Prédica: Romanos 10.5-13
Leituras: Êxodo 20.1-3 (4-6) 7 (8-11) 12-17 e João 2.13-22
Autor: Nélio Schneider
Data Litúrgica: 3º. Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 03/03/1991
Proclamar Libertação – Volume: XVI
1. Introdução
Para mim Jesus de Nazaré foi a pessoa mais feliz que já viveu. Ele foi uma pessoa que contagiava de felicidade quem estivesse ao seu redor, foi alguém que transmitia sua força aos outros, que distribuía o que tinha. Dele podemos aprender: quanto mais feliz alguém é, tanto mais facilmente pode abrir mão de algo. Suas mãos não se agarram ao pedaço de vida que lhe tocou. Sendo sua toda a felicidade, não necessita segurá-la. Suas mãos podem se abrir. (D. Sölle.)
Ao subirmos (liturgicamente) com Jesus a Jerusalém nesta época de Quaresma, somos convidados a refletir sobre o fundamento e o sentido da nossa vida (cristã) à luz da caminhada de Jesus, que foi uma caminhada através da morte para além da mesma, foi a entrega radical da vida para garantir vida. Quem quiser salvar a sua vida vai perdê-la, mas quem perder a sua vida vai salvá-la. (Lc 17.33.) Realizando este fato paradoxal em sua própria vida, ao dar a mesma em favor de todos nós, Jesus nos deu a possibilidade de libertar-nos de nossas algemas, algemas essas que nos prendem à vida como conquista, vida a ser defendida e garantida até contra e à custa de outros. Jesus nos mostra que vida é presente, é entrega, é morte. Paradoxalmente, morte como doação de vida gera vida e vida como conquista/merecimento gera morte (cf. Jo 12.24). Jesus nos liberta do espírito acumulador de vida do nosso tempo, que segue caminhos próprios para garantir vida; Jesus fundamenta/justifica a nossa vida a partir da doação de sua vida na cruz. No culto deste domingo, a comunidade reunida se dirigirá com gratidão ao Deus Criador e Justificador da vida e será lembrada — através da leitura do AT, Êx 20, e da prédica — dos fundamentos éticos de uma vida cristã comunitária renovada, que se expressa em um não-conformismo com o espírito gerador de morte do nosso tempo.
2. O texto da prédica e seu contexto
Já o primeiro contato com o texto de Rm 10.5-13 mostra que ele não se insere automaticamente dentro do nosso contexto litúrgico nem fala por si só para dentro do nosso contexto histórico. Ele está inserido dentro de um contexto específico da vida e da obra do apóstolo Paulo (dentro do contexto literário maior de Rm 9 a 11). Trata-se aí a difícil questão acerca da salvação do povo escolhido de Deus, Israel. Esta questão se levanta a partir da pressuposição teológica de Paulo, de que todas as pessoas são pecadoras e necessitam da justificação por graça da parte de Deus nos termos colocados por Paulo especialmente em Rm 3.21-26. E o israelita, como membro do povo escolhido de Deus, precisa também crer em Cristo para ser salvo? A Carta de Paulo aos Romanos teria ficado bem mais curta se o apóstolo tivesse respondido a essa pergunta com um simples sim, o que seria a consequência lógica de sua afirmação teológica. Paulo reluta em tirar esta consequência e pergunta: então qual foi o sentido e a vantagem da eleição de Israel? (3.1ss.) Tendo levantado a lebre em 3.1, ele a persegue nos caps. 9 a 11. Aí Paulo externa sua preocupação e tristeza com o fato de que exatamente o povo de Israel, ao qual foram conferidas as promessas de Deus e do qual partiu a salvação de Deus para o mundo, não entendeu/aceitou o propósito de Deus de salvar a todos por meio de sua graça manifestada concretamente em Jesus Cristo. O povo de Israel estava envolvido em caminhos próprios de salvação/justificação, rejeitando o caminho proposto por Deus. Em tempos posteriores a Igreja de Cristo não teve dúvidas em condenar Israel ao inferno por causa disso (a história do antijudaísmo é longa e perdura até nossos dias). Paulo não só não faz isso, como também combate tal arrogância dos cristãos — já existente no seu tempo (ver cap. 11). Paulo afirma a salvação de Israel como um todo como sendo um mistério de Deus, o qual não nega fidelidade ao seu povo. Nota bene: não diz ali (11.25ss.) que Israel deve passar pela Igreja! Os caminhos de Deus são mais variados do que a nossa dogmática permite.
Paulo constata com tristeza e dor no coração que Israel não compreendeu o caminho de salvação proposto por Deus, seguindo um caminho próprio, o caminho da justificação pelas obras correspondentes ao mandamento legal. Paulo considera que nem mesmo à altura da exigência da lei Israel conseguiu chegar, quanto mais à salvação (cf. 9.31-10.3).
O problema todo surgiu porque Israel não se submeteu à maneira como Deus resolveu a questão da justificação (v. 10.3b), não reconhecendo que Cristo tomou o lugar da lei. Ele determinou o fim da lei (10.4) como poder escravizante ao cumprir a finalidade da lei, que é exatamente levar aquele que a pratica à justificação/ salvação. Este é o duplo sentido da expressão telos nomou Xristos (10.4). Não se trata da eliminação da lei por Cristo, mas em primeiro lugar do cumprimento de sua finalidade. Por outro lado, sendo a lei — na compreensão de Paulo — um poder escravizante (p. ex., 7.1,6; 8.1, etc.) quando distorcida em seu sentido, é lógico que Cristo libertou deste mesmo poder, quando mostrou o caminho da justificação pela fé. Nosso texto para a prédica Rm 10.5-13 explica Rm 10.4. Parafraseando explicativamente o texto, entendemos que o apóstolo cria — através de uma distorção do sentido de Dt 30.10-14 — um antagonismo entre a justiça pretendida pela lei e a justiça que vem da fé. Paulo polariza dois princípios de vida/justificação/salvação. Quem pratica o que a lei diz busca a vida por intermédio do cumprimento da lei (v. 5: Lv 18.5). Este é, segundo Paulo, o caminho errado. A vida não está na insegurança da constante busca de perfeição no cumprimento da lei. Não precisamos provar que merecemos a vida. Ela não é decorrência de algum esforço sobre-humano de nossa parte. Não precisamos buscar a Cristo no céu ou tirá-lo do inferno. Cristo mesmo o fez por graça e nestes termos nos oferece vida/justificação por intermédio da fé na sua palavra. Esta nada mais é do que o evangelho pregado pelo apóstolo, confessado de viva voz e crido com o coração. No ato de fé e de confissão pública se expressa a vida/salvação/justificação. A confissão Senhor (é) Jesus nasce da convicção, da fé naquele que é o autor da vida e a fundamenta para além da morte, ressuscitando a Jesus dentre os mortos. Quem colocar sua confiança neste Deus acima de suas próprias possibilidades de vida alcançará vida/salvação, ou melhor, esta lhe virá ao encontro na palavra do evangelho como promessa de vida renovada. É uma palavra certa, que não decepcionará, pois Deus mesmo a garante. Isto vale para todos sem distinção. A pessoa que recorrer a Deus não ficará de mãos vazias, receberá dele a rica dádiva da vida renovada, livre dos poderes escravizantes da morte. Deus não rejeita quem o invoca.
3. Meditação
Nosso texto nos apresenta a possibilidade de uma vida renovada, livre como dádiva de Deus a ser recebida com confiança e testemunhada como evangelho. Es ta concepção contrasta com a compreensão especificamente judaica da justificação por merecimento a partir do cumprimento dos preceitos da lei.
Abandonando a frente judaica, específica da situação histórica de Paulo, pode mós contrastar a compreensão de vida como dádiva com as leis que regem o mundo que nos rodeia: a lei do sucesso, da retribuição merecida, do crescimento, do seguro e da garantia, da acumulação de bens como garantia de vida (cf. Lc 12.16ss. como parábola do nosso tempo). Para receber algo preciso apresentar um mérito que o justifique. Em nosso sistema isto vai tão longe que a própria vida tem de ser conquistada a cada dia pela grande maioria. Outros se adonaram da dávida de Deus e fazem negócio com ela. Estamos tão enraizados nesta maneira de pensar que não entendemos a linguagem da vida que vem de Deus por graça, como pressuposição de tudo o mais. Seria mais ou menos propor que o salário fosse pago a cada um no primeiro dia de trabalho para garantir a possibilidade de trabalhar aquele mês. O salário seria pressuposição e não merecimento. Por estranho que soe, a comunidade cristã nasce desta inversão de valores e a aplicação da mesma gera o não-conformismo com o nosso tempo e a busca de caminhos alternativos. Em lugar da concorrência, a comunhão; em lugar da cobrança, o perdão; em vez de agarrar, soltar; em vez de acumular, dar/distribuir (oração de São Francisco de Assis). Vivei conforme a vontade de Deus — expressa nos mandamentos Êx 20; Mt 22.37ss. — é nadar contra a correnteza. Também Israel recebeu os mandamentos sob a pressuposição da graça de Javé: a libertação do Egito. Para nós vale: vida plena só é possível sob a pressuposição da graça de Deus em Jesus Cristo. Só esta possibilidade nos liberta, nos abre os olhos para os mecanismos geradores de morte e nos capacita a praticar uma alternativa de vida.
(Sugestão para o culto: onde for possível seria interessante convidar um israelita engajado ou um rabino para expor junto com o pastor ou alguém outro seu posicionamento sobre o assunto. A comunidade talvez tivesse a chance de ouvir — diante de toda a história do antijudaísmo cristão — que também o evangelho pode se tornar uma lei mortal. Seria bom também para relativizar a concepção cristã quase milenar de que o judaísmo como um todo é uma religião da lei.)
4. Subsídios litúrgicos
Hinos: HPD 224; 156.
Intróito: Jo 10.10 ou Rm 5.1 ou Jo 14.6 ou Jo 11.25s…
Confissão de pecados: Senhor, Deus misericordioso. Tu nos deste vida e queres que a vivamos em plenitude de acordo com tua vontade, assim como a árvore boa produz frutos bons. Perdão, Senhor, pelo muitos frutos podres que crescem na árvore boa que plantaste. Perdão por pensamentos, palavras e ações que não valorizaram e não fomentaram a vida, nem a nossa, nem a do nosso próximo, nem a da natureza criada por ti. Perdoa a nossa fraqueza e tem piedade de nós, Senhor!
Coleta: Senhor, escuta a nossa oração, protege a tua Igreja com a tua mão poderosa e dá-lhe a coragem e a força para ser um agente que promova a vida contra as forças da morte. Por Jesus Cristo, que contigo e com o Espírito Santo vive e reina. Amém.
Intercessão (sugestão para envolver toda a comunidade reunida na ação de intercessão):
(Pastor) Nosso Senhor Jesus Cristo, tu és o caminho que nos leva ao Pai, a verdade que nos liberta, a vida que nos move; a ti chegamos com gratidão pelo dons que nos deste, em especial pelo dom da vida. A ti clamamos:
(Comunidade) Senhor, ouve a nossa oração!
(Pessoa A) Nós te pedimos por nós mesmos, um pelo outro; ajuda-nos a ouvir tua voz em meio ao turbilhão de vozes do nosso tempo; dá-nos olhos claros para seguir no teu caminho com firmeza e determinação; dá-nos força para nadar contra a correnteza. A ti clamamos:
(Pessoa B) Nós te pedimos por nossa comunidade, pela Igreja e por toda a cristandade: fica conosco, que como pecadores agraciados possamos testemunhar a todos o amor que recebemos de ti com palavras e ações. A ti clamamos:
(Pessoa C) Nós te pedimos por aqueles que tem algum cargo de responsabilidade entre nós: dá-lhes a sabedoria e a força de exercê-lo como serviço e não como posse. A ti clamamos:
(…) Nós te pedimos por todos aqueles que em nosso país estão incumbidos de maneira especial de zelar pela paz e pela justiça: que sejam lembrados que tu existes e que nos deste um mandamento de paz e justiça. Que não se deixem guiar pela ganância e pela sede de poder, mas pelo bem comum e o direito. A ti clamamos:
(E assim por diante.)
5. Bibliografia
E. Käsemann. An die Römer, HNT 8A, 3a ed. Tübingen 1974.
Wilckens, U. Der Brief an die Römer (Röm 6-11), EKK VI/2, Köln/Neukirchen-Vluyn 1980.
Stendhal, K. Der Jude Paulus und wir Heiden. Anfragen an das abendländische Christentum, München 1978.