos. Isto porque nas listas dos apóstolos o nome Bartolomeu segue imediatamente ao de Felipe. Mas esta questão não é decisiva para a compreensão da mensagem.
Aqui não nos são transmitidos esclarecimentos acerca de Natanael. Poder-se-ia discorrer longamente sobre a sua perseverança na procura, sobre sua fidelidade na leitura do AT. A imagem da figueira indicaria nesta direção. Como planta comum na Palestina, tornou-se, talvez devido à proteção e ao abrigo que proporciona, símbolo de tranquilidade para reflexão e leitura. Mas não é a pessoa de Natanael que está no centro. No centro está o conhecimento de Cristo. Felipe fala em nome da comunidade mais antiga: Achamos aquele, de quem Moisés escreveu na lei, e a quem se referiam os profetas, isto é, todo Antigo Testamento. O evento Jesus Cristo não é algo repentino e desconexo, mas o cumprimento das promessas de Deus e a afirmação da sua fidelidade. Deus cumpre o que prometeu. Nele podemos confiar. E Felipe explicita: Achamos Jesus o Nazareno, filho de José.
V. 46 Natanael sente dificuldades. Suas palavras de Nazaré pode sair alguma cousa boa? tocam o problema da origem de Jesus. Felipe identifica o Messias prometido com uma pessoa cuja origem natural sabe indicar. Com isso a promessa perdeu seu espaço livre: No momento em que é constatado seu cumprimento, ela passou a ser fato histórico. Não passa, com isso, a estar subjugada a outra ordem de valores? Será medida conforme os critérios de que é terreno, do mundo e do que é natural! Não é afetado, com isso, também o cumprimento como tal? (G. Sauter, Hören und Fragen 5, p. 116). Esta é, em todo caso, a preocupação que se manifesta na pergunta de Natanael. Não é necessário especular sobre a situação de Nazaré. Nada é dito que se tratasse de um lugar desprezível ou especialmente insignificante. O que choca é simplesmente o paradoxo que Jesus, identificável como nazareno e filho de José, ao mesmo tempo, o Filho de Deus, o rei de Israel. Conforme Jo 7.12 o que é bom só pode vir de Deus, só pode se divino!! A indicação de procedência terrena escandaliza porque parece não fazer jus à procedência divina do Messias esperado. Como este escândalo pode ser superado?
Argumentos inteligentes e bem estruturados, pelo que tudo indica, não ajudam. Argumentos racionais não convencem.
Vêm e vê, Vem e verás (R. Bultmann). Sem tentativas de contra-argumentação Felipe simplesmente convida para o confronto direto. Esse vir e ver, esse deixar-se confrontar com o Cristo vivo é o melhor remédio contra opiniões pré concebidas (Bengel). Bem antes que Natanael veja, Jesus o vê. Não é o en¬contro com um homem qualquer de Nazaré, mas com alguém que perscruta e conhece mesmo antes de pronunciar uma só palavra. Conhecemos como também somos conhecidos (1 Co 13.12). Ser conhecido e conhecer andam juntos.
Jesus lhe diz diretamente: Eis um verdadeiro israelita em que não há dolo, isto é, alguém digno de trazer o nome de Israel. Israelita é empregado no sentido da história da salvação. Designa alguém na expectativa do cumprimento da promessa divina. Israelita é um conceito positivo. O termo judeu, ao contrário, João usa em sentido depreciativo para designar os elementos do povo que se opõem ao Cristo. Natanael percebe que é conhecido a Jesus e pergunta admirado: Donde me conheces? Compreensível esta admiração: Jesus aponta para algo que sucede na silenciosa leitura da Escritura. É aí que aparece a referência à figueira que acolhe e oferece sossego. A partir daí a afirmação: Em quem não há dolo. É possível que essa expressão aluda ao SI 32.2. Neste caso a palavra de Jesus seria resposta a uma confissão de pecado. A atitude de Natanael então es¬taria caracterizada como estar aberto a Deus e diante de Deus na humildade do reconhecimento do pecado. Neste sentido não há dolo. Essa palavra tem seme¬lhança com a sentença aos discípulos em Jo 13.10 ora, vós estais limpos (…). Acrescente-se Jo 15.3: Vós já estais limpos, pela palavra que vos tenho falado.
O que sucedeu é algo que cria comunhão com Jesus. Da confissão exu¬berante de Natanael que contém três títulos cristológicos, Mestre, Filho de Deus, Rei de Israel se depreende a grandiosidade do ocorrido. Exatamente isso é acon¬tecimento salvífico: a luz vem resplandecer no mundo e transforma filhos pródigos em filhos da luz. Aí se dá revelação e libertação. Aí, acontece a confissão libertada. Filho de Deus e Rei de Israel lembram o SI 2 (Salmo real de coroação). Em Jesus as promissões do Antigo Testamento (Lei e os Profetas) se cumprem. Por esse cumprimento justamente esperava Natanael, esse verdadeiro Israelita.
Vv. 50-51. Maiores coisas que estas verás. Os sinóticos empregam a figura do céu aberto, do céu que se abre quando relatam o batismo de Jesus (Mc 3.21 p). O Filho do homem na terra se encontra sob o céu aberto, isto é, em constante comunhão com o Pai. A mesma cousa também expressa a imagem dos anjos de Deus subindo e descendo. Há aí, uma referência ao sonho de Jacó de uma imensa escada pela qual os anjos subiam e desciam entre a terra e o céu. Por isso, o lugar do sonho foi chamado de Bet-EI, ou seja, casa de Deus (Gn 28.12-17). A terra, assim, entra em comunhão com Deus. No quarto Evangelho a escada é substituída pelo Filho do homem, ele é a escada que liga a te/ra e o céu. Mas além disso ele é a própria presença do celeste entre os homens. É a visão da DOXA, da glória do unigênito do Pai. À fé é dado ter essa visão.
