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Prédica: Jeremias 7.21-26
Leituras: João 6.3-35 e II Pedro 1.19-21
Autor: Enio Müller
Data Litúrgica: 2º Domingo de Advento
Data da Pregação: 12/12/2004
Proclamar Libertação – Volume: XXX
Tema: Advento

1. – As leituras

O texto de Jeremias interpela o povo acerca da palavra de Deus. Duas vezes faz referência à saída do Egito como o início da história de Deus com esse povo (v. 22, 25). O contencioso é sobre o conteúdo da palavra de Deus: trata-se da lei ritual (v. 21-22) ou da instrução ética (v. 23)? Para Jeremias está claro que se trata da instrução ética, justamente ali menosprezada em função das observâncias rituais. A palavra de Deus é a palavra profética, que tem sido enviada constantemente desde a saída do Egito até o tempo de Jeremias (v. 24). Mas essa palavra o povo não ouviu. Há uma ironia no ar: por querer observar a palavra de Deus (entendida como a instrução ritual), o povo deixa de ouvir a palavra de Deus, a instrução ética pregada pelos profetas.

Das leituras que acompanham, a leitura apostólica interpreta a “palavra profética”, “candeia que brilha nas trevas”, cuja observância levará ao nascente (v. 19). Isto porque tal palavra não tem origem humana, e sim divina (v. 21); quem a proclamou o fez “movido pelo Espírito Santo”.

O evangelho do dia não tem, à primeira vista, relação direta com o tema. Trata-se do relato joanino da multiplicação dos pães (Jo 6.3-15), seguido do episódio do caminhar sobre a água (v. 16-21) e do dia seguinte, quando Jesus discute com a multidão acerca da multiplicação dos pães (v. 22-40). Para Jesus, há dois tipos de comida: uma física, natural, e uma espiritual, eterna (v. 27). Sem menosprezar a primeira (ele próprio a repartiu quando tiveram fome), a gente deveria buscar mesmo a segunda. Na seqüência, os interlocutores mudam o foco e perguntam por um sinal que autentique a demanda de Jesus pela fé nele próprio (v. 29-30). Afinal, os pais no passado tinham recebido o maná, o pão do céu, como sinal para a demanda da fé em Moisés. O que segue é revestido de ironia. O sinal que acontecera, referente à comida física (a multiplicação dos pães), pelo jeito não fora percebido como tal; resta agora somente o sinal espiritual, a comida espiritual que Deus manda do céu: o próprio Jesus (v. 35).

O Salmo previsto, que consiste de dois versículos do Sl 119, mostra o povo à espera do cumprimento da promessa divina (v. 123) e a oração pela firmeza na palavra, entendida como instrução ética (v. 133).

2. – Preparando a prédica

A prédica poderia tematizar o seguinte. Primeiro, a certeza de uma palavra de Deus em nossa história. Esta palavra foi dada aos israelitas desde a saída do Egito e os acompanhou por toda a história, sendo constantemente enviada por intermédio dos profetas. O Antigo Testamento encerra quando a palavra profética cessa. O último dos profetas bíblicos, Malaquias, termina anunciando para o futuro o sol nascente, o sol da justiça que trará salvação (Ml 4.2).

Nesse contexto, em que consiste a palavra de Deus? Esta é a discussão de Jeremias. O povo, com apoio da religião organizada em torno dos sacerdotes, inclinava-se a ver o conteúdo da palavra de Deus nas prescrições rituais, nas ofertas e sacrifícios, no culto do templo. Jeremias, que tem palavras duras acerca da religião do templo (cf. o início do capítulo 7), contesta esse entendimento e insiste em que a verdadeira palavra de Deus não tem a ver com rituais (v. 22), mas com o discipulado do “caminho” (v. 23). A palavra de Deus é instrução para a vida, dando sabedoria ética e prática. Dando ouvidos a essa palavra, as coisas irão bem para o povo. Mas é justamente isso que não está acontecendo.

Como interpretar isso e que ênfase dar na prédica? Poderíamos adotar uma perspectiva dual, bipolar, e dizer: O povo é mau, não quer saber de vida moral, por isso não obedece à palavra de Deus. Receio que muitos/as de nós vão por esse caminho na pregação sobre esse texto. A alternativa vem do próprio texto: o povo se preocupa com a palavra de Deus, sim; mas a interpreta mal. Entende que o seu propósito é o ordenamento das práticas cultuais. Estas, então, se seguidas à risca, significam o cumprimento dessa palavra.

A preocupação com a religião pode ser um empecilho para a vida na palavra de Deus: uma vez por desviar o olhar do central para o periférico e mantê-lo lá por bastante tempo, e outra vez porque esse periférico, a religião cultual, tem um aspecto bem mais impressionante do que a simples e humilde caminhada cotidiana à luz da palavra profética.

