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Prédica: João 6.1-15
Leituras: Êxodo 24.3-11 e Efésios 4.1-7,11-16
Autor: Dulce Engster
Data Litúrgica: 10º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 31/07/1994
Proclamar Libertação – Volume: XIX


1. Introdução

Alguns aspectos particulares do texto de João em relação aos paralelos de Mt 14.13-21, Mc 6.30-44, Lc 9.10-17:

— Em nenhum dos outros aparece a questão da proximidade da festa da Páscoa dos judeus. A mesma só é mencionada por João.
— Em João, o pão e os peixes estão nas mãos de uma criança (Bíblia de Jerusalém diz menino; paidárion também pode ser traduzido como jovem rapaz ou jovem escravo.).
— João é o único evangelista que diz que o pão é de cevada.
— Apenas no Evangelho de João, Jesus dá a ordem aos discípulos para recolherem o excedente de alimentos — para que nada se perca.
— João acrescenta que o povo que havia presenciado e usufruído da multiplicação dos pães queria buscá-lo para fazê-lo rei. Jesus, porém, se retirou sozinho para a montanha.

2. Meditando

Nada se compara ao sabor do pão partilhado” diz um pequeno cartaz, que afixei na janela do meu escritório. Pão é alimento vital para todo ser humano. Uma enfermeira disse, certa vez, que pão pode ser dado a todo doente, não importando qual a sua doença. Pão não tem contra-indicação.

Quando eu era criança, tínhamos um forno fora de casa, no pátio, onde era assado o pão. Quando minha mãe colocava o pão no forno quente e a massa começava a assar, saía do forno um cheirinho gostoso, que parecia vir impregnado de um ar de festa. O cheiro do pão fresquinho nos contagiava de alegria. Imagina, então, quando se abria o forno e de lá se tiravam os seis pães moreninhos, gordinhos e com aquele cheirinho convidativo! Quando o pão faltava, a tranquilidade da família estava ameaçada.

Morei certo tempo com uma mulher jovem, agricultora, que perdera seu marido e ficara com três crianças pequenas. Quando essas ficavam tristes, abatidas pela falta do pai, a mãe fazia, com toda a sua sensibilidade e carinho, um pão gostoso, recheado com um pouco de doce de leite. Era pão que consolava, que trazia comunhão e fortalecia. Jesus tinha aparentemente essa sensibilidade de mãe. Ele sabia que um bocado de pão possibilita a comunhão e a fraternidade.

No Novo Testamento encontramos vários textos que apontam para a importância do pão para a vida e a vivência das pessoas. Jesus tem uma relação muito estreita com o pão, a ponto de se autodenominar de pão da vida.

Pão para Jesus é sempre pão repartido e, por isso mesmo, pão para todos. É pão nosso! O fato de a multiplicação dos pães ser o tema que mais se repete nos Evangelhos indica a sua importância. Os Evangelhos apresentam esse tema ao todo seis vezes (Mc 6.30-44; Mt 14.13-21; Lc 9.10-17; Jo 6.1-15; Mc 8.1-10; Mt 15.32-39). Verdade é que se trata de duas tradições diferentes. Uma delas nos conta que Jesus, tomando cinco pães e dois peixes, alimenta cinco mil pessoas, e depois ainda foram recolhidos doze cestos de restos. A outra tradição diz que Jesus, tendo à disposição sete pães e alguns peixinhos, alimentou quatro mil pessoas e ainda mandou recolher sete cestos de restos.

Pelas semelhanças que as duas narrativas apresentam, pode-se dizer que ambas devem ter sua origem num mesmo evento da prática de Jesus. Aliás, toda a prática de Jesus tem um acento muito forte em relação às coisas essenciais da vida: pão, água, vinho, luz… Para Jesus, a vida só era VIDA, só era abundante, na presença desses elementos. Ele mesmo se denomina de: pão da vida; água viva; luz do mundo. Com isso Jesus também quer ressaltar a importância desses elementos para a vida e a convivência humana. Não há vida abundante onde faltam pão e Jesus. Não há também lei que possa justificar um dia sequer de fome. Para Jesus, a existência da fome e de esfomeados/as era algo tão estranho e contrário ao Reino de Deus, que nada podia justificar a sua existência ou validade, nem mesmo lei religiosa (Lc 6.1-15). Necessidade humana tem prioridade absoluta. Na oração que ele formulou e ensinou a orar, ele também colocou o pedido pelo pão antes mesmo do pedido por perdão. O pão antecede o perdão.

No Evangelho de João, o pão que alimenta a multidão está na mão de uma pessoa disposta a repartir. Crianças têm muita facilidade de dividir suas coisas, seus brinquedos, a merenda, a bala. Certamente também por isso Jesus diz que delas é o Reino dos Céus.

O pão que o menino traz é pão de cevada. Cevada é sinónimo de pão de pobre. Pão da escassez, que faz brotar o milagre da partilha. Certa vez, uma mulher muito idosa disse na OASE que o pai dela sempre falara que, no momento em que não mais se comesse pão preto (Kornbrot), quando o pão branco estaria nas mesas, não haveria mais paz no mundo. O pão branco é sinónimo de celeiro, de pão retido.

Jesus ensina a partilha do que é vital. Na Bíblia, a partilha do pão aparece sempre como bênção de Deus. O Evangelho de João ensina, com a cena da multiplicação dos pães, que não é preciso muito dinheiro para conseguir alimentos, comida para as pessoas. É preciso simplesmente ter disposição para repartir, para dar. Repartir entre todos o pouco ou o muito que cada um possui. Jesus propõe o modelo de uma nova sociedade, onde o comércio é substituído pelo dom e a posse, pela partilha. Mas é preciso formar a consciência e organizar as pessoas (é preciso sentar-se juntos e buscar saídas coletivas). Dando e repartindo, todos ficam satisfeitos e ainda sobra muito.

Pão é bênção. Mais do que nunca precisamos redescobrir e pregar isso. Pão partilhado é bênção partilhada. Nos cultos de Ação de Graças, costumávamos ter um momento de bênção das sementes. Cada família era motivada a trazer uma pequena porção de sementes, que eram colocadas numa peneira e trazidas ao altar pelas crianças. Era então feita uma oração de intercessão pela fertilidade dessas sementes e de todas aquelas que naquele ano seriam colocadas na terra, para que produzissem pão a fim de diminuir a fome em nosso mundo. Não o pão que dá poder, que faz distinção, que se reveste de majestade e se tranca nos depósitos. Mas o pão que dá energia, que coloca as pessoas de pé, que lhes devolve as faces rosadas. Pão que leva adiante, que ajuda a consciência… Aquela bênção carregava um significado todo especial, e a cada ano mais famílias traziam suas trouxinhas de sementes.

Depois da bênção, ninguém levava as suas sementes para plantar, mas oferecia-as a outra família, desejando que não lhe viesse a faltar o pão. Há que ensaiar alguma coisa em nossos cultos para que as pessoas comecem a ter uma relação diferente com as dádivas de nosso Deus, dádivas que o campo a cada ano insiste em cuspir para fora, como que insistindo em matar toda a fome desse mundo. Há que ensaiar algumas coisas em nossos cultos, e um bom momento é o culto de ação de graças, para que as pessoas voltem a ter uma relação menos mercantilista no tocante às dádivas de Deus. Que elas possam ver novamente um saco de feijão como sinônimo de um prato servido, saciando a fome, em vez de um maço de dinheiro ou uma simples nota que aufere poder.

