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Prédica: Marcos 8.31-38
Leituras: Gênesis 28.10-17 e Romanos 5.1-11
Autor: Uwe Wegner
Data Litúrgica: 2º Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 19/03/2000
Proclamar Libertação – Volume: XXV
Tema: Quaresma

1. Introdução

O texto de Marcos 8.31-38, respectivamente dos seus paralelos sinóticos em Mt 16.21-28 e Lc 9.22-27, já foi objeto de várias reflexões em Proclamar Libertação (cf. PL XXI, p. 223ss.: Mt 16.21-26; XVI, p. 247ss.: Mc 8.27-35; X, p. 234ss. e XIX, p. 83ss.: Mc 8.31-38; X, p. 190ss.: Lc 9.18-26). O/a leitor/a tem, pois, suficiente material comparativo para aprofundar suas reflexões.

2. Considerações de conteúdo

O texto pode ser subdividido em duas partes principais:

a) Primeira predição de sofrimento, morte e ressurreição (vv. 31-33), subdividida em:

1. Ensino de Jesus sobre o sofrimento do Filho do homem: vv. 31-32a;

2. A reprovação de Jesus por Pedro: v. 32b;

3. A reprovação de Pedro por Jesus: v. 33.

b) Ditos sobre o seguimento de Jesus (vv. 34-38), subdividida em:

1. Dito sobre o negar-se e tomar a sua cruz: v. 34;

2. Dito sobre o salvar/ganhar ou perder a vida: v. 35;

3. Ditos sobre o valor da alma: vv. 36-37;

4. Dito sobre o envergonhar-se do Filho do homem e suas consequências: v. 38.

2.1. A predição de sofrimento, rejeição, morte e ressurreição: vv. 31-33

1)O ensino de Jesus sobre o sofrimento do Filho do homem: vv. 31-32a

Com Mc 9.31 inicia no evangelho o ensino de Jesus sobre a necessidade de seu sofrimento. Era preciso ensinar essa necessidade, pois o fato de que o Messias haveria de sofrer não fazia parte da dogmática messiânica daquela época. Esta esperava por um Messias cingido com força, para vencer os príncipes injustos (Salmos de Salomão 17.23ss.) e que mata reis e potentados, tingindo as montanhas com o sangue dos seus mortos e branqueando as colinas com a gordura dos seus guerreiros (Targum palestino de Gênesis 49.10ss.). Jesus não foi oficial de exército, seus discípulos não foram guerreiros, mas pescadores, e o reinado de Deus não pretendia ser construído com tropas, mas com o testemunho da verdade: Jo 18.36s.

Para Jesus, era necessário que o Filho do homem sofresse muitas coisas e fosse rejeitado pelos anciãos, pelos principais sacerdotes e pelos escribas. Certos autores são de opinião que Jesus extrai a convicção dessa necessidade imperiosa de sofrimento e rejeição a partir de uma releitura do destino do ' 'justo sofredor'' apresentado por salmos e outros textos do AT, como SI 34.4-6,17ss.; 118.21; Sb 2.12ss.; 5.1-7, etc., ou então diretamente de Is 53.4,11, onde se encontra por duas vezes a expressão muito sofrer, atestada também em Mc 8.31. Não há dúvida de que Jesus pode ter sido influenciado diretamente por textos deste tipo, entendendo-se à semelhança dos justos sofredores do AT. Mas existe também a possibilidade de outras vertentes para tal convicção, como, por exemplo, a tradição deuteronomística sobre a perseguição e o assassinato dos profetas, atestada em vários ditos jesuânicos (Mt 5.lis.; Mt 23.29-37; Mc 6.4; Lc 13.33).