Assim interpretado, a verdadeira questão nos textos de leitura para o terceiro domingo do Advento de 2004 é: o que é central e o que é periférico na palavra de Deus e na vivência da mesma? Jeremias insiste em que, desde o começo, não eram prescrições cultuais a verdadeira palavra de Deus, e sim a palavra profética, luz que brilha na escuridão e que mostra o caminho para uma vida de sabedoria em Deus. A palavra de Deus cumpre-se não tanto naquilo que aparece, que impressiona, mas que pertence ao âmbito físico, natural, mas naquela integridade pessoal que ela realiza e que é seu grande propósito.

Visto assim, a leitura do evangelho adquire surpreendente relevância para a interpretação do texto profético, já apoiado pelo texto apostólico, como observamos. O povo foi impactado pela multiplicação dos pães e viu nisso a evidência de que Jesus poderia ser o profeta esperado, a quem proclamariam rei e que restabeleceria o bem-estar físico do seu povo (Jo 6.14-15). Jesus, porém, recusa o papel que lhe é oferecido. Isto seria fazer do periférico o central, e ele sabe bem que isso pode ser uma das tentações demoníacas (segundo os relatos sinóticos da tentação de Jesus, Mt 4.1-11 e Lc 4.1-13).

O que Jesus pede é que se creia nele, o enviado de Deus (Jo 6.29). A reação do povo é digna de nota. Parece que se faz uma separação tão grande entre o material e o espiritual, que agora, quando se discute o “espiritual”, eles não sabem de sinal algum que Jesus tenha feito. Inclusive podem se referir ao sinal “espiritual” do maná, do pão do céu, que os antepassados, no tempo de Moisés, puderam comer e que por isso mesmo criam em Moisés. Mas Jesus não fez coisa desse tipo! Isso, então, parece ser o argumento para não crerem nele, como mostra a seqüência do capítulo.

Confirma-se, assim, na vinda de Jesus, a palavra do profeta Jeremias. O povo, fixado naquilo que na religião é periférico, menospreza a instrução divina que dá sabedoria para o cotidiano, para o “caminho” (cf. o Sl 119.133), que faz nascer o sol da justiça (Ml 4.2), a estrela da alva (2 Pe 1.19) nos corações, trazendo a salvação prometida.

3. – O delineamento da prédica

Como pregar sobre esses textos no Advento? Penso que poderíamos fazê-lo a partir do seguinte. Primeiro: considerar a palavra profética dita no passado ao povo de Deus do Antigo Testamento, vinda concretamente ao mundo em Jesus e anunciada/vivenciada como promessa de salvação no povo de Deus do Novo Testamento. Refletir sobre o que é central nessa palavra, chamando-nos a todos/as de volta para isso que é central, pois constantemente estamos ameaçados de trazer o periférico para o centro, perdendo de vista esse elemento central. Segundo: anunciar o advento dessa palavra sucessivamente entre nós. Jesus, o Deus que se fez carne e habitou entre nós, continua entre nós por sua palavra e pelo pão eucarístico, que nos é repartido. Queremos, neste tempo de Advento, que as promessas contidas nessa palavra e nesse pão se realizem em nós e em nosso mundo.

Uma última parte da pregação poderia ser o presente sob essa promessa. Apropriamo-nos dela por fé e nos colocamos a caminho com Jesus, no “caminho” do discipulado, rogando a ele que sua palavra nos transforme em sua sabedoria. Ao mesmo tempo, especialmente num contexto como o nosso, em que tantas pessoas passam fome literalmente, lembramo-nos de que a recepção daquilo que é central no cristianismo e na palavra de Deus traz junto a demanda pela atenção ao que aqui, nesses textos, é considerado periférico. Como Jesus multiplicou os pães e alimentou as multidões, também nós hoje devemos nos empenhar para que, no horizonte das nossas possibilidades (talvez não miraculosas), as multidões tenham o que comer. Pois no Advento proclamamos a vinda do reino de Deus, que, na sua integralidade, restabelece o ser humano como um todo.

4. – Recursos litúrgicos

Creio que o próprio ambiente do templo e a seqüência litúrgica oferecem recursos para uma visualização do tema das leituras. As velas do Advento podem ser referidas em algum momento como que simbolizando essa palavra profética, que brilha e mostra o caminho. O fato de irmos acendendo uma a mais a cada domingo representa a nossa esperança de que a salvação esteja sempre mais perto e nos convoca para uma espiritualidade de vivência da expectativa.

O pão partido na Ceia remete direto ao Jesus da leitura do evangelho. Poderíamos nos referir à Ceia como representando já aqui e agora essa integralidade prometida no evangelho. Quando insistimos em que pão e vinho são o corpo e sangue de Cristo, insistimos em que o nosso ser como um todo é alimentado por Deus. A aliança à qual o cálice se refere poderia ser assumida como compromisso de buscar essa integralidade para toda a criação, mensagem central do Advento.

Proclamar Libertação 30
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia