l — Alguns exemplos
Os artistas eram seis. . . Seis senhoras sentadas numa igreja com bíblias no colo. Elas tinham lido a história da grande pescaria em Lucas 5. O pastor distribuiu papel e canetas.
— Agora, desenhem aquela parte da história que chamou mais a sua atenção.
Dona Delia reclama:
— Não sei desenhar, pastor..
— Sabe, sim, só esqueceu. Ponha a caneta no papel e solte a imaginação. Aqui não é aula de arte, não fique constrangida.
Os artistas eram oito. . . Oito estudantes de teologia participando de um grupo de expressão corporal. Eles tinham lido Salmo l e estavam trabalhando para encarná-lo. Houve uma surpresa! Na hora de discutir o Salmo, a divisão em dois grupos foi tranquila. Um grupo seria as pessoas cujo prazer está na lei de Deus, e o outro grupo seria os pecadores. Parecia fácil. Mas quando os corpos tentaram expressar esta realidade, quando um grupo estava reto, sorridente, e o outro grupo estava deitado, esmagado no chão, houve protestos.
— Não gostamos deste fim, separados e tristes. É cruel.
Quando os corpos participaram na interpretação, eles sentiram a seriedade da condenação. Eles começaram uma procura pelos sinais da misericórdia de Deus nos Salmos.
Os artistas eram cinco. . . Quatro jovens e um palhaço. Perante quinhentos jovens eles começaram a dramatizar as palavras do Isaías 53: Porém ele estava sofrendo por causa dos nossos pecados, estava sendo castigado por causa das nossas maldades. Nós somos curados pelo castigo que ele sofreu, somos sarados pelos ferimentos que ele recebeu. Não houve explicações, não houve palavras. Mas a Palavra estava sendo proclamada. No silêncio houve sorrisos e lágrimas, e muitos entenderam e sentiram, pela primeira vez, o poder do sofrimento redentor.
II – Por que Bíblia é arte?
O convite que recebemos dos coordenadores do PL dizia o seguinte: Estamos convidando vocês para escrever um relato sobre Bíblia e arte, alguma experiência do uso da Bíblia com artistas.
A primeira reação: O que eu e minha esposa temos feito nesta área são coisas pequenas, esporádicas, e não muito dramáticas. Há outros que também fazem estas atividades e até melhor do que nós.
A segunda reação: No entanto, o convite estava aí. Talvez eu pudesse aproveitá-lo para esclarecer a mim mesmo e aos leitores do PL por que usamos arte com a Bíblia e qual é o lugar da arte numa proclamação libertadora da palavra de Deus.
Então, aceitando o convite e supondo que há leitores interessados no assunto começo com cinco afirmações: (1) Arte é coisa séria. (2) Arte é para todos. (3) A Bíblia exige arte. (4) A encarnação nos obriga à arte. (5) O processo libertador precisa de arte.
Afirmação 1: Arte é coisa séria
— Amigas, terminamos a leitura. Agora, deixem as bíblias na mesa, levantem-se e vamos expressar com nossos corpos o movimento deste texto!
Uma senhora mais ousada do que as demais, exclama:
— Pastor, tu estás brincando!
— Não, eu não estou brincando. . . E sim, eu estou brincando.
Não, eu não estou brincando. Eu não faço isso levianamente. Eu não faço isso só para ser diferente ou porque eu não tive como preencher o tempo. Eu pensei, eu planejei. Eu estou tentando ser fiel a certos princípios bíblicos que eu considero fundamentais. Eu não pretendo, de forma alguma, desprezar as sagradas escrituras.
Sim, eu estou brincando. Eu estou abrindo um espaço para surpresas. Vamos estar prontos para aprender, rir e chorar. Eu quero que vocês, como crianças, esqueçam de si mesmos na brincadeira. Quem pode prever os resultados, a aprendizagem, a revelação? Eu estou brincando, mas é brincadeira séria.
Afirmação 2: Arte é para todos
Vinte jovens do ensino confirmatório recebem, cada um, um tijolo de argila junto com estas instruções:
— Faze uma figura ou um símbolo que tiver na mente a partir da leitura bíblica de hoje.
É triste ver a reação da maioria. Alguns têm medo, outros ficam perplexos. Argila, tão mole e moldável.. . Ela encanta criancinhas, mas deixa perplexos e preocupados muitos jovens e adultos. Alguns ficam ansiosos, pois não há resposta certa para esta tarefa. Treinados num sistema onde a meta principal é satisfazer o professor ou a professora, eles estão desnorteados pela liberdade oferecida. Outros têm medo de começar, pois aprenderam cedo na vida que trabalhos artísticos são para os poucos, para os artistas. Qualquer obra deles vai ser feia.
Mas o pastor insiste. E, aos poucos, todos começam o processo de tornar palpável uma ideia, uma imagem da mente. No final, cada obra é examinada e valorizada. Cada escultura, mesmo a mais simples e óbvia, é vista como expressão, talvez até inconscientemente, de algo mais profundo.
Arte, no sentido em que nós usamos a palavra, é a produção de algo que tem um significado além do ordinário. A escultura do jovem é mais do que uma forma com tais e tais dimensões. Se o jovem entrou no espírito da brincadeira, a escultura revela algo sobre o que está dentro do jovem, algo sobre como a Palavra atingiu o jovem. A obra revela algo que estava escondido.
Arte, no sentido em que nós usamos a palavra, é para todos. O importante não é o resultado final em si — uma escultura, um desenho, uma dança, que vai ser avaliada segundo as normas estabelecidas pelo mundo artístico. O importante em nosso uso da arte na igreja é o processo artístico, o processo de usar o cotidiano, a coisa comum, para expressar o misterioso, o incomum, o escondido. Nós entendemos este processo artístico como parte do processo de encarnação iniciado e estimulado por Deus.
Insistimos em que estas atividades são para todos, no mesmo sentido em que os estudos bíblicos e as proclamações normais são para todos. Todos que têm voz podem expressar-se verbalmente. Porém sabemos que há uns que têm mais facilidade do que outros na expressão verbal. Todos que têm corpo podem expressar-se corporalmente. Uns se expressam com mais facilidade do que outros, mas todos podem fazê-lo dentro das suas capacidades.
Falar criativamente, usar palavras para expressar os mistérios da fé é uma arte. Mas a igreja tem enfatizado tanto a arte de verbalização que as demais artes parecem estranhos no ninho, coisas exóticas. Mas quando nós somente usamos a arte da verbalização, nós limitamos a nossa proclamação, impedimos o entendimento da Palavra, e estimulamos o conceito de que a fé cristã existe principalmente na mente, nas ideias e palavras. A procura e a descoberta do sentido (da bíblia) não se fazem unicamente e nem em primeiro lugar através de discursos, da aula, da informação, do raciocínio, mas através de um processo mais amplo que envolve todos os aspectos da vida (Mesters, p. 11). É nossa convicção de que a arte é para todos que estão à procura do sentido da Bíblia.
Afirmação 3: A Bíblia exige arte
— Mas pastor, que significa isso? O senhor estudou estas coisas. Qual é o sentido deste trecho bíblico?
Quantas vezes já ouvimos estas perguntas num estudo? Ou quantas vezes, num culto, terminamos a leitura do texto, fechamos a Bíblia, e vemos as pessoas (nem todas, mas muitas) expectantes, esperando que nós resolvemos as tensões no texto, eliminemos as dúvidas e expliquemos o texto de forma que possa ser consumido. E quantas vezes, nós, ansiosos em sermos vistos como profissionais competentes, aquiescemos a esta expectativa, fazemos um resumo em linguagem clara e exata, fazemos um esquema, damos a resposta certa para todos. Certamente estamos cientes do perigo que existe para o trabalho pastoral quando o pastor assume o papel de mediador único e intérprete autorizado da Bíblia. Mas será que entendemos que este tipo de ação representa uma violação da própria natureza da Bíblia?
Quando o homem da lei, em Lucas 10, pediu de Jesus uma resposta clara e resumida, Jesus contou uma história. A história não deu uma resposta pronta, mas exigiu dele uma decisão. A história, a parábola, como qualquer obra de arte, depende não só da imaginação do artista mas da imaginação e participação do ouvinte ou observador. Os credos antigos do povo de Israel e os credos da igreja primitiva não enfatizavam fórmulas doutrinais, mas acontecimentos históricos com todas as suas ambiguidades.
Se a Bíblia fosse uma antiga obra científica, poderíamos traduzi-la, resumi-la e esquematizá-la. Mas a Bíblia é uma obra de arte, uma coleção de obras de arte. Com isso, não negamos o status da Bíblia como instrumento revelador do Espírito. Ao contrário, queremos destacar a função revelatória da Bíblia através da sua natureza artística. A mídia da Bíblia é a palavra, linguagem escrita. Mas a linguagem da Bíblia não é a linguagem da lógica e das definições claras. Esta linguagem tem muita eficiência e precisão, mas ela torna abstraio o sentido rico dos encontros humanos com a realidade. Para expressar este encontro humano com a realidade divina, a Bíblia narra uma história e usa poesia, cantos, parábolas, cartas e até piadas. Ela relata como foram usadas a dança, a mímica e o teatro popular para proclamar a palavra de Deus.
