Prédica: Lucas 24. (44-49) 50-53
Leituras: Atos 1.1-11 e Efésios 1. (16-20a) 20b-23
Autor: Carlos Eduardo Müller Bock
Data Litúrgica: Ascensão
Data da Pregação: 12/05/1994
Proclamar Libertação – Volume: XIX
1. O lugar do dia da Ascensão
Penso que, inicialmente, é importante perguntar pelo lugar do dia da Ascensão na vida celebrativa das comunidades cristãs de hoje, como celebramos a Ascensão do Senhor em nosso contexto. Talvez seja o momento de recuperarmos essa celebração festiva, que aponta para a glorificação de Nosso Senhor Jesus Cristo. A ascensão é um dos mitos da fé cristã. Depois da tentativa de derrubada dos mitos, talvez seja tempo de revivê-los.
2. A imaginação
A capacidade de imaginar é ilimitada. Ao ouvirmos uma história, uma piada, vamos logo soltando a imaginação. A decepção ao vermos um filme baseado num livro lido não é rara. A frustração ocorre porque, ao lermos o livro, a nossa imaginação vai além das possibilidades da criação cinematográfica, mesmo diante de tantas técnicas, descobertas, efeitos especiais e criatividade dos cineastas.
O texto de Lucas 24.50-53 ativa a imaginação dos ouvintes. Como foi essa subida ao céu diante dos olhos dos discípulos? Talvez, para alguns, de universo mais televisivo, Jesus tenha sumido da vista dos discípulos em meio a muito gelo seco e luzes piscantes, tal como a Xuxa no final de seu programa. Para outros, a imaginação descreve um quadro mais sério.
A partir desse pensamento, pedi, em alguns grupos da comunidade, que desenhassem ou representassem esse texto. A grande maioria desenhou Jesus em meio a nuvens, distante dos discípulos que ficaram no chão. As representações também seguiram o esquema dos desenhos, deixando a ascensão do ator que representava Jesus por conta de um afastamento até sumir de vista. Esse exercício nos leva a considerar que, quando esse texto é lido e compartilhado na comunidade, a imaginação das pessoas cria um quadro mítico. Mexe com o inusitado, o irrealizável para uma pessoa comum. Cria-se o mito, pois a imaginação é o ponto inicial de tudo o que pensamos e queremos. Contrariando o positivismo, precisamos dar ao mito, ainda hoje, um lugar de importância como forma fundamental de todo viver humano (Aranha e Martins, p. 27).
3. O texto
O texto de Lucas 24.50-53 é o final do Evangelho de Lucas e relata a última ação física de Jesus após sua ressurreição. O capítulo 24 de Lucas narra a percepção da ressurreição. Os sentidos são exigidos integralmente, para que se sinta a ressurreição de Jesus.
Primeiro, as mulheres vêem que Jesus não está mais no túmulo e anunciam isso aos discípulos e aos que estavam com eles (Lc 24.9). Fato concreto. Realidade visível. Depois, eles ouvem a voz de Jesus. Seus ensinamentos e palavras ardem em seus corações na caminhada para Emaús (Lc 24.13ss.). Nessa caminhada, pelo partir de pão, Jesus é realidade percebida pelos sentidos antes encobertos pela angustiante desesperança.
A aparição de Jesus mexe com todos os seus sentidos. Eles o ouvem, vêem, sentem o seu cheiro, tateiam as suas mãos e pés e sentem juntos o mesmo sabor gostoso e familiar do peixe assado, tantas vezes repartido.
Tudo isso é concreto. Essa realidade experimentada, rememorada nos sentidos essenciais, é que revela aos discípulos e discípulas de Jesus tudo o que não haviam percebido na caminhada anterior para a cruz e ressurreição. Foi na experiência concreta dos sentidos que se lhes abriu o entendimento, a compreensão do que Jesus Cristo representava. A sensação de fracasso, de derrota, de terem se enganado e acreditado em vão estava superada. É hora da glorificação. Agora é possível vê-lo deslocar-se do chão rumo à esfera do divino, para o céu.
