Prédica: João 15.1-8
Leituras: Atos 8.26-40 e 1 João 3.18-24
Autor: Ervino Schmidt
Data Litúrgica: 5° Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 01/05/1994
Proclamar Libertação – Volume: XIX
1. Introdução
Que riqueza nos capítulos 14-17 do Evangelho de João! Eles falam da despedida de Jesus ou, se quisermos, contêm os ensinamentos antes da paixão. Como nos sinóticos, também aqui se indica que o significado completo daquilo que Jesus ensinou e fez só é possível perceber na perspectiva da cruz. Aí se manifesta o jeito de Deus. Jesus, vindo do Pai e retornando a ele, mostrou que o sentido da vida só pode ser percebido na perspectiva do amor divino, que se revela sub contrario, que se revela na fraqueza.
Costuma-se dividir esse grande bloco de despedida em três unidades literárias: Jo 14.1-26 — primeiro discurso de despedida; Jo 15.1-16.33 — segundo discurso de despedida; Jo 17.1-16 — a oração sacerdotal de Jesus. Não importa muito para nossa reflexão, neste momento, se essas unidades literárias foram redigidas em diferentes épocas. Não podemos seguir os passos da redação de cada uma delas. No Evangelho de João, elas foram unidas e formam o conjunto literário no qual atualmente se encontram.
Quanto ao conteúdo, podemos destacar alguns temas básicos, como, por exemplo, a preocupação com a continuidade da obra de Jesus nos discípulos através do agir do Espírito Santo; a união vital com Deus e a paz que dela resulta; a paz que nos é confiada como tarefa e se traduz como amor eficaz e engajado; igreja na união intensa com a videira; existência escatológica e a hora da exaltação de Jesus.
Temas abstratos? Muitas vezes se ouve a argumentação de que, ao contrai io dos Evangelhos sinóticos, o Evangelho de João estaria se distanciando dos problemas concretos para a esfera contemplativa. Seria mais espiritual. A análise materialista dos textos bíblicos tem deixado um tanto de lado os textos joaninos. Privilegiou os sinóticos. A leitura da Escritura a partir da ótica dos oprimidos parece encontrar dificuldades na interpretação do quarto Evangelho.
Mas têm sido feitas algumas tentativas de uma interpretação do Evangelho de João para o nosso contexto social tão conturbado, rumo à transformação da pessoa e da história. Menciono com satisfação que o CESEP (Curso de Verão, ano VI) está buscando uma leitura libertadora do Evangelho de João.
Ana Flora Anderson e Frei Gilberto da Silva Gorgulho colocam muito bem:
O Evangelho de João apresenta a práxis cristã como um testemunho da verdade. É a vida nova na Luz, na Verdade, na Liberdade e na Vida, que é fruto da missão da Palavra encarnada que comunica o Espírito da Verdade. A práxis cristã da liberdade é um testemunho a respeito do pecado, da justiça e do julgamento (Jo 16.1-12). A vida na verdade que liberta é a busca contínua desse testemunho dentro de um mundo hostil. Por isso o Evangelho de João não é abstrato e não deve ser lido e compreendido fora de uma realidade muito concreta. Aliás, ele reflete a luta concreta das comunidades joaninas dentro das contradições e dos conflitos do mundo greco-romano. Reflete a luta concreta da comunidade cristã e abre-lhe o caminho como comunidade libertadora (p. 11).
Decididamente, o Evangelho de João não é abstrato. Pode ser chamado de Evangelho espiritual porque, com todo o vigor, desenvolve o papel do Espírito Santo na história e nas comunidades. O Consolador consola e anima exatamente num mundo hostil e que provoca a perseguição. O que vem a ser Igreja no mundo conforme a narrativa da videira e dos ramos?
2. Auscultando o texto
Importa, agora, analisar o nosso texto e verificar a concreticidade da mensagem.
A imagem da videira era conhecida no contexto de Jesus. Já era usada no Antigo Testamento para designar o povo de Deus. Aos poucos, um representante do povo de Deus podia ser comparado à videira.
Aqui Jesus mesmo se identifica com o representante do povo escatológico de Deus: Eu sou a videira. É uma expressão que denota exclusividade. Além disso, ela caracteriza a videira como a verdadeira. Não aqueles que se julgam ser o povo de Deus o são de fato, mas unicamente Jesus. Isso significa que nem uma determinada história tampouco o cumprimento formal da lei fundamentam a pertença ao verdadeiro povo de Deus. Em Jesus mesmo se decide quem verdadeiramente a ele pertence.
O v. l expressa a íntima relação existente entre o Filho e o Pai. É Deus quem reveste Jesus da sua função específica. Deus, o Pai, é o agricultor. O agricultor quer ver os ramos trazendo frutos. Os ramos que não trazem frutos perdem sua razão de ser.
Com o v. 3 parece dar-se uma mudança de argumentação. Uma vez colocado que Jesus é a videira verdadeira, os versículos seguintes explicam em que sentido os discípulos são os ramos. Como chegam a sê-lo. A condição para pertencer a Jesus é estar limpo. Mas isso não se consegue através de ato heróico humano. Isso se dá pelo ouvir da palavra divina. Vós estais limpos pela palavra que vos tenho falado. No v. 5, então, os discípulos são expressamente identificados com os ramos.
O que aqui é apresentado tem sua analogia com a concepção paulina de comunidade. O apóstolo Paulo caracteriza a comunidade como corpo com seus diversos membros, onde Cristo é a cabeça. Sem a cabeça os membros perdem sua função. Ligados, porém, a Cristo, a cabeça, os diversos membros são presença concreta do Senhor no mundo.
Os vv. 4-6 colocam todo o peso na necessidade de trazer frutos. Mas não é assim que o trazer frutos fosse a condição para permanecer na videira. Muito ao contrário, o permanecer na videira é condição para trazer frutos. Sem mim nada podeis fazer. Pertencer ao povo de Deus se deve exclusivamente ao agir gracioso de Deus. Mas essa ação de Deus tem consequências em termos de um agir libertador concreto por parte dos membros do povo de Deus. Amai-vos uns aos outros, assim como eu vos amei (v. 12).
Uma vez estabelecida a questão da permanência dos discípulos em Jesus, o v 7 fala da permanência de Jesus na sua comunidade. Essa permanência se dá ali avos da palavra. Já o v. 3 falava do poder da palavra. Ela dá vida e exige empenho em favor da vida. Discípulos (comunidade) se encontram no caminho da vida. Passam por aflições. Mas podem ter bom ânimo, porque o Senhor está com eles através da sua palavra.
Além disso, eles podem contar com o poder da oração. Lutero diz em uma interpretação dessa passagem: Orar é obra exclusiva da fé, e ninguém pode fazê-lo exceto o cristão. Pois os cristãos oram, não confiando em si mesmos, mas naquele nome em que foram batizados, o nome do Filho de Deus, e têm a certeza de que sua oração é agradável a Deus porque ele mandou orar em nome de Cristo e prometeu atender (Castelo Forte, 1983, meditação para o dia 7 de maio).
Orações no caminho da obediência, no caminho da existência libertadora podem contar com a certeza do atendimento. Pedireis o que quiserdes, e vos será feito.
3. A caminho da prédica
Fizemos uma interpretação eclesiológica. Destacamos, também, que não é possível falar do ser Igreja sem deixar bem clara a fundamentação cristológica.
Sugiro que a prédica se concentre na questão do discipulado, pois o próprio texto conduz a ela. O que se coloca é como surge comunidade de Jesus Cristo no mundo e o que concretamente vem a ser. Qual sua finalidade? A comunidade que nunca é simplesmente a soma de indivíduos isolados, mas unidade orgânica, só pode ser libertadora no mundo se permanecer em seu Senhor. Somente assim ela pode levar e viver o anúncio e a promessa de um mundo novo, da verdade e da vida.
Todos temos consciência de que é absolutamente necessário trazer esse anúncio. Cada pregador saberá pintar o quadro do seu contexto e dizer o que nele vêm a ser os ramos que trazem frutos.
4. Subsídios litúrgicos
4.1. As duas leituras bíblicas, At 8.26-40 e l Jo 3.18-34, falam do vir a crer através da palavra divina e do atendimento da oração do crente, respectivamente. A primeira epístola de João ainda destaca o mandamento do amor. Está aí uma boa ponte para a imagem da videira e dos ramos no que toca à necessidade de trazer frutos.
4.2. O que vem a ser o discipulado num mundo conturbado como o nosso? O que significa ser Igreja, hoje, a caminho da maturidade?
A Igreja a caminho da maturidade é uma Igreja que medita sobre as mudanças históricas e procura descobrir nessas mudanças os sinais da ação livre e soberana do Espírito de Deus.
— Ora e age pela transformação da sociedade humana, pois ambos são necessários para se cumprir a vontade de Deus, que quer 'reunir em Cristo todas as coisas'.
— Respeita diferentes modos de agir e pensar, mas é firme em seu compromisso de praticar o amor e a justiça, condição para a verdadeira paz entre os povos e nações.
Suplicamos-te, ó Cristo, um espírito aberto, para descobrir-te na novidade de nossa história tanto quanto na herança do passado.
— A Igreja a caminho da maturidade é uma Igreja aberta ao diálogo. Ela louva Deus pela riqueza da sua própria tradição e alegra-se com as riquezas das outras tradições.
— Contrária ao triunfalismo denominacional, ela percebe através do diálogo a catolicidade da Igreja, compreende mais adequadamente a Verdade e sente-se desa¬fiada para uma vivência mais plena e consequente da sua fé.
Ó Senhor, concede-nos a capacidade de falar e ouvir uns aos outros em amor, a fim de crescermos juntos em direção àquele que é a cabeça, Cristo.
— A Igreja a caminho da maturidade busca intensamente a comunhão 'com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo' (l Jo 1.3).
— Portanto, não anda nas trevas, mas pratica a verdade em amor, na comunhão com todos os que buscam cumprir a vontade de Deus para o mundo.
Ó Senhor, concede-nos que vivamos em tua comunhão, amando o teu povo. Amém. (CONIC. Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, pp. 32 e 33).
4.3. Sugestão de canto: A Videira
Eu sou a videira, vocês são os ramos
e meu Pai é o agricultor (bis).
Vocês ficam livres, unidos a mim,
Se unidos aos outros ficarem assim.
Comigo só vai quem vai com o irmão.
Trabalho seguro é só na missão.
Unidos ao Pai, unidos ao irmão,
nós conseguiremos a libertação!
4.4. Símbolos: Pode-se colocar sobre o altar um arranjo de ramos de videira com folhas verdes ou brotos. Nos degraus para o altar poderá estar apoiado um feixe de ramos secos.
5. Bibliografia
– BEOZZO, J. O. Curso de Verão, ano VI. São Paulo, CESEP — Edições Paulinas, 1992.
– DODD, C. H. A Interpretação do Quarto Evangelho. São Paulo, Edições Paulinas, 1977.
– KONINGS, J. Encontro com o quarto Evangelho. Petrópolis, Ed. Vozes, 1975.