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Prédica: Efésios 1.(16-20a) 20b-23
Leituras: Salmo 110 e Lucas 24.44-56
Autora: Margarete Engelbrecht
Data Litúrgica: Ascensão
Data da Pregação: 05/05/2005
Proclamar Libertação – Volume: XXX


1. Aprendendo a conviver com sobreviventes: nossa realidade


Eis que, diante de nós, estão pessoas que sobreviveram ao caos econômico de “saídas” quase mágicas de governos comprometidos com a manutenção de domínios seculares.

Eis que, diante de nós, estão pessoas que sobrevivem a desrespeito e desprezo, oriundas de preconceitos de gênero, etnia e tantos outros percalços a que são submetidas em nosso país, sutil ou declaradamente.

Eis que, diante de nós, estão pessoas que se têm agarrado a esperanças de promoção individual, a promessas de crescimento econômico, a valores “tortos” de crescimento, trazidos por uma religiosidade também comprometida com dominação e escravização da criação de Deus.

Eis que, diante de nós, estão sobreviventes da bela criação de Deus: crianças envelhecidas precocemente, já responsáveis pela vida de seus irmãos e irmãs; crianças e adolescentes submetidos à tortura de seus pais, de suas mães, padrastos, madrastas; crianças e adolescentes que não sabem mais brincadeiras infantis, porque seus corpos foram desrespeitados e buscam já sozinhos o que neles foi despertado sem nenhum pudor.

Eis que, diante de nós, sobrevive, nem sempre majestosamente, a mata atlântica, a mata nativa de araucárias, os rios que deram origem a povoações inteiras. Tanto pequenos arbustos como grandes áreas vão sendo submetidos ao desrespeito e à violência, numa cadeia de ações que parecem não ter fim. São os traumas e conseqüências das atitudes violentas em pessoas. E ainda há sobreviventes em nossas comunidades ou fora delas vivendo e precisando viver do amor/poder de Deus.


2. Sobreviventes nas comunidades cristãs: texto e contexto

A Carta aos Efésios não é atribuída a Paulo, mas a pessoas que o sucederam na missão. Por ser mais tardia (em torno de 90 d.C.), é dirigida a pessoas que sobreviveram à promessa da segunda vinda de Cristo ainda no primeiro século. Traz, assim, a confissão de fé que perpassa a obra de Paulo e prossegue.

Tal confissão é dirigida a várias igrejas, já que é bastante impessoal.1 Mesmo assim, percebe-se que

não eram neoconvertidos. Eram famílias já instaladas no cristianismo que procuravam um status estável no mundo e na igreja. A comunidade local já não era novidade e já não suscitava tanto entusiasmo: precisavam de uma identificação mais forte. Já se encontravam bastante afastados da conversão porque estavam no perigo de se deixar contaminar pelo paganismo ambiental. 2

Há algo que vai tornando a Carta aos Efésios notadamente diferente de outras cartas. Ela não parece ser dirigida a grupos e pessoas pobres como em outras cartas ou nos evangelhos. É dirigida a comunidades que sofrem com a fraqueza de suas ações, já que refletem o mundo romano, que relaxara as perseguições.

A luta contra o Império não é luta contra a perseguição, e sim contra a pressão permanente dum mundo decadente.3

O agradecimento (v. 16 a 20) pela sobrevivência é a forma de encorajar justamente quem permanece na comunidade fundada pela pregação de Paulo e seu grupo. A carta aponta para a esperança que significa a comunidade cristã dentro de uma sociedade marcada pela indiferença e pela falência que o poder romano vinha sofrendo, qual seja, a esperança da extensão do próprio Cristo (v. 20b a 23).

Há ações de graças, provavelmente partes de hinos já conhecidos (na Carta aos Efésios, em comparação a Colossenses 1.15-20, o conteúdo do hino foi aumentado), fortalecendo a igreja já constituída. Ao proclamar o direcionamento do corpo pela cabeça, Cristo, não deixam de exaltar aqui também o corpo: as pessoas percebem como são agraciadas! E se tornam, na ótica da ascensão, uma extensão do poder de Cristo: poder de justiça, de misericórdia, de profecia, de novas formas de existir dentro de uma sociedade que vivencia o caos, mas que as capacita ao trabalho de Deus no mundo.

Essa confissão, escrita para uma comunidade algo desanimada e não mais motivada para um “embate”, pode “estimular de novo a fé e o entusiasmo”.4 O hino vai mostrando a confissão de que só Cristo está acima de qualquer outro poder.

3. Anúncio de chão e de esperança: contextualização

Anúncio da mensagem do evangelho a sobreviventes: esta é uma das luzes da Carta aos Efésios. Anunciar igreja a esses sobreviventes é anunciar poder a quem não tinha perdido a vida, mas que, mesmo assim, não possuía poder algum. Havia apenas sobrevivido, fazendo parte da comunidade cristã ou sendo acolhida por ela.

Lamentavelmente, temos exemplos cotidianos de abusos no poder. Lamentavelmente não temos exemplos rotineiros de quem, no uso de funções que detenham poder, mantenha-se sem corromper ou ser corrompido. Mesmo a postura estrutural de nossas igrejas cristãs pode distanciá-las da verdadeira igreja da resistência, de onde o poder realmente vem da experiência misericordiosa e profética de Cristo.
Mesmo assim, anunciar igreja entre os que sobrevivem na própria comunidade cristã ou a quem sobrevive, no dia-a-dia, ante nossos olhos, é anunciar a expectativa do que nos diz a canção popular: “pra que a vida nos dê flor e fruto!” .

Traumas não são facilmente esquecidos, tristeza pode continuar nas vidas das pessoas, mesmo não fazendo parte de um quadro depressivo: afinal, a vida, para quem sobrevive, tem marcas tristes. Por isso mesmo, anunciar que há poder de vida, há vida em nosso redor, é anunciar, sim, evangelho a sobreviventes.

O salmo indicado, Sl 110, é anúncio de vitória. A leitura do evangelho prevista para esta data, Lc 24.44-53, é anúncio do poder de Jesus Cristo estendendo-se ao mundo, que junta arrependimento e perdão a todas as nações, inclusive Jerusalém, onde Cristo foi condenado. Há o compromisso dos discípulos com o testemunho e há o momento de bênção e ascensão – mostrando que o poder de Cristo está além daquilo que nossos olhos podem ver e crer.

Cristo está presente ahora con una presencia mucho más viva que cuando peregrinó 33 años entre nosotros(…) la Ascensión de Cristo anuncia que la creación entera será también redimida en Él, porque Él dará la explicación de todo cuanto Dios ha creado y pondrá a los pies de Dios, al final de los tiempos, en el juicio final – que en eso consistirá el juicio final – el gran discernimiento entre el bien y el mal. El mal para ser eliminado definitivamente y el bien para ser asumido en la glorificación eterna de Cristo; o sea, que la Ascensión del Señor marca también la glorificación del universo. 5

4. Anúncio da Ascensão: pregação

Interessante observar a diferença na atualização das mensagens elaboradas por colegas nos volumes anteriores do PL. Interessante constatar o quanto a realidade que nos envolve direciona a nossa interpretação.

Há um ditado popular que afirma: “Cerração que baixa, sol que racha”. Normalmente, quando a neblina cobre a cidade pela manhã, é com vigor que o sol desponta ao meio-dia. Lembro de trabalhos feitos pelo Culto Infantil que anunciavam a ascensão como uma cruz que ia sendo envolta por nuvens. E volta-me a imagem da cerração/neblina, onde o céu “desce”, a cruz “sobe”, o poder se desloca e a natureza resplandece depois disso.

Ora, nem sempre “o sofrimento agudiza a sensibilidade para a dor do mundo”.6 Há formas de encarar o sofrimento de outras pessoas ou da natureza que vão subtraindo o sentido de transformação que a cruz anuncia. Ora se convive bem com a criança maltratada, que pede dinheiro e ganha, e com isto perpetua sua escravidão, ora se compactua com quem abandona sua criança, por acreditar não ter nada a contribuir para o desenvolvimento da mesma. Ora se é conivente com a violência e o desrespeito, porque talvez sejam formas de aprendizagem, ora se enaltecem diferenças culturais porque produzem retorno econômico.

O hino de agradecimento não é somente hino direcionado a sobreviventes, como também é hino dos mesmos. A Carta aos Efésios agradece a Deus por aquelas pessoas que continuaram firmes na comunidade, que se reconheceram como “corpo de Cristo”. Nós entenderemos, então, esse hino como hino de vida da igreja de Jesus Cristo.

Nós somos as pessoas convidadas a ler o evangelho; Cristo está nos mostrando o lado da vida que resiste à nossa ganância (exploração do ambiente e das pessoas), que resiste ao nosso sectarismo (das crianças de rua que vêm de famílias pobres da vila), que resiste à nossa falta de misericórdia (do mundo que produz tanto alimento e mata tanta gente de fome), que resiste ao nosso cinismo (da violência em família, que é escondida por vergonha). Eis o evangelho que resiste à morte de Cristo na cruz, que prega ressurreição e que anuncia que Cristo tem poder para ir aos céus diante de nossos olhos, por formas que para nós podem parecer estranhas e mágicas, como as vidas dos “sobreviventes” do sistema: vidas mágicas!

Confesso que ver a cruz vazia ascendendo, num cartaz no interior gaúcho, numa igreja quase centenária e sem luz, sem cuidados, sem perspectivas de vida comunitária ativa, traz-me, até hoje, incômodas reflexões. A vida expressa o corpo de Cristo: o hino da vida é o hino que reconhece a força de Deus nas pessoas enfraquecidas pelos poderes da “antivida” (a poesia de João Cabral de Melo Neto, “Morte e Vida Severina”, enriqueceria aqui a pregação).

Está em nós alterar as condições sociais determinantes de sofrimento humano. Possuímos o poder de mudar e de aprender no sofrimento, em vez de nos tornarmos piores. Podemos afastar gradativamente e suprimir o sofrimento que ainda hoje serve de proveito a uns poucos. Contudo, em todos estes avanços nos defrontamos com barreiras intransponíveis. A morte não é o único limite que barra nosso agir. Existem o embrutecimento e a dessensibilização. Há mutilações e vulnerações que são irreversíveis. A única maneira de ultrapassar tais limites é compartilhar a dor dos que sofrem, não abandoná-los à própria sorte e fazer com que seu clamor encontre eco.7

A revelação do Deus crucificado, que agora, exaltado, direciona seu poder a toda a sua criação (sofrimento de Cristo é sofrimento humano, é sofrimento da natureza), é percebida por nós, é anunciada a nós. “Nós” e os “sobreviventes” somos parte de um mesmo corpo glorioso. Talvez sejamos todos sobreviventes de um mundo que quer manter cravada a cruz como espelho de um martírio e sofrimento que parece não ter fim, que parece dignificar o ser humano somente no céu.

Ascensão, porém, nos diz que o poder de Deus retira do mundo o sofrimento. A visão do Cristo crucificado desaparece porque a igreja é o corpo daqueles que resistem à pregação da morte, daqueles que anunciam a sobrevivência da vida ressuscitada em Cristo e do poder que se desloca “para o céu” e enche seus discípulos de alegria, porque mostra um novo caminho, um novo “poder”, conferido às “testemunhas da vida”, aos sobreviventes que insistem em escrever o evangelho de Jesus Cristo em suas vidas.

E ainda há sobreviventes.8

Notas:

1 Comblim, p.18.
2 Idem, p. 18s.
3 Idem, p. 23.
4 Idem, p. 37.
5 Pregação de Oscar Romero em 07 de maio de 1978.
6 Dorothee Sölle, p. 132.
7 Idem, p.183.
8 Agradeço a contribuição da pastora Vânia Moreira Klen na discussão e finalização deste auxílio homilético.


Bibliografia

COMBLIN, José. Epístola aos Efésios. Comentário Bíblico NT. Vozes, Metodista e Sinodal, 1987. 111p.
SÖLLE, Dorothee. Sofrimento. Petrópolis: Vozes, 1996. 189p.
PREGAÇÕES diversas de D. Oscar Romero. In: Servicio Bíblico LatinoAmericano. Servicio Bíblico Koinonia. www.servicioskoinonia.org