V. 50: Nesse versículo é situado geograficamente o lugar de deslocamento de Jesus do chão. Jesus se retira da presença dos discípulos em Betânia. A vila Betânia, aqui referida, fica no Monte das Oliveiras. Nessa vila acontecem momentos importantes e confortantes para Jesus. Ali, ele tem amigos como Marta, Maria e Lázaro (Jo 11.1). Em Betânia ele é ungido (Mc 14.3-9). De Betânia Jesus parte para a entrada triunfal em Jerusalém (Lc 19.29 e 37). O anúncio da vinda do Messias sai do deserto e passa por Betânia para chegar a Jerusalém. A ascensão deve ser reservada aos que testemunharam a sua tarefa e que agora a deverão contar ao mundo inteiro.
A bênção de Jesus aos discípulos, dessa forma, é única. Mesmo no envio dos 70 não acontece uma bênção. Jesus abençoa os alimentos na refeição (Mt 26.26), o pão multiplicado (Mt 14.19) e abençoa as crianças (Mc 10.16) num gesto próprio dos mestres sobre os ouvintes.
Biblicamente a bênção é dada por quem está numa situação de autoridade em relação aos que estão sob ela. Talvez a posição de Jesus, ao colocar-se como servo (Jo 13.16), o impeça de abençoar os discípulos, antes de ser glorificado com a ressurreição. Agora, ele abençoa porque a sua tarefa é outra. Cumpriu-se o tempo de servir. Agora é hora de ser glorificado.
Em nenhum momento, os escritores do NT guardam as palavras da bênção de Jesus. Não se sabe qual é a formulação do seu bendizer, da palavra bendita, como desejo de coisas boas aos abençoados. Segundo Ef 1.3, a bênção de Jesus é bênção espiritual.
Antes da ascensão, a bênção de Jesus funciona como um selamento de toda a sua ação e viver com e a favor dos seus discípulos. É o gesto final em favor daqueles que, haviam caminhado com ele até a cruz, sem assumi-la, mas que realizariam a tarefa de testemunhar por força da ressurreição e experimentação dela.
V. 51: Essa cena descrita por Lucas é considerada um dos mitos da fé cristã. Como pode a mente das pessoas crer que Jesus subiu corporalmente ao céu diante dos seus discípulos? Mito ou não, a verdade é que ela mexe com a imaginação que desperta a fé.
A despedida de Jesus e seus discípulos pode ser comparada, relativamente, à despedida de uma visita querida. Temos o desejo de prolongar os bons momentos passados juntos. Fica-se acenando, protelando o momento, até o visitante perder-se de vista. Enquanto acenamos… Enquanto os abençoava, afastava-se deles. Cresce a certeza da separação. Cessaram-se os dias benfazejos de Jesus na terra. Foi atingido o objetivo de todas as peregrinações de Jesus; Ele está glorificado (9.51). O tempo de Cristo desde o batismo até a ascensão — está encerrado. Voltará. Esta é a promessa que se guarda e motiva para a tarefa evangelizadora (Stöger, p. 328).
V. 52: Esse ato de adoração está ligado à prática da adoração a Deus no AT. No AT, adoração significa inclinação do corpo e é dirigida ao Deus pessoal e presente (Bauer, p. 15). Adoração (Proskinese) é também o termo usado para designar a peregrinação até Jerusalém (Jo 12.20; At 8.27). Essa adoração é o reconhecimento final de que Deus está glorificando o Filho (Jo 17.1). Agora, não só Deus merece adoração como divindade, mas também Jesus Cristo, que, elevado ao céu, passa a fazer parte da esfera divina.