É preciso redescobrir a graça e a misericórdia de Deus, que vêm transformai corações e mãos. Alguns símbolos e sinais que conseguimos trabalhar em culto falam muito mais do que discursos bem elaborados. Uma experiência que fiz ao tratar desse texto — multiplicação dos pães — foi levar um pequeno pão para o culto e conversai com a comunidade a respeito do poder transformador que pode estar nesse pão Quando se chegou à questão de quantos poderiam se saciar com esse pão, apareceu o bonito, o milagre, pois descobriram que, enquanto repartiam o pão, parecia que esse dobrava de tamanho, porque cada um/a que se servia se lembrava daqueles a quem o pão ainda não havia chegado e, assim, normalmente voltava ao altar um pedaço do pequeno pão.

3. Subsídios litúrgicos

Sugiro que um grupo de jovens faça a leitura, após a prédica, da seguinte poesia:

Mãos maravilhosas

de Lindolfo Weingärtner

Cinco mil foram saciados,
e, recolhendo os pedaços
que ficaram sobrando,
doze cestos encheram.
E tudo proveio
das mãos de um rapaz
que nada tinha
além de cinco pães
e dois peixinhos.

Que é que distingue o pregador (educador)
daquele humilde rapaz?
Sua ração — ele o traz:
cinco livros que compreendeu,
duas mensagens de que se inteirou:
Mas feito, que é para tantos?
Mal e mal bastará
para saciar a própria fome.
E mal avisado seria,
se por duzentos denários
quisesse aumentar provisões
que com esforço angariou,
julgando-se apto
a saciar multidões.
Esta é sua esperança:
Que passe às mãos de Jesus
os pães de cevada e os peixinhos que tem.
Não estás lembrado, irmão/a:
Um discípulo humilde,
alcançando seus pães a Jesus —
parcos pães da pobreza —
e Jesus estendeu as mãos, partindo o pão,
abençoando o dom da penúria, saciando a ti
e aos milhares que o cercavam?
Não te urgia o coração a louvá-lo, o Maravilhoso,
em meio à comunidade?
Não te urgia o coração a recolher os pedaços —
para que nada se perdesse
e para que todos os famintos recebessem de suas mãos
o alimento de que necessitam?
(Prática da Esperança, pp. 45-46)

Oração final: Louvor e graça a ti, ó Deus de misericórdias mil. Que em amor e tua bondade ergues nossas mãos caídas em gesto de oração. Tu queres nos comover diante de tanta alegria roubada, de tantos sonhos desfeitos, de tanto amor apagado. As dores desse mundo são tantas, Senhor. É fome de pão e fome de vida verdadeira, que estão tornando difíceis os tempos de tua criação. Há mães tentando alimentar suas crianças com leite parco que ainda verte de seus magros corpos. Há que se chorar, Senhor, diante das dores desse mundo, e são tantas! Há que se chorar pelos que ouvem o choro das crianças abandonadas, das crianças dos barracos improvisados dos acampamentos, e nada podem fazer, pois estão na mesma situação. Há que se chorar, também, pelos que fecham ouvidos e olhos para nada ouvir nem ver a miséria que assola milhões. Há que se chorar, ó Deus, por todos/as nós que guardamos o pão como garantia para amanhã. Há que se comover! Temos cinco pães e dois peixinhos! Há possibilidade de transformação! Não permite em nós a indiferença dura, a militância apática, os discursos que não movem mãos. Vem, Senhor, arranca de nós a dureza de coração e dá que com alegria e desprendimento sejamos pequenas fontes de água viva a transformar esse deserto. Guarda-nos de todo egoísmo e ganância. Ampara mãos que vacilam, abre bocas que calam e conduz pés paralisados. Dá fé, coragem e um grande amor. Não escondas de nós a tua face. Guarda-nos de todo mal e tentações. Queremos ser apenas teus filhos e tuas filhas amadas. Tu sempre serás para nós como um pai e uma mãe que zela e chora pelos seus. E tudo o mais, Senhor, e é tanto, queremos incluir na oração que em conjunto erguemos a ti: Pai Nosso…

Ao invés de ler o texto bíblico de João, assim como ele está na Bíblia, poder-se-ia pedir a uma orientadora do culto infantil ler a adaptação do texto:

O menino reparte o pão

Certa vez, havia na Palestina um menino que tinha o grande desejo de conhecer Jesus. Todas as pessoas falavam nesse homem. Contavam coisas maravilhosas a seu respeito: que ele falava de Deus, ensinava coisas bonitas e ajudava todos. Muitas pessoas sempre o seguiam.

— Como deve ser bonito escutá-lo e ver o que ele faz, pensava o menino. Um dia ainda o verei.

Certa manhã, uma notícia chegou aos ouvidos do menino: Jesus estava nas proximidades do Mar da Galiléia.

— Poxa, pensou o menino, se eu sair, poderei chegar lá ainda de manhã. É um trecho bem puxado, mas valerá a pena. Vou pedir licença aos pais.

Os pais, a princípio, não quiseram deixá-lo. Achavam o caminho muito longo e perigoso para um menino ir sozinho. Mas, vendo as lágrimas nos olhos do filho, a mãe disse:

— Está bem, meu filho, você pode ir. Mas espere um pouco que eu vou preparar um pequeno lanche para você levar.

Daí a pouco, lá se foi o menino pela estrada, saltitando e assobiando alegremente. No braço levava um pequeno cesto, onde sua mãe colocara cinco pãezinhos e dois peixes.

Ele andou muito, mas estava tão alegre, que nem sentiu o cansaço. Chegando perto do mar, pensou:

— E agora, como vou achar Jesus?

Mas não precisou procurar muito tempo. Logo viu uma grande multidão junto a um monte. E vinha chegando sempre mais gente. Ah! Lá estava Jesus parado, falando. O menino chegou tão perto quanto pôde e sentou-se sobre a grama. Escutou com bastante atenção tudo o que Jesus dizia.

Jesus falou durante muito tempo, e ninguém notou que já passava do meio-dia.

De repente, um dos homens que estava perto de Jesus levantou-se e disse-lhe algo no ouvido. O menino viu como os dois falaram durante algum tempo, apon¬tando para a multidão. Em seguida, os discípulos de Jesus começaram a passar no meio da multidão, procurando e perguntando alguma coisa.

— O que será que eles estão procurando?, pensou o menino. Pouco depois, um dos homens aproximou-se do menino e perguntou:

— O que você tem neste cestinho, meu menino? E a resposta foi imediata:

— Cinco pãezinhos e dois peixes, meu senhor. É o lanche que minha mãe preparou. O discípulo não disse nada. Virou-se e foi falar com seu Mestre. Mas logo voltou e falou com o menino:

— Escute, menino, você poderia dar-me esses alimentos?

— Pois não, senhor!, respondeu o menino prontamente. Talvez vão dar esse lanche para Jesus se alimentar, pensou o menino. Não faz mal. Do mesmo não tenho fome. Jesus deve estar com mais fome do que eu.

Mas eis que se fez silêncio completo. Jesus tomou os pães e os peixes nas mãos. Então ergueu os olhos para os céus e agradeceu a Deus por essa dádiva. Depois mandou que todos sentassem na grama, em grupos.

O menino esfregou os olhos para ver se não estava sonhando. Jesus começou a repartir os pãezinhos e os peixes em muitos pedaços, e os discípulos os distribuíam entre todos. O menino também ganhou a sua parte. Todos comeram até ficar satisfeitos, e ainda sobraram muitos pedaços.

Todos os que estavam ali ficaram muito admirados. Eles sabiam que este Jesus era o Filho de Deus.

Aos poucos começou a escurecer, e a multidão foi se afastando, cada qual para o seu lado. No fim, só ficou o menino. Ele viu como os discípulos entraram num barco e foram embora. Jesus também afastou-se e foi para o monte próximo. (Baseado em João 6.1-15)