Se a Bíblia é uma obra de arte, então ela exige arte para traduzi-la, interpretá-la e comunicá-la para a nossa realidade. O estudo histórico-crítico do texto pode ser uma ferramenta muito útil para descobrir o que o texto queria dizer. A análise sociológica do mundo, no qual o texto surgiu, pode iluminar conflitos e tensões importantes para o entendimento do texto. Mas isto, por si só, não basta. A natureza da Bíblia exige um engajamento artístico com o texto onde a imaginação pode trabalhar e responder à obra divina de Deus. Só assim a Bíblia vai servir de veículo de revelação para nós. Por isso, nós dançamos, fazemos teatro, moldamos barro e contamos histórias.
Afirmação 4: A encarnação nos obriga à arte
No Acampamento Repartir Juntos de 1987, em Ijuí, começamos todos os dias com uma declaração da nossa fé: Creio na ressurreição do corpo. A declaração era feita na linguagem dos surdos, usando as mãos, usando o corpo. Foi uma declaração visível da nossa convicção de que Deus valoriza o corpo, a carne, o material desta terra.
Uma das afirmações centrais de Lutero foi que o finito pode conter o infinito. Na encarnação Deus deixou claro que Deus quer comunicar-se conosco através do material de nosso mundo. Procurar por Deus fora desta encarnação era, para Lutero, uma blasfêmia.
Não escutem aqueles que dizem, ‘a carne não serve para nada.’ Ao contrário, digam, ‘Deus sem carne não serve para nada’ (Catecismo de Heidelberg, pergunta 48). O meio da comunicação divina/humana é a carne e o sangue de vidas humanas; não pessoas sem corpos, mas seres corporalizados. Por isso, a nossa resposta à iniciativa de Deus exige uma resposta da pessoa toda, não só uma aceitação intelectual. A nossa arte, envolvendo mais do que a boca na proclamação e recepção da Palavra, pode servir como um ensaio desta resposta integral que Deus espera.
Com a afirmação de que o finito pode conter o infinito, a palavra/gesto/símbolo humana torna-se meio divino. A prédica, as nossas palavras podem ser usadas pelo Espírito para tornar real o Verbo feito carne. Mas nós afirmamos que as outras expressões humanas: dança, teatro, desenho, escultura, etc., também servem de veículos para a revelação.
Afirmação 5: O processo libertador precisa de arte
Afirmamos que, na dura caminhada do povo de Deus para uma vida digna e justa, arte é necessária. Afirmamos que, para quem quer ver e ajudar a concretizar os sinais do Reino que Deus está realizando, arte é indispensável. Afirmação audaciosa. . .
— Olha pastor, o que eu fiz com minha argila — uma árvore, uma cama, minha casa, minha amiga Trudi — por tudo isso eu agradeço a Deus. (Neli, 5 anos)
— Ó pastor, eu não sei o que fazer. Quem sabe, o senhor faz para mim. (Gerusa, 12 anos)
— Meu desenho aqui tem os peixes que Pedro pescou. Aqui, Pedro está se ajoelhando. Aqui está Jesus, não dá para ver, mas ele está sorrindo. (Marcos, 6 anos)
— Eu não desenhei nada, eu não imaginei nada, eu não sei desenhar, a gente não deve fazer o que não quer. (Delia, 60 anos)
Enquanto houver um coração pra ser criança, lutemos juntos e não vamos desistir, ainda resta uma canção de esperança, anunciando a paz que o mundo há de sentir. (‘Uma Canção de Esperança’, em Quero Cantar ao Senhor 3)
Jesus declara que, para entrar no Reino, devemos nos humilhar e nos tornar como crianças (Mt 18.1-5). A criança é notável por sua imaginação. Esta imaginação corre solta, inventa mundos e pessoas, transforma o ordinário — uma caixa de papelão, uma lata — em algo extraordinário — uma nave espacial, um telescópio. Mas no mundo dos adultos, no mundo sério, a imaginação se atrofia. Não há mais mistérios para investigar, só problemas para resolver. Porém, esta atrofia de imaginação não é meramente um estágio no processo de maturação. A realidade dominante propagada pelos meios de comunicação massificante cria um torpor na imaginação do povo.
Quando a imaginação dum povo está dormente, as consequências são desastrosas para os que querem proclamar e experimentar a libertação que Deus promete em Cristo.
Primeiro, o passado não contribui mais para a construção do futuro. A memória, no entanto, é uma dimensão essencial na vida dum povo. Ela é um fundo de possibilidades para a construção dum futuro novo. Mas se a imaginação se torna passiva, este fundo de possibilidades ficará restrito. Daí que vivemos debaixo do poder dum passado determinado por costume, por tradição; e, por isso, estamos presos a um futuro que nada mais é do que uma extensão do presente. Quando a imaginação não trabalha mais com a memória do povo, o sentido do passado parece congelado e sem poder na construção dum futuro novo (Tannehill, p. 22). Este passado congelado serve aos que detêm o poder no presente e serve para esmagar os que sofrem no presente. Qualquer tentativa de descongelar este passado, revivificar a imaginação do povo gera conflitos (Richard, p. 20).
Segundo, quando a imaginação dum povo está dormente, o futuro prometido por Deus não consegue mais iluminar e animar o presente. A imaginação tem que vir antes da realização, (Brueggemann, p. 55). Se não conseguirmos imaginar este futuro, como poderemos agir para realizá-lo? Os deuses desta nossa sociedade não deixam nem energia, nem espírito, nem coragem para imaginarmos outras alternativas no futuro. Ou estamos preocupados em manter o que temos ou estamos preocupados em ter o suficiente para sobreviver. Neste ambiente a imaginação torna-se supérflua e até perigosa.
Com a imaginação dormente o povo perde o poder regenerativo do passado e perde o poder animador do futuro. Ficamos todos no brejo do presente, atolados no sempre foi assim.
A nosso ver, esta é a situação de muitos dos nossos membros, de muitas das nossas comunidades; é a situação da sociedade toda. Diante desta situação depressiva, precisamos de novas propostas para o trabalho homilético e para todo o trabalho pastoral. Concordamos com Brueggemann: A consciência do rei (quer dizer da realidade reinante) traz ao povo um torpor, especialmente um torpor referente à realidade da morte. É função do ministério e da imaginação profética levar o povo a ligar-se à experiência do sofrimento e da morte. (Brueggemann, p. 56) E, ainda: A consciência régia desperta no povo um desespero diante da nova vida. É papel da imaginação e do ministério profético levar o povo a engajar-se com a promessa da novidade que já está em andamento em nossa história com Deus (Brueggemann, p. 80).
O processo libertador precisa de arte. Por isso nós fazemos o que fazemos. O que acontece quando um palhaço assume o papel de Cristo e lava os pés da assembleia? O que acontece quando, de repente, jovens se levantam durante o culto e expressam, com os seus corpos, a confissão dos pecados? O que acontece quando, antes de ler Hebreus 4.12, uma gilette é passada de mão em mão? O que acontece quando chamamos mãos, corpos, pés, ouvidos, bocas a novas experiências?
O que acontece? Nós esperamos que com imaginação possamos acordar a imaginação. Estamos tentando dar um impulso energético, um choque, para revivificar as imaginações tão dormentes.
O que acontece quando usamos arte com a Bíblia? Nós convocamos à participação ativa da imaginação. Por isso arte é tão difícil para muitos adultos. Mas, como um músculo atrofiado pode ser recuperado através de exercício, uma imaginação atrofiada também pode recuperar a sua elasticidade e força.
III — Conclusão
O processo libertador precisa de arte, pois precisa dum povo com imaginação ativa. A encarnação nos obriga à arte, pois ela indica o plano de Deus, o de usar o finito, o cotidiano para realizar os planos infinitos. A Bíblia exige a arte, pois ela é uma obra artística que fala a linguagem dos artistas. Por isso, nós desafiamos todo o nosso povo a dançar, desenhar e imaginar conosco. No processo descobrimos que com arte recuperamos o poder celebrativo e emotivo da Bíblia.
Se pudermos entender e sentir e celebrar as Boas Novas, poderemos também começar a vivê-las!
IV – Bibliografia
– BRUEGGEMANN, Walter. A Imaginação Profética. Edições Paulinas, São Paulo, 1983.
– GAGNE/KANE/VEREECKE. Introducing Dance in Christian Worship, Pastoral Press, Washington, DC, 1984.
– MESTERS, RICHARD, SCHWANTES, ANTONIAZZI. A Bíblia Como Memória dos Pobres, Vozes, Petrópolis, 1984.
– TANNEHILL, Robert. The Sword of His Mouth, Fortress Press, Philadelfia, 1975.
– Wilder, Amos. Jesus’ Parables and the War of Myths: Essays on Imagination in the Scriptures. Fortress, Philadelfia, 1982.