Ao voltarem a Jerusalém, os discípulos não erguem, em Betânia, um altar, como fizeram Noé (Gn 8.20) ou Isaque (Gn 26.24-25). Cumpriram a ordem de Jesus de que voltassem a Jerusalém para receber o Espírito Santo (Lc 24.49). A alegria toma conta de suas vidas. Não é uma alegria comum de quem festeja um momento da vida, tal como um aniversário, uma formatura, a vitória do time do coração, um casamento. A alegria dos discípulos está intimamente ligada à confirmação de que Jesus é o Messias. Tudo aquilo que ele fez e falou é verdade. A superação de todos os males da condição humana é possível. A alegria é a alegria pela libertação. A alegria também é motivada pela complementação da ressurreição. O Jesus que fora tocado, sentido como ressurreto, tem um lugar especial, de onde continuará com a sua gente pelo poder do Espírito Santo. Fecha-se o ciclo iniciado em Lc 1.14 com o anúncio do nascimento de Cristo como uma grande alegria para todo o povo. De agora em diante, vive-se a fé naquele que anunciou o Reino de Deus e que, erguendo-se do chão, confirma o seu poder.
O louvor é consequência. É cantar salmos, hinos e cânticos espirituais com gratidão nos corações (Cl 3.16). É um novo viver em comunhão na espera do cumprimento da promessa de envio do Espírito Santo (At 2.42-47).
4. A ascensão
O evangelista Lucas e também escritor do livro de Atos é o único que descreve a ascensão visível e corpórea de Jesus. Em outros textos, a ascensão está implícita. Jesus está junto do Pai (Mt 24.30; Rm 8.24; Hb 1.3).
Em Lc 24.50-53, a ascensão acontece num ato contínuo à ressurreição. Em Atos, ele fixa a data da ascensão: 40 dias após a ressurreição. A fixação da festa 40 dias após a ressurreição data do século IV (Proclamar Libertação) X, p. 31).
Por que Lucas coloca, no Evangelho, a ascensão no dia da ressurreição? A única explicação parece ser a intenção litúrgica do autor. Cada domingo da comunidade é uma Páscoa (Stöger, p. 326).
A pregação sobre a ascensão foi preterida no anúncio dos discípulos. O cerne de sua pregação foi a ressurreição de Cristo (At 1.21-22; 2.32) e a exaltação à direita do Pai (At 3.20-21).
O apóstolo Paulo não se preocupa com a entrada de Jesus no mundo celestial. Ele afirma que Jesus, depois de ressurreto, habita nos céus, onde está à direita de Deus (Rm 8.34 e Ef 1.20).
A ascensão de Jesus, mencionada em l Tm 3.16 e l Pe 3.21 22, é uma afirmação teológica. Também as referências nas pregações de Paulo e Pedro, nos Atos dos Apóstolos, anunciam sempre um Senhor ressuscitado e exaltado à direita do Pai.
A narrativa de Lucas é a única, oportunizando a possibilidade de percebermos duas veias por onde corre e ocorre o testemunho da ascensão de Cristo. Uma é visual, percebidas pelos sentidos, e outra é invisível, onde sem explicação palpável Jesus Cristo irrompe no mundo do divino e faz parte do próprio mistério da salvação.
Traçando um paralelo entre a ressurreição de Jesus e a de Lázaro (Jo 11-12.1), a quem ele ressuscita, podemos concluir que a ascensão de Jesus é o momento especial da sua glorificação, do seu coroamento como Filho de Deus. Lázaro segue a sua vida, correndo o risco de ser assassinado pelos principais sacerdotes (Jo 12.10). Vai passar por uma segunda morte física.
Por que Lucas fala de uma ascensão visível? Podemos considerar duas possibilidades, que se congregam. A primeira está relacionada com intenção de Lucas de escrever uma narração coordenada dos fatos (Lc 1.1). A sua narrativa precisa de um final para separa a ação salvífica de Jesus e o início da Igreja. A segunda diz respeito ao contexto. Como Lucas conhece as expressões teológicas de Paulo e de Pedro sobre a ascensão, ele narra o acontecido no contexto do capítulo 24. Esse capítulo é a reafirmação da ressurreição de Jesus pela comprovação tátil, visual, auditiva e gustativa das suas testemunhas. Também a ascensão tem lugar para ser percebida sensivelmente, concretamente pelos seus discípulos e discípulas.
5. Meditação
Vivemos num momento histórico onde as ciências, os meios de comunicação e descobertas vêm destruindo muitos mitos que compõem o cotidiano das pessoas. Mesmo assim, nessa vasta e diversificada América Latina, a força dos mitos religiosos é impressionante.
Podemos dizer que essa força nasce da impotência dos trabalhadores, dos pobres, dos marginalizados diante dos mecanismos de exploração. Não conseguindo se organizar, não tendo acesso aos bens produzidos pelas suas próprias mãos e não conseguindo vencer esses mecanismos pelas suas próprias forças, as pessoas esperam pela intervenção da força divina. Ela seria capaz de realizar as mudanças pelas quais lutam e esperam.
Os mitos da fé cristã são forças que sustentam as pessoas na luta. A transcendência de Jesus, diante dos discípulos e discípulas, certamente fortalece a esperança de superação dos mecanismos de opressão, morte e marginalização. Se os mitos leni essa força, então eles são positivos. No entanto, muito eles têm sido usados a serviço dos mecanismos opressores.
Diante disso, reviver a ascensão de Jesus na celebração do culto e encontros comunitários se torna importante. A ascensão de Jesus é um momento litúrgico/é a celebração dos discípulos e das discípulas de Jesus. Isso acontece depois de uma caminhada encarnada da proposta do Reino de Deus experimentada com Jesus. A ascensão é o sinal definitivo de que Deus pode mudar a realidade, vencendo as limitações humanas.
Essa possibilidade motiva o celebrar. A celebração dá-se pelo louvor, agradecimento, reconhecimento (aquilo que vimos e ouvimos é verdade), pela adoração, bênção, despedida. Esses elementos são próprios do nosso texto. Eles estarão também presentes na comunidade que celebra hoje. Especialmente nas comunidades que se comprometem radicalmente com a evangelização, que passa por sinais do Reino de Deus, que é acolhedora, inclusiva. Celebra a comunidade que, entendendo a sua tarefa, assim como os discípulos e discípulas entenderam, após a ressurreição, põe-se ao lado e a favor daqueles por quem Deus optou. Acima de tudo, a celebração deve ser o momento final de uma caminhada na luta contra todos os mecanismos de opressão, morte e exploração. Depois da luta, entre avanços e recuos, vem a celebração em adoração, alegria, louvor e bênção. Pois realizá-la é testemunho de que Deus está conosco na esperança de novos céus e de nova terra.
6. Sugestões para o culto
1. Prédica:
— Pedir aos presentes na celebração que fechem os olhos e imaginem a cena de Jesus subindo ao céu. Lê-se, então, o texto;
— Pedir para que alguns falem do quadro que imaginaram;
— Falar do texto destacando a adoração, o louvor, a despedida e a bênção;
— Avaliar com a comunidade se a sua adoração, louvor e glorificação estão de acordo com a sua caminhada: em que momentos a comunidade se sente fortalecida com a ascensão de Jesus?
— Convidar a comunidade para louvar e glorificar Deus com Salmos (Ex.: Salmo 96), orações e cânticos.
2. Bênção:
Temos praticado a seguinte forma de bênção final do culto: convidamos os presentes para colocarem as suas mãos na cabeça de quem está à direita e à esquerda. Pedimos que se aproximem os que estão isolados. O celebrante se inclui entre os participantes. Fala-se a bênção sacerdotal. Se a comunidade não sabe as palavras da bênção, o celebrante fala e a comunidade repete.
7. Bibliografia
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando. Introdução à Filosofia. São Paulo, Ed. Moderna Ltda., 1987.
KOCH, R Ascensão de Cristo In.: BAUER, Johannes. Dicionário de Teologia Bíblica, São Paulo, Loyola, 1978, p. 96.
STÖGER, Alois. Evangelho segundo Lucas, tradução: Danilo Kerber, Petrópolis, Vozes, 1974.