É preciso, no entanto, que se tenha sempre presente o embasamento histórico dessa necessidade. Historicamente, as referências em Mc 8.31 atestam uma consciência muito clara das consequências funestas a que podiam levar os posicionamentos assumidos e as críticas feitas por Jesus à religião e organização social do seu tempo. Disto dão prova textos como Lc 4.25-27; 11.50; 13.34; Mc 10.38s.,45; Mt 23.29-36,37-39 e parábolas, como, p. ex., a dos vinhateiros homicidas (Mc 12.1 ss.: v. 8). Jesus sabia que o esperava necessariamente um destino trágico porque a sua opção pelo direito e justiça dos enfraquecidos o levava a uma colisão inevitável com aqueles que os exploravam e oprimiam. Myers (p. 297) atesta com razão que não se trata aqui de uma necessidade tio destino ou da fatalidade, e sim da inevitabilidade política. Além disso, participar como vítima e rejeitado da condição dos oprimidos tornava o seu amor como expressão do amor divino mais crível para os próprios oprimidos, li o que atesta Comblin:

O único lugar digno de Deus neste mundo é a cruz. Todo o resto seria vergonha. E o mesmo vale para todos os que crêem em Deus. Em um mundo como o nosso, o único lugar de honra e dignidade é a cruz. O resto é cumplicidade com a mentira, o homicídio e a destruição. (Comblin, p. 182.)

Este fato explica, aliás, também a opção de Jesus pelo título Filho do homem/Filho do humano, em detrimento de Messias: “ ‘Messias’ necessariamente significa triunfo régio e o restabelecimento da honra coletividade de Israel. Contra isso, Jesus argumenta que 'Humano' necessariamente significa sofrimento. (Myers, p. 297.) A mesma opção retorna em Mc 14.61s.! Isto não pode ser casual. Jesus não escolhe arbitrariamente Filho do humano para autodesignar-se. Neste título, enquanto expressão de rejeição e sofrimento, ele sinaliza o quanto encarna a própria condição humana como condição atropelada por interesses alheios à vida e solidariedade.

E a tais interesses e interesseiros que se refere a menção aos anciãos, principais sacerdotes e escribas que o rejeitam, levando-o à morte. Na predição de 9.31 não há referência direta a esses grupos, mas unicamente a homens; em 10.33 reaparecem os principais sacerdotes e escribas, mas sem a menção dos anciãos. É exatamente estes dois últimos grupos que também são mencionados como interessados na morte de Jesus após o conflito no átrio do templo (Mc 11.15-19: v. 18). Em Mc 8.31 a menção dos três grupos é, provavelmente, uma referência à composição do sinédrio, no qual cada um deles tinha a sua corres¬pondente representatividade. Mencionadas estão a aristocracia sacerdotal (sumos sacerdotes), a aristocracia leiga (os anciãos) e a aristocracia intelectual (escribas). Característico dos três é que, ao contrário do povo não diretamente referido nas três predições clássicas (Mc 8.31; 9.31 e 10.33), detinham todos um certo tipo de poder, seja o religioso, o econômico, o ideológico, o da segurança policial, ou outros. São exatamente os grupos poderosos que convergem na oposição a Jesus! Jon Sobrino conclui: As causas aduzidas para a perseguição são variadas (…) no fundo, não são outras causas senão as denúncias de Jesus contra o poder opressor, diretamente o poder religioso, em cujo nome se justificavam outros poderes (Sobrino, p. 294). Além disso, se a referência a esses três grupos traduz uma menção indireta ao sinédrio como suprema corte da justiça judaica, nossa atenção recai também sobre sumos sacerdotes, escribas e anciãos como integrantes e representantes do poder judiciário. O judiciário não conseguiu, na época, julgar com justiça e imparcialidade. Ele era composto por grupos por demais atrelados aos poderes constituídos, de maneira a possibilitar uma eventual isenção de responsabilidades.

Sintomática para os quatro evangelhos permanece a convergência das res¬ponsabilidades sobre os grupos dominantes e poderosos. Há, na prática, uma falta notória de menção de uma eventual co-responsabilidade da parte do povo, com uma só exceção, a saber, a menção em Mc 15.11 par. da multidão que se deixou incitar pelos principais sacerdotes em favor da soltura de Barrabás. Estudos recentes têm tornado plausível que também neste único caso não convém generalizar: a multidão a que se refere este texto mui provavelmente se restringiu ao povo residente em Jerusalém, para o qual as críticas de Jesus ao templo representavam um iminente perigo de desemprego e falta de sustento, haja vista representar o templo o centro irradiador de todo o turismo da cidade santa.

Essa notória omissão do povo na responsabilidade direta pelo interesse em eliminar Jesus é de suma importância para o cuidado com generalizações nas atribuições dos pecados sociais e políticos dentro da história. O povo tem seguramente um bom quinhão de pecados para confessar, e, graças a Deus, Jesus morreu em favor destes também. Mas em relação aos grandes pecados sociais e políticos da humanidade, ele costuma ser mais vítima — como Jesus — do que agente. E, se os evangelistas apresentam de forma tão destacada sumos sacerdotes, anciãos e escribas como os agentes da rejeição de Jesus, então cabe-nos também hoje identificar com cuidado os verdadeiros agentes dos morticínios em nossos países e sociedades, evitando generalizar certas culpas que, historicamente, devem ser particularizadas (Sobrino, p. 293). O povo já tem gente de sobra que o acuse de incompetente, malandro, marginal, perigoso e assassino. Não precisamos nós também ainda nos unir a esse coro com a piedosa justificativa de que, afinal, Paulo identificou a todos como pecadores e destituídos da graça de Deus (Rm 3.9,23). De qualquer forma, nem Jesus nem os evangelistas atribuíram ao povo as razões últimas da sua paixão e morte. Seus verdugos têm nomes que não merecem ser simplesmente misturados e embaralhados com quaisquer outros. É muito fácil baixar a lenha publicamente nos ladrões e assassinos que superlotam nossas cadeias. Embaraçoso é fazê-lo em relação aos poderosos, cujos advogados não hesitariam em mover um processo de calúnia contra quem se atrevesse a tal. Os evangelhos são diferentes. Ali ainda se dá nome aos assassinos poderosos… sem medo e sem embaraço.

A predição da paixão de Jesus também inclui uma predição de ressurreição: …e que, depois de três dias, ressuscitasse. Há vários testemunhos que atestam a crença de Jesus numa ressurreição dos mortos, como, p. ex., Lc 14.13s.; 23.39-43; Mc 12.18-27 e 14.25,28. Referências à própria ressurreição de Jesus são feitas em passagens como Mc 9.9s., 14.25,28 e Mt 27.63. Historicamente não há, pois, por que duvidar que Jesus tenha contado com sua ressurreição, uma vez consumada sua rejeição, condenação e morte. Sua esperança era, segundo Mc 8.31, de que essa ressurreição ocorresse depois de três dias. Como os semitas não possuem termos que designem vários ou alguns, é possível que essa expressão tenha sido um recurso para expressar um intervalo curto, mas indeterminado de tempo (Jeremias, p. 431 s.). Mateus e Lucas substituíram depois de três dias por no terceiro dia, procurando corresponder melhor aos falos da ressurreição, ocorrida no primeiro dia da semana judaica.

De qualquer forma, com as palavras …e que, depois de três dias, ressuscitasse Jesus articula uma esperança contra todas as evidências. Esperar por ressurreição significa contar com a vitória do Deus da vida sobre todos os poderes e poderosos que semeiam a morte. Jesus fê-lo num momento em que todas as evidências apontavam para o contrário. Contou com o Deus da vida, mesmo quando necessitava prever que haveriam de levantá-lo numa cruz. A história do comportamento dos discípulos na paixão mostra como é difícil crer nestes momentos, manter-se fiel a Deus e solidário com os irmãos, quando tudo ao redor parece querer confirmar a futilidade de tal atitude.

Segundo o início do v. 32, Jesus falava essa palavra abertamente, o que lambem pode significar com desprendimento. Por que este destaque à fala pública? Talvez devamos contar com a sensibilidade de Jesus para com o grau de capacidade de absorção dos discípulos. Em Mc 4.33s. há uma alusão à capacidade de entendimento dos ouvintes: no início, Jesus se dirigia aos discípulos por parábolas, ao que se seguiam suas explicações particulares. Agora, parece ter chegado o momento de dispensar parábolas. Os discípulos têm que estar maduros para entender a realidade, nua e crua como é. Existem momentos e situações na vida em que devemos fazer jogo aberto, por mais que doa ou soe estranho. E esses momentos são aqueles em que não se discute uma ideia ou uma posição, mas em que está em jogo a vida.

2) A reprovação de Jesus por Pedro (v. 32b)

A proclamação do sofrimento do Filho do homem desencadeia uma censura da parte de Pedro. Para Pedro o Messias não devia sofrer sob os inimigos, mas vencê-los, derrotá-los. Era assim que lhe haviam ensinado sobre o Messias e sobre os propósitos de Deus com ele. A censura é feita à parte, pois é embaraçoso censurar um mestre publicamente.

3) A reprovação de Pedro por Jesus (v. .1.1)

Jesus fala palavras duras a Pedro, encarando Iodos os discípulos. Isto está a sugerir que são válidas também para os demais. Contrapostos encontram-se um pensar humano e uma lógica divina. Cogitar as coisas dos seres humanos significa repudiar a necessidade de sofrimento, perseguição e morte para o Messias de Deus. A lógica humana quer felicidade sem dor, tristeza e perda. Essa é a lógica do diabo: dentro dela, a felicidade não se constrói com doação a outros, mas somente aproveitando-se da vida de outros em benefício próprio.

2.2. Ditos sobre o seguimento de Jesus (vv. 34-38)

À predição da paixão, morte e ressurreição de Jesus segue-se a predição da paixão e da possibilidade de perseguição e morte dos seus seguidores: O servo não é maior do que seu senhor, nem o enviado, maior do que aquele que o enviou (Jo 13.16).

1) Dito sobre o negar-se e tomar a sua cruz (v. 34)

Seguimento de Jesus requer a) auto-renúncia e b) assumir a própria cruz.

O que significa negar-se a si mesmo? Myers (p. 300) interpreta a expressão rigorosamente em sentido político: significaria a autonegação feita por cristãos diante de tribunais em meio a perseguições (cf. Mc 13.9-13; 2 Tm 2.lis.). Declarando publicamente sua adesão a Jesus como o Messias, eles automatica¬mente renunciavam a si próprios, estando sujeitos a ser de imediato presos e condenados. Negar-se a si mesmo significaria, segundo o contexto, estar disposto a perder a vida (v. 35!). Esta interpretação, embora válida, estreita por demais as nuanças de significado da expressão renunciar a si mesmo. As razões que podem impedir um verdadeiro discipulado de Cristo são várias: apego às riquezas e bens (Mc 10.21s.,28; 8.36s.!), apego à família e seus laços (Mt 10.38s.; Lc 9.60), prática de um domínio e poder opressores (Mc 10.41-45), defesa de uma sabedoria mundana (Mt 11.25s.; l Co 1.19-24; 2.1 ss.), etc. A renúncia de si mesmo não implica, pois, para todas as pessoas, abdicar sempre das mesmas coisas nas mesmas circunstâncias. Em terminologia paulina, significaria ' 'crucificar a carne, com suas paixões e concupiscências (Gl 5.24) ou, positivamente, deixar Cristo viver em nós (Gl 2.20). Para Paulo esse processo de renúncia atingiu, sobretudo, os privilégios e a confiança que tinha como judeu (Fp 3.4-6). A consequência foi que aquilo que anteriormente lhe representava lucro passou a representar perda e refugo, de modo que, para conseguir Cristo, dispôs-se a perder todas as coisas (Fp 3.8).

O sentido da expressão tomar a sua cruz é muito controvertido na pesquisa, porque não há fontes que atestem o seu uso anterior a Jesus. Na época, cruz implicava sempre condenação, sofrimento e morte cruel. Era, segundo Sêneca, um castigo reservado para escravos, grandes delinquentes, desertores e pessoas humildes, caso instigassem revoltas ou caíssem no banditismo. Representava sempre um grande descrédito social e político, já que pressupunha atentados contra a paz, a ordem, as autoridades constituídas e a organização social como um todo. Carregar a própria cruz parece ter significado assumir, a um só tempo e por causa da fidelidade a Jesus, todos os dissabores e as consequências que podia representar a luta contra uma ordem cogitada por pessoas (v. 33!), mas contrária à vontade de Deus. Essas consequências podiam implicar injúrias, perseguição, mentira e a própria morte (Mt 5.11 s.). Myers, p. 300:

A ameaça de punir com a morte é o ponto máximo do poder do Estado; o maio diante dessa ameaça conserva intacta a ordem dominante. Resistindo a esse maio e buscando a prática do reino, ainda que a custo da morte, o discípulo contribui para despedaçar o reinado da morte imposto pelos poderes na história.

2) O dito sobre o salvar ou perder a vida (v. 35; cf. Mt 10.39 e Lc 17.33)

Neste sentido deve também ser interpretado o v. 35, que fala de perder a vida para ganhá-la. Há momentos em que a verdade não pode ser negociada ou ajeitada. Nessas ocasiões, o seu testemunho, por ferir interesses poderosos, suscitará reações violentas que podem implicar assassinatos. Vidas assim perdidas representarão sempre vidas ganhas diante de Deus, vidas em que tenham prevalecido a fidelidade a Deus e o compromisso com a humanidade.

3) Os ditos sobre o valor da alma (vv. 36s.)

Os vv. 36-37 podem ser compreendidos como um dos possíveis impedi¬mentos do negar-se a si mesmo, ao qual Jesus conclama no v. 34. Passagens paralelas são textos como Mt 6.19-21, Lc 12.16-21 e Mc 10.17-22. A linguagem preponderantemente econômica destes versículos mostra que a economia, ou, nas palavras de Jesus, o desejo de acúmulo ilimitado (= ganhar o mundo inteiro), pode constituir-se em fator decisivo para impedir o discipulado. A riqueza é enganosa. Ela sugere um poder ilimitado para comprar, corromper e negociar praticamente tudo. No entanto, é impotente frente à saúde e à morte (SI 49): não há dinheiro que compre a vida; não há dinheiro que salve a alma, ou seja, que assegure a vida na eternidade.

4) Dito sobre o envergonhar-se do Filho do homem e suas consequências (v. 38; cf. também na versão da fonte Q, Lc 12.8s.; Mt 10.32s.)

Os discípulos e as discípulas são conclamados a dar o testemunho em meio a uma ' 'geração adúltera e pecadora''. O adultério neste caso é, provavelmente, de cunho religioso (cf. Os 2.4ss.; Ez 16.32ss.) e caracteriza uma geração afastada e infiel a Deus; por ser pecadora, pensa e age de maneira contrária à Sua vontade.

Em meio a esse tipo de geração há o perigo da vergonha em relação a Jesus e suas palavras. Uma geração adúltera e pecadora não oferece lugar para Jesus e suas palavras, justamente por tratar-se de uma presença e de palavras que con¬testam a validade e veracidade da ordem dada e protestam contra a mesma. O sistema vigente tem outras regras que as da solidariedade e outros valores que os da justiça. Pela ideologia é maquiado de tal forma que se apresenta como bom, próspero e fomentador do progresso e bem estar social (l Ts 5.3). Por ser amplamente aceito e introjetado nas consciências, sua contestação costuma ser prontamente ridicularizada, ou qualificada como idealista e ilusória, ou ainda contestada judicialmente e abafada pelo aparato policial-militar.

A vergonha que poderiam representar as palavras de Jesus dentro de uma geração adúltera e pecadora é que elas construíam sobre a solidariedade, o altruísmo, o serviço aos outros e a defesa de pessoas pobres e, tanto social como religiosamente, fracas. O mundo e o seu sistema, tanto na época de Jesus quanto na nossa, acham isto um absurdo, escândalo e loucura. No sistema do mundo a fraqueza é um mal que deve ser erradicado; no reino de Deus, ela é o fundamento da vida e da salvação. Dentro da ordem estabelecida, qualquer crucificado seria sempre uma vergonha social, pelo atentado à lei e ordem que representava. No âmbito do discipulado, contudo, a cruz representava o preço pago por uma vida de fidelidade a Deus e amor à humanidade (Fp 2.6ss.; Hb 5.7ss.). Essa era a razão pela qual importava não se envergonhar de Jesus e pela qual também, mais tarde, Paulo não se envergonharia do evangelho (Rm 1.16), muito menos de suas próprias prisões e algemas (2 Tm 1.8-16; 2.9-15).

No versículo 38 Jesus postula a correspondência entre o testemunho dado pelos discípulos em seu favor e o testemunho dele em favor dos e das discípulas: no dia do juízo Jesus se envergonhará daquelas pessoas que também se envergonharam dele e das suas palavras. O Filho do homem é o próprio Jesus, em estado de glória. Na postura diante dele e de sua pregação decide-se nossa eternidade. O juízo tem critérios; não é aleatório. Não depende só da graça de Deus; esta, sem a nossa fidelidade, não salva a alma. Deus não obriga ninguém a salvar a sua alma. Mas Ele oferece a fidelidade a Jesus como o caminho para tal.

3. Meditação e prédica

Para a prédica, é perfeitamente possível concentrar-se unicamente em Mc 8.31-33 ou Mc 8.34-38. No primeiro caso, a reflexão seria mais em torno da paixão de Jesus, e no segundo, mais em torno das implicações do discipulado para os crentes. Se a prédica quiser abordar ambas as partes, deverá ser seletiva quanto ao conteúdo.

3.1. Reflexões para uma prédica sobre Mc 8.31-33

O texto reproduz (a) uma convicção de Jesus em relação a sua morte, e (b) a reação de um dos discípulos a essa convicção. A prédica poderia concentrar-se nestes dois aspectos:

1) Consciência de Jesus em relação à sua morte, desdobrada em

a) seu sofrimento como necessidade imperiosa.

O sofrimento de Jesus era previsível, porque o mundo reage sempre com violência àqueles e àquelas que revelam o seu pecado e denunciam a qualidade maléfica de suas obras (Jo 3.19-21). Jesus tinha diante de si o exemplo de João Batista, mas também dos profetas do AT (Mt 23.30-32). A história recente e atua! está repleta de mártires semelhantes nas pessoas de mulheres e homens, às vezes conhecidos, mas na maioria dos casos, anônimos, que não se intimidam diante de ameaças e perigos.

b) seu sofrimento como resultado da rejeição de sumos sacerdotes, escribas e anciãos.

Jesus foi uma pessoa rejeitada nas altas rodas. Os três grupos compunham a suprema corte em Israel e, considerados isoladamente, eram as pessoas de maior influencia na religião (sumos sacerdotes), na economia (anciãos) e na teologia e jurisprudência (escribas). Os grupos de maior poder em Israel não conseguiam aceitar aquele que, aparentemente, não tinha poder algum. Jesus feria interesses dos poderosos.

2) Reação dos discípulos

c) Seu sofrimento como contrário à expectativa dos discípulos.

Pedro reprova Jesus. Dentro da lógica que Pedro aprendeu, um salvador que sofre é uma contradição: não ajuda nada'; só aumenta ainda mais o número daqueles que já têm o suficiente com que se preocupar. Muitas igrejas também não compreendem ou não querem compreender esta lógica. Elas não conseguem conceber poder divino senão através de quantificações: muitos adeptos, muitos milagres, muitos donativos, etc. A Bíblia, Jesus e os apóstolos também quantificam, às vezes (Mc 1.32-34; 6.44; 8.9; At 2.41). Mas não são escravos dos números e estatísticas. Isto já se evidencia no fato de pregarem a conversão (Mc 1.14s.; Rm 12. l s.), e não simplesmente aquilo que o público mais quer e gosta de ouvir. Toda Igreja que se propuser a dar testemunho da verdade (Jo 18.37) vai expor-se a críticas e perseguições, participando das condições de um messias sofredor e vulnerável.

3.2. Reflexões para uma prédica sobre Mc 8.34-38

Sugerimos que a prédica reluta sobre duas questões:

1. Ser discípulo/a significa negar-se a si mesmo, e
2. Ser discípulo/a significa perder a vida para ganhá-la.

1) A prédica poderia começar pelo segundo ponto e procurar esclarecer como, na vida, muitas vezes uma aparente perda representa um ganho. Exemplos poderiam ser extraídos de áreas como a saúde, o esporte, a ecologia. Boa saúde pressupõe uma alimentação sadia. Decidir-se neste sentido representa, num primeiro momento, um sentimento de perda muito forte, pois teremos que afastar-nos de hábitos alimentares muito arraigados e que dão bastante prazer momentâneo, embora a médio e longo prazo nos prejudiquem (p. ex.: ingestão exagerada de carne bovina; aplicação de muito sal nos alimentos; ingestão de muitos doces). De forma semelhante, a prática de esportes pode ser cansativa e estafante nas primeiras vezes, mas, transformando-se num hábito, tornar-se-á um exercício prazeroso e muito saudável. Finalmente, na área da ecologia pode ser citado o alto custo de antipoluentes ou alimentos sem aplicação de agrotóxicos. Também neste caso, o que representa inicialmente uma perda para a vida em verdade vai assegurá-la e salvá-la a médio prazo.

2) Apontar para o exemplo de Paulo, citado em Fp 3. Sua experiência foi bem semelhante: as coisas que antes considerou como ganho, depois de conhecer a Cristo, passou a considerar como perda. Paulo compreendeu que ao aceitar Jesus como o Senhor da vida significa deixar muitas coisas para trás.

3) Negar-se a si mesmo significa exatamente isso: deixar coisas de lado mi para trás que, durante muito tempo, tinham um grande significado paia nos Inicialmente poderiam ser citados exemplos bíblicos conhecidos. Exemplos positivos: Simão e André, Tiago e João conseguiram deixar para trás a pesca e as redes (Mc 1.16ss.); Paulo conseguiu desfazer-se de todo o seu orgulho judaico como zeloso pela lei (Fp 3). Exemplos negativos: os fariseus não conseguiam abandonar sua velha discriminação contra os pecadores (Mc 2.15-17); um rico não conseguiu doar seu dinheiro aos pobres e seguir Jesus (Mc 10.17-21). A tais exemplos poderiam ser somados outros bem práticos, da vida atual das comunidades e dos cristãos.

O objetivo seria de encorajar a comunidade à prática da renúncia, do negar-se a si mesmo, para que, dessa forma, possa tornar-se mais clara e decididamente discípula de Jesus. Negar-se a si mesmo tem por objetivo arrumai a vida para esta poder ser receptiva ao que Jesus quer e espera.

Bibliografia

COMBLIN, J. Jesus Cristo e sua missão. São Paulo : Paulinas, 1983. v. I.
JEREMIAS, J. Teologia do Novo Testamento : 1a parte: A pregação de Jesus. São Paulo : Paulinas, 1977.
MYERS, C. O Evangelho de São Marcos. São Paulo : Paulinas, 1992.
SCHNIEWIND, J. O Evangelho segundo Marcos. São Bento do Sul : União Cristã, 1989.
SOBRINO, J. Jesus, o libertador: I — A história de Jesus de Nazaré. São Paulo: Vozes, 1994.

Proclamar Libertação 25
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia