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Prédica: 1 Pedro 1. (1-17) 18-21
Leituras: Lucas 9.57-62 ou Efésíos 5.1-8
Autor: Rudi Kich
Data Litúrgica: 3º Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 06/03/1988
Proclamar Libertação – Volume: XIII
Tema: Quaresma

I – Introdução

Segundo 1 Pe 1.1 a epístola destina-se aos forasteiros da diáspora, ou seja aos cristãos da Ásia Menor. Conforme 1.14+21; 2.10; 4.3s os leitores são gentílico-cristãos.

Mesmo que o tema perseguição perpasse toda a epístola, ele é apenas o motivo da mesma e o tema central da carta é a responsabilidade do cristão na sociedade (L. Goppelt, p. 493).

Exegetas como Windisch, Schneider e outros concluíram que os versículos 1.3-4.11 seriam uma alocução de batismo enviada às comunidades em forma de carta acrescida de um prefácio e final. Preisker supõe que 1.3-4.11 seja um culto de batismo seguido do culto final de toda a comunidade (4.12-5.11). Essa liturgia ou formulário de culto, segundo Preisker, teria sido enviada como epístola às comunidades. O ato do batismo, não mencionado por motivos da disciplina arcana, realizava-se entre os versículos 1.21 e 1.22.

Há, no entanto, motivos muito fortes para não aceitar a hipótese acima. Mais provável é que 1 Pe foi redigida como carta do princípio ao fim, sendo que o autor fez uso de material fixo e conhecido, trabalhando-o para a realidade das comunidades.

Conforme comentários mais recentes, 1 Pe é uma epístola de autor desconhecido escrita entre os anos 90 – 95 d. C.

II – O texto

O texto de 1 Pe 1.(13-17) 18-21 é o início de uma série de exortações ou parêneses que são de difícil subdivisão (1.13-2.10). Os comentários oferecem divisões bem variadas. Tratando-se de parêneses fundamentadas com partes cristológicas (confissão) (1.18ss.) e por textos do AT (2.6ss.), certamente os imperativos em número de seis são o marco mais seguro para a subdivisão de todo o trecho (G. Barth, p. 33). Seria, portanto, possível subdividir o texto proposto em três ou até quatro partes se quiséssemos separar a fundamentação cristológica das exortações. Os textos subdivididos seriam então:

a) construir a vida sobre a graça (1.13);

b) separar-se do mundo (1.14ss.);

c) proceder em temor ante Deus (1.17ss.)

d) parte cristológica (1.18-21SS.).

No entanto, como as exortações dos versículos 1.13-17 são fundamentadas pelos versículos 1.18-21, recomenda-se usar como texto de pregação todo o trecho, ou seja, 1.13-21, mesmo que para o domingo Oculi a parte cristológica (1.18-21) seria texto suficiente para a pregação.


Ill – Exegese

L Goppelt sugere como temática de 1 Pe: A existência do cristão na realidade não-cristã e o estar preparado para superar perseguição e repressão (p. 41). Ainda segundo Goppelt (p. 41), as exortações em 1.13-17 são motivadas pela meta da existência cristã e nos versículos 1.18-21 a partir de sua origem.

V. 13: Por isso se refere claramente ao que foi dito anteriormente (1.3-12). Com o verbo cingir o autor faz alusão a uma prática conhecida dos leitores (cf. Lucas 12.35 e Ef 6.14) de arregaçar a vestimenta comprida para estar mais desimpedido para a caminhada. Aqui cingir-se é usado em sentido figurado como mostra o acréscimo vosso entendimento. O cingir o entendimento se caracteriza pelo ser sóbrio. No NT encontramos este termo em sentido figurado e a sobriedade consiste no reconhecimento da realidade dada com a revelação de Deus. Trata-se, pois, de levar a sério a realidade de Deus. Notável é que o NT reconhece como única sobriedade o ato de contar com a vinda de Cristo, ou seja com a realidade de Deus. Assim em 1 Pe 1.13 somente a espera na graça é sóbria. O contrário da sobriedade poderia referir-se ao se deixar impressionar e levar pela realidade e poder do mundo. Por isso, característica fundamental da existência cristã é cons-truir a vida sobre a graça revelada por Deus em Jesus Cristo, a nova realidade.

V. 14: O segundo imperativo exorta os leitores a separarem-se da vida viciosa dos gentios. A expressão filhos da obediência designa a determinação por algo; aqui, a determinação pela obediência. Determinados pela obediência, o« leitores são exortados a não se amoldarem aos vícios pagãos (veja 4.3 o 2.11). O versículo faz alusão ao tempo anterior à conversão que é caracterizado como tempo de ignorância.

Vv. 15-16: Como no v. 14 com a exortação negativa, também na exortação positiva nos vv. 15-16 visa-se o mesmo: a separação da vida viciosa dos que não conhecem a Deus e sua realidade. O termo kadosch no hebraico em sua raiz Kd significa estar separado do profano.

A exigência da santidade é fundamentada pela santidade de Deus (L v 19.2). Deus quer que sua essência se manifeste naquele que ele escolheu para sua propriedade (Schneider, p. 51).

V. 17: O terceiro imperativo exorta a portar-se com temor durante o tempo da peregrinação. Essa admoestação é duplamente motivada: por um lado pela precedente referência ao juiz incorruptível e por outro lado pelo que segue nos vv. 18ss., a grandeza da salvação. Nesse versículo são usadas duas expressões veterotestamentárias: Pai e Juiz. Pai tem a ver com proximidade e com confiança. Parece que o termo juiz limita esse proximidade e confiança. Mas não é esse o caso. Do mesmo modo como o termo juiz, também o termo temor coloca a confiança na luz e relação correia. O que o autor quer expressar é que o cristão não pode dispor da graça. Também Paulo liga o temor à fé (cf. Fp 2.12). Temor é parte constitutiva da confiança. A fé ficaria sem sentido se o crente pensasse estar seguro ante o juízo de Deus (Bultmann, p. 321). O juízo de Deus começa justamente com o crente.

Vv. 18-19: Nos versículos seguintes temos a parte cristológica (confissão). A exortação ao temor, como dissemos acima, aqui é motivada pela grandeza da salvação. O autor usa a figura conhecida do resgate sacral do escravo (veja Mc 10.45; 1 Co 6.20; 7.23). Aqui em 1 Pe 1.18-19 essa figura é especialmente notável, pois, é citado também o preço do resgate.

Nas diversas formas da lei, pelas quais a libertação de um escravo podia ser efetuada, na Antiguidade, encontramos o rito cerimonial de uma compra fictícia do escravo por parte de uma divindade: o ex-senhor vem com o escravo ao templo, vende-o ali a Deus e recebe da caixa do templo o preço da venda (quantia que na realidade o escravo ali depositara, fruto de suas economias). Com isso o escravo passa a ser propriedade de Deus (Barth, p. 41).

O autor de 1 Pe usa em parte essa figura, pois todo exemplo e figura geralmente não correspondem ao que se intenciona. Ele abandona a figura no momento de falar do preço de como o resgate é feito. O resgate pelo sangue de Cristo não é fictício, mas real. A morte de Jesus na cruz não se orientou pelos termos do resgate de escravos ou do culto de sacrifício; pelo contrário, a ideia do sacrifício ou do resgate é que foi usada, posteriormente, como interpretação para a classificação e explanação do evento salvífico (Barth, p. 42).

A alusão ao cordeiro sem defeito e sem mácula mostra a proximidade da morte de Jesus na cruz com a ideia do sacrifício. O que aqui se quer afirmar ê que Jesus, o filho de Deus, sem mácula e sem pecado, realizou o único sacrifício que realmente vale, liberta e salva.

V. 20: Os versículos 1.18-19 seriam perfeitamente compreensíveis sem o v. 1.20.0 que se acrescenta no v. 20 é uma declaração amplamente conhecida no NT (veja 2 Tm 1.9ss.; Tt 1.2ss; Cl 1.26; Ef. 3.5+9; Rm 16.25).

Nun – presente momento: a revelação de Deus no presente momento qualifica o tempo presente, pois nessa revelação, foi trazido à luz o que antes era oculto.

V. 21: Com a expressão du humas – por causa de vós – o autor faz a transição da fórmula cristológica para os leitores da carta. Os cristãos chegaram à fé em Deus por intermédio de Cristo. Aqui não se faz referência ao Cristo exaltado, mas à ação salvífica de Jesus na cruz e ressurreição. Fé e esperança em Deus colocam o cristão na relação correia com Deus. Como dissemos acima, bastaria o v. 1.19 para esclarecer e fundamentar as exortações em 1.13-17. No entanto, todos os ditos cristológicos (v. 18-20) são citados, pois pertencem ao mesmo credo cristológico.

IV – Meditação

Pela revelação de Deus, o ato salvífico em Jesus Cristo, o cristão é chamado a construir sua vida a partir da realidade de Deus. A partir dessa atitude e postura tudo que escraviza vai ficando para Irás. Poderíamos falar aqui em conversão, no entanto, não no sentido de um rompimento único, mas diário e ininterrupto. Lutero já afirmava que tornar-se cristão é um ato contínuo e nunca único. Único é o ato salvífico de Deus em Jesus Cristo em favor da humanidade e de toda a criação.

Por causa dessa nova postura a partir da realidade de Deus, o cristão se torna um estranho, um forasteiro para a sociedade em que vive. Ele se torna um estranho por que age e vive diferente do que a sociedade não-cristã espera dele. Por não se moldar segundo as regras da sociedade não-cristã pode e certamente significa que o cristão será olhado com olhos avessos e ser perseguido das mais diferentes formas.

Seria contra a intenção do autor de 1 Pe se o cristão, por causa do seu ser e agir diferente, se afastasse da sociedade e do que chamamos de mundo. Da mesma forma o autor de 1 Pe exorta os leitores e a nós de não nos considerarmos perfeitos e, por isso, seguros diante do juízo de Deus. A sociedade não-cristã deverá compreender que o juízo de Deus vale para sua vida justamente por que os cristãos não se consideram perfeitos e testemunharam que o juízo de Deus vale e começa com eles mesmos.

Todas as exortações de 1 Pe chamam os cristãos a romperem com o passado de vícios e a se engajarem responsavelmente na sociedade em que vivem.

Os essenos de Qumran se afastaram da sociedade injusta, enclausuraram-se e prepararam uma guerra santa contra os injustos. Essa não é a postura e tarefa dos cristãos. Seu lugar é na sociedade na qual testemunham com seu viver, agir e falar que Deus quer uma vida salva e liberta para todos.
Se em Paulo (Rm, Cl, Ef) as regras de conduta cristã na sociedade (Haustafeln) no fundo esperavam apenas uma mudança da situação – a carta a Filemom é exemplar para isso -, já em 1 Pe tudo caminha para o conflito.

E isso não sem motivo, pois 1 Pe fala para dentro de uma situação não- cristã.

Se nos atermos ao nosso texto, qual seria a questão em relação à qual os cristãos devem assumir uma postura responsável e critica? Se partirmos dos vv. 1.18-19, a fundamentação cristológica da parênese, não há dúvida de que o assunto central é o valor da vida humana. O parâmetro único para medir o valor da vida humana é o sacrifício de Jesus Cristo na cruz, seu sangue derramado em favor de toda a criação de Deus.

V – Pistas para a prédica

Nenhuma pregação poderá abranger toda a gama de mensagens do texto. Por isso sugiro tentar compreender o texto a partir dos vv. 1.18-19. Esses versículos também são o cerne da explicação de Lutero no Catecismo Menor: Creio que Jesus Cristo (…) me remiu a mim, homem perdido e condenado (…) com seu santo e precioso sangue e sua inocente e amarga paixão e morte, para que eu lhe pertença. Aqui não é apenas mencionado o alto valor do resgate mas também o alto valor que a humanidade tem para com Deus.

Em favor de vós Deus deu seu único Filho. Tão valioso é o homem para Deus.

No início da prédica o pregador poderia questionar a comunidade se ela está consciente do grande valor do sangue de Jesus Cristo derramado na cruz. Será que ele não perdeu em valor porque nós nos acostumamos à fala do santo e precioso sangue de Cristo?

No envio de Jesus ao mundo podemos conhecer duas questões fundamentais de nossa fé: por um lado conhecer quem é Deus. O Deus santo que julga sem acepção de pessoas e que amou o mundo a ponto de dar seu único Filho. Por outro lado conhecer quanto vale o homem para Deus.

Sabendo, diz no v. 1.18. A fé cristã conhece o imensurável valor da vida humana. Esse conhecimento tem seu fundamento na obra salvífica da cruz.

Nenhuma pergunta é tão atual e discutida (direitos humanos) como a pergunta pelo valor da vida humana. Se por um lado o homem tem um complexo de Deus, pensando ser deus ou brincando de deus, por outro lado milhões de pessoas são privadas do seu ser humano pela escravidão, fome, marginalização, prisão e tortura.

A pergunta pelo valor da vida humana e de toda a criação nos deve questionar e nos fazer sofrer profundamente. Na discussão dessa pergunta os cristãos devem participar com seu reconhecimento de que o valor da vida humana deve ser medido a partir da cruz de Jesus Cristo.

1 Pe é exemplar em mostrar que a mensagem cristã não é formulações dogmáticas abstratas, mas que está sempre direcionada de forma surpreendente para a vida do dia-a-dia do cristão e da sociedade em que vive.

VI – Subsídios litúrgicos

1. Confissão de pecados: Senhor, enviaste teu Filho Jesus Cristo ao mundo revelando uma nova realidade para a humanidade.

Perdoa-nos por não levarmos a sério essa realidade. O sangue de Cristo derramado na cruz perdeu em valor entre nós, pois nos acostumamos a ouvir, falar dele em todos os cultos.

Perdoa nosso fraco testemunho da morte e ressurreição de Jesus Cristo, pois somos nós que devemos levar a mensagem da salvação ao mundo. Fortalece nossa fé para que coloquemos nossa esperança somente em tua graça. Tem piedade de nós, Senhor.

2. Oração de coleta: Deus, nosso Pai, chamaste tua cristandade a ser testemunha no mundo. Muitas vezes não correspondemos a esse teu chamado. Teu grande amor em Jesus Cristo nos deixa frios. Perdoa-nos por sermos tão indiferentes. Pedimos-te, faze nascer em tua Igreja, pelo poder do Espírito Santo, o ânimo e a alegria de testemunhar a tua verdade, de viver a tua graça e teu amor. Por Jesus Cristo, nosso Senhor. Amém.

3. Leituras bíblicas: Lc 9.57-62 ou Ef 5.1-8

4. Assuntos para oração final: Interceder pela comunidade por causa de sua indiferença diante da nova realidade de Deus revelada ao mundo, por cau¬sa de seu fraco testemunho, por amoldar-se às regras da sociedade e não à mensagem da cruz e ressurreição.

Interceder para que a mensagem da salvação seja eficaz na vida da cristandade.

Interceder pelos que se dão por satisfeitos em conhecerem o plano de Deus e não agem responsavelmente e de forma crítica no mundo, para que todos possam conhecer a revelação de Deus; por aqueles que julgam que o envolvimento e engajamento nas questões cruciais da humanidade não têm nada a ver com sua fé.

Interceder pelos que são privados de uma vida digna; pelos oprimidos, marginalizados, escravizados, sofrendo toda sorte de necessidades.

Agradecer pelo fato de Deus nos revelar seu amor, seu juízo e o valor que a vida da sua criação tem para ele; pelo fato de podermos contribuir em muito na discussão e solução dos problemas cruciais da humanidade; peb fato de Deus nos chamar como testemunhas de sua boa-nova para todos.


VII – Bibliografia

– BARTH, G. A primeira epístola de Pedro. São Leopoldo, 1967.
– BULT-MANN, R. Theotogie des Neuen Testaments. 3. ed. Tübingen, 1965.
– GOPPELT, L. Theologie des Neuen Testaments. Göttingen, 1976. v. 1 e 2.
– VOIGT, G. Me¬ditação sobre 1 Pedro 1. (13-17) 18-21. In: —————. Die himmlische Berufung. Göttingen, 1981.