Mas o que vem a ser as cousas maiores? Como a fé poderá experimentar a comunhão de Jesus com o Pai de maneira ainda mais poderosa? João está apontando para os capítulos que seguem, para as obras do Filho que ocorrem em íntima relação (5.19 36) com o agir do próprio Pai.
Especialmente devemos pensar naquele evento através do qual o mundo é julgado e recebe vida (5.20-23; 6.35,51; 12.23-33). O agir terreno do revelador encontra sua consumação na morte de cruz. Isto é entendido, na tradição do Filho do homem, como irrupção das últimas coisas, como irrupção do fim. Assim, a glória do Filho do homem pode ser vista já agora, em Jesus Cristo.
O V. 51 é endereçado a todos os ouvintes. Isso se evidencia a partir do emprego do plural: Em verdade, em verdade, vos digo.
Ill – A caminho da prédica
1. Temos tradição. Temos afirmações dogmáticas. Temos uma cristologia desenvolvida. Temos confissões de fé. Temos o Credo Apostólico.
Poderá alguém ver nisto tudo mais um empecilho do que uma ajuda no caminho para Cristo. Mas, as confissões e a doutrina da Igreja estão aí! Brotaram da vivência da fé. É verdade, cada qual precisa fazer a sua própria experiência de fé. Não basta assumir o credo da Igreja como algo estranho, sacrificando sua consciência. Mas de outra parte, é verdade também que nossa fé não parte do ponto zero. Os que já crêem confessam: Achamos o Messias (v. 41 e 45). O sentido das formulações da Igreja não é: Fomos coagidos e obrigados, mas encontramos. Mas justamente aí se faz, então, necessário o ir e ver! Pois af não se solucionam enigmas, não se respondem a perguntas brotadas de simples curiosidade intelectual. Aqui algo infinitamente maior está em jogo. No confronto com Jesus Cristo a vida inteira recebe nova direção.
2. Conhecer Cristo. O encontro com Cristo significa encontro com aquele que nos perscruta e nos conhece. É um encontro na verdade. Todas nossas tentativas de nos esquivarmos aí são julgadas. Todos nossos subterfúgios são pos¬tos a descoberto.
Natanael faz a experiência: Jesus me conhece e exige compromisso total. Ele é o Senhor e tem esse direito. Nele toda minha procura aflita tem um fim. O coração inquieto encontra onde repousar (Agostinho). Natanael não recebe res¬postas para perguntas curiosas. Não lhe são desvendados enigmas. Natanael não recebe fórmulas mágicas para a solução de problemas. Algo incomparavelmente maior lhe sucede. Ele é chamado para o discipulado e recebe a promessa: Maiores cousas do que estas verás.
3. Com esta promessa Natanael vai e anda no caminho da obediência. É, agora, sua vez de testemunhar como Felipe: Achamos aquele de quem Moisés escreveu na lei, e a quem se referiam os profetas, Jesus, o Nazareno, filho de José (v. 45).
IV – Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, nesta época de Natal celebramos a revelação de teu imenso amor. Vieste para o mundo para nos salvar. Mas, em nossa fraca fé, temos dificuldades em aceitar o teu caminho do esvaziamento. Escandaliza-nos que te revelas na fraqueza. Que o Filho de Deus é, ao mesmo tempo, um nazareno, filho de José, não nos parece condizente. Por isso, repetimos com Natanael: De Nazaré pode sair alguma cousa boa? Procuramos outros senhores mais imponentes. Não levamos a sério a ti que és o único e verdadeiro Deus. Com isso contribuímos para que o mundo siga como se tu nunca tivesses vindo. Corrompemos o verdadeiro sentido de Natal. É tão fraco nosso testemunho do nascimento do teu Filho unigênito. Pedimos-te: Perdoa-nos! Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Deus, nosso Pai, fortalece-nos a fé. Dá que possamos perceber o que teu Filho Jesus Cristo realmente significa para o mundo. Liberta-nos da nossa dependência de leis que homens estabelecem em proveito próprio. Liberta-nos de tudo que escraviza. Por tua palavra faze brilhar em nossa escuridão a tua luz natalina.
3. Sugestões para a oração final: Agradecer pela fidelidade de Deus. Ele é fiel às suas promessas. Aquele de quem Moisés escreveu na lei, aquele a quem se referiam os profetas, o Messias prometido, se fez presente entre nós. Nele temos salvação, nele, liberdade. Na sua comunidade, já agora, experimenta¬mos nova vida.
– Pedir que Deus nos dê, através de seu Espírito, intrepidez e coragem para testemunharmos que achamos salvação e de vivermos a partir dela.
– Interceder por aqueles que sucumbem sob o peso de tudo o que na vida diária quer sufocá-los. Aos que andam em trevas queira Deus conduzir a sua maravilhosa luz. Pedir que todos possam ver que o verdadeiro poder está na fragilidade do amor divino. Todos os pretensos poderes não têm a última palavra. Que todos possam fazer a experiência que Jesus é da vida a vera luz, o Salvador bendito.
V – Bibliografia
– BULTMANN, R. Das Evangelium des Johannes. In: Kritisch-exegetischer Kommentar über das Neue Testament. 10. ed. Göttingen, 1964.
– HEGERMANN, H. Meditação sobre Jo 1.43-51. In: Calwer Predigt-Hilfen v. 1. Stuttgart, 1970.
– NICCACCI, A. et BATTAGLIA, O. Comentário ao Evangelho de São João. Petrópolis, 1981.
Proclamar Libertação 12
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia