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Prédica: Lucas 2.1-20
Autor: Baldur van Kaick
Data Litúrgica: Natal
Data da Pregação: 25/12/1978
Proclamar Libertação – Volume: III

I – Considerações exegéticas

Se usarmos como critério para desmembramento do texto a mudança de personagens atuantes, teremos a seguinte estrutura interna do texto:

Vv. 1-7: Introdução e atuação de José e Maria; o nas-cimento;

vv.8-14: O aparecimento dos anjos; o anúncio;

vv.15-20: Os pastores; as consequências.

Esta estrutura interna é confirmada pela mudança de palco que ocorre de uma cena para a outra. A caminhada de José e Maria nos vv.1-7 leva a Belém; na cena dos anjos a ação transcorre em um lugar próximo. Com o v.15 o palco volta a ser o lugar do nascimento. Existe por isso uma unidade interna no texto Lc 2.1-20, o que justifica o uso do texto todo como texto de prédica.

1. O nascimento no lugar da promessa vv.1-7)

Conforme vários autores, atrás da perícope Lc 2.1-20 encontra-se uma antiga narrativa do nascimento de Jesus, que era contada nas primeiras comunidades cristas e que existia independentemente de outras narrativas, como por exemplo Lc 1.26-38 – a predição do nascimento a Maria – e Mt 2.1-12 – a visita dos magos em Belém. Lucas, ao escrever o seu evangelho, fez uso desta narrativa, fazendo-lhe, ao incluí-la no seu evangelho, alguns acréscimos e com isso reinterpretando-a para o seu tempo. A dificuldade consiste em reconstruir a antiga narrativa. Tem-se por certo que os vv.1-5 são em parte redação de Lucas. Também o v.19, um motivo que se repete em Lucas, é considerado de redação lucânica, bem como parte do v. 11, no qual estranha um pouco o aglomerado de títulos que o recém-nascido recebe. De modo que restariam os vv. 6-7,8-14,15-18,20, que pertenceriam a antiga narrativa.


Nós temos que contar, por isso, com o fato já narrado nas primeiras comunidades cristãsera narrado o nascimento de Jesus, apesar de sua cruz, e que Lucas conhecia esta antiga narrativa, usando-a ao escrever o seu evangelho. (É que os primeiros cristãos haviam feito na ressurreição de Jesus a experiência de que um outro poder se havia contraposto ao poder da morte, tornando com isso vitorioso o que Jesus havia trazido. Sem esta experiência pascal não se pode pensar a narrativa do nascimento, e é a partir desta experiência que se começou a narrar seu nascimento.)

Na análise dos vv.1-7 temos que diferenciar, portanto, em primeiro lugar entre os vv. 1-5, em grande parte de redação lucânica, e os vv.6-7, que integram a antiga narrativa.

O ponto alto dos vv.1-7 está sem dúvida nos vv.6-7, e a ênfase toda recai naquele EKEI (ali) -estando eles ali (v.6). Para os ouvintes da antiga narrativa está claro: Maria e José chegaram ao lugar da promessa, onde – conforme Mq 5.2 – nasceria o Messias. Por isso, sem ser dito expressamente nada ainda, os ouvintes compreendem: este recém-nascido é o Messias!

Na narrativa não é por isso importante onde estava localizada a manjedoura, se Maria e José estavam cansados, – assim a piedade cristã de todos os tempos tem dramatizado o acontecimento -, mas somente que chegaram ao local da promessa. Mais decisivo também do que o enfaixar (v.7), que no v.16 não é mais lembrado, é a manjedoura. Pois nela se encontra o Messias prometido. E a pergunta que surge para os ouvintes é: o Messias em uma manjedoura?

Os vv.1-5, em grande parte de autoria do próprio Lucas, têm um papel bem especial neste contexto.

Não nos interessa verificar aqui se realmente ocorreu um censo na época do nascimento de Jesus. A verdade é que muitas observações levam a duvidar disso. Nada se sabe, por exemplo, de um censo, sob Augusto, que abrangesse todo o império; poucas são as notícias que indicam que por ocasião de um censo era necessário deslocar-se cada um para a sua cidade natal; além disso um censo sob Quirino só ocorreu por volta de 6 d.C.

A intenção de Lucas, citando um decreto de César Augusto como motivo da ida de José e Maria a Belém, no entanto, é clara: o menino que está nascendo em Belém, não está nascendo em um recanto qualquer (At 26.26), mas dentro do império. O seu nascimento não ocorre dentro de um povo particular, mas no espaço atingível pelos decretos do Imperador. E isto então também significa: O menino nascido não é só o Salvador e Messias de Israel, mas também o Salvador e por isso Senhor de todo o povo que vive no imenso império. Schürmann interpreta: Jesus não é só aquele que é esperado e profeticamente prometido no passado israelita, ele é também aquele que cumpre os anseios humanos conscientes e inconscientes no amplo mundo dos povos (Schürmann, p.l02). E com isso o Messias, narrado na antiga narrativa como Salvador de Israel, ganha significado universal. O esperado por Israel é também aquele de quem os povos necessitam, por quem os povos esperam. E por este motivo Lucas acrescenta ao seu evangelho o livro de Atos, onde mostra a mensagem do evangelho sendo levada aos povos.

Importante é refletirmos nos vv.1-7,portanto, sobre a ênfase que a narrativa coloca no lugar do nascimento, sem dúvida para mostrar que haviam chegado ao lugar da promessa, onde nasceria o Messias, e sobre o contexto universal dentro do qual Lucas localiza o nascimento do recém-nascido, como que para desde, o início já deixar que ele é aquele que é a resposta aos anseios do
mundo.

2. Desta vida vem salvação (vv. 8-14)

Com o v. 8 a ação se transfere para um lugar próximo de Belém. Na interpretação do v. 8 sempre foi acentuado que os pastores eram despre¬zados e marginalizados – e como tais foram os primeiros ouvintes da boa nova. Eles, e não Herodes ou o Sumo-Sacerdote foram escolhidos como primeiros endereçados do anúncio.

Essa interpretação não é necessária, no entanto. O Antigo Testamento geralmente fala de maneira positiva dos pastores – Davi fora pastor -, e também o Novo Testamento (cf. Mc 6.34ss; Mc 14.27; Mt 18.12; Lc 15.4; 19.10; At 20.28). O surgimento de pastores na cena é antes bem natural em se tratando de um lugar perto de Belém, que sempre foi pensado povoado por pastores e seus rebanhos. Davi, por exemplo, apascentara perto de Belém os rebanhos de seu pai (l Sm 17.15,28,34ss)e lá fora ungido para ser rei (l Sm 16.1-13; Sl 78.70). O aparecimento de pastores na cena vem mais a reforçar por isso que se trata do lugar da promessa, do que enfatizar que os primeiros ouvintes da boa nova eram pessoas desprezadas.

A tradução eu vos anuncio grande alegria (v.10) é melhor do que a tradução oferecida por Almeida. Grande alegria lembra a alegria messiânica (cf. Is 9.3; 52.7ss). A alegria messiânica, colocada em perspectiva para o povo (cf. o futuro será no v.10), para os pastores já inicia agora.

O motivo da alegria e o nascimento de um salvador. SOTÉR – salvador – no texto grego está sem o artigo. Talvez deparemos aqui com a camada mais antiga do anúncio no v. 11 (cf. o aglomerado de títulos). No AT, juízes e outros auxiliadores do povo enviados por Deus eram designados de salvadores. Cf. Jz 3.9-15; 12.3; l Sm 10.1,27 na tradução da Septuaginta. Terá sido Jesus visto inicialmente a semelhança destes salvadores enviados por Deus para libertar o seu povo da opressão dos inimigos a devolver a liberdade a Israel(cf. Lc l.71,74)? Então com Jesus teria entrado no mundo aquele que não dá aos poderosos a última palavra. Aquele que se contrapõe aos que agem com violência e com força, e traz para os povos vida em liberdade e sem medo. Não é verdade que o sofrimento sob a opressão é a última coisa que pode ser dita no mundo!

Mas para Lucas a salvação trazida por este Salvador já inclui também a remissão dos pecados (cf. Lc l.77; At 5.31).

O título seguinte, CHRISTOS, provavelmente acréscimo posterior, mostra que o Salvador nascido não é outro do que o Messias esperado por Israel. E para os ouvintes helenistas, que não esperavam um Messias, ele é apresentado como o KYRIOS, o Senhor. De modo que com esta vida entrou no mundo o Salvador messiânico esperado pelos judeus e o Senhor que é a resposta aos anseios dos gentios, aquele que luta contra a desesperança e possibilita vida libertada e sem medo. Com ele veio a salvação messiânica esperada para os tempos finais!

A proclamação da boca de um 'coral celestial’ (v.14) revela as primeiras consequências do tempo de salvação iniciado.

Deus, agindo de maneira salvadora, manifestou a sua glória. Esta glória (DOXA) não passou despercebida aos anjos, que agora dão glória a Deus. A proclamação dos anjos não é em primeiro lugar um convite aos pastores para glorificar a Deus, mas é revelação do que está acontecendo nas alturas por parte dos anjos a Deus: Deus est sendo glorificado!

Do mesmo modo na segunda parte da proclamação não é expresso o desejo de que agora deveria haver paz entre os homens, mas é revelado e proclamado o que entre os homens, na terra, a partir do agir salvador de Deus: paz.

O acréscimo a quem ele quer bem indica que esta paz não existe para o povo (v.10), mas para os escolhidos de Deus, tanto judeus como gentios, e isto significa: para os eleitos, os “santos, ou seja: na comunidade cristã.

E assim com a vinda do Salvador messiânico inicia para a comunidade uma nova existência. É-lhe tirado o medo, e em vez disso lhe é dado alegria e paz. Em meio a um mundo em que existe opressão, poderes geram vítimas e a lei do mais forte prevalece, ela sabe de um poder que não dá às forças negativas a palavra final, mas torna vitoriosa a vida em liberdade e sem medo, a vida também perdoada. A comunidade vive entre o cumprimento total da promessa de alegria e paz para todos e o começo do cumprimento. Ela vive entre os tempos (Gollwitzer).

Já o v.12 lembra: é através da manjedoura que o Salvador será reconhecido entre as outras crianças em Belém. E, no entanto, que paradoxo: o Salvador e Senhor do mundo em uma manjedoura!

3. As consequências (vv.15-20)

Com o v. 15 o palco dos acontecimentos muda novamente para Belém. Os pastores partem e encontram o recém-nascido na manjedoura. Não é mencionado mais que ele estava envolto em faixas.

Agora inicia o dizer adiante daquilo que lhes fora anunciado sobre Jesus. É a primeira consequência do ouvir. E o que lhes da o direito de dizer adiante o que ouviram e a vida daquele que estava deitado na manjedoura.

A notícia dos pastores causa admiração (v.18). A admiração mostra que o que é comunicado é significativo para os ouvintes. No v.19 não se reflete mais que Maria já tivera conhecimento de tudo, conforme Lc 1.31-33,42-45,46-55.

A segunda consequência da vinda do Salvador é o louvor a Deus. Os pastores, que representam a comunidade, dão glória a Deus pelo seu agir salvador. Eles antecipam o louvor que haverá quando a alegria será para todo o povo.

A parte final da narrativa quer convidar os ouvintes para as primeiras consequências do nascimento do Salvador. As consequências iniciam com o dizer adiante e o louvar a Deus.

II – Pensamentos para a prédica

O que anunciar a partir deste texto? O que dizer na prédica sobre a ocasião?

Na prédica eu destacaria os seguintes aspectos :

1. Desde que aconteceu este nascimento,nasceram muitas outras crianças. Jesus não é a única criança que nasceu em condições tão humildes. A história mostra que nascimentos semelhantes se repetiram e repetem diariamente, e muitas crianças nasceram e nascem em condições bem mais pobres e têm bem menos chances de vida do que Jesus. De mil crianças nascidas no Brasil, só 452 atingem o 5º. ano de idade. As outras 548 morrem antes (Correio do Povo 19-4-1977). E, no entanto, a história do nascimentodeste um é narrada ao lado de tantos outros nascimentos que logo são esquecidos. Por quê? É que os primeiros cristãos fizeram a experiência de que com esta vida entrou no mundo um poder, que tudo mudou. Apesar de sua morte na cruz, anos depois. Na ressurreição eles experimentaram que com esta vida entrou no mundo um poder que se contrapôs ao poder da morte e tirou a morte e aos seus instrumentos o direito de ter a última palavra. Por isso o início desta vida foi narrado. Por isso contaram que o céu se abriu para saudar esta vida. Com a vinda desta vida tudo mudou!


2. O mundo, no entanto, diz: desde a sua vinda nada mudou! Eu escrevo isto em uma época em que os jornais noticiam que o terrorismo está aumentando. No terrorismo a morte geralmente tem a última palavra. Há os que executam os outros e os que são executados, e os executores de ontem são as vítimas de amanhã. As estatísticas, por outro lado, mostram que a pobreza aumenta no mundo de maneira assustadora. Guimarães Rosa, em seu livro Grande Sertão: Veredas, descreve um nascimento em um rancho: Nem rancho, só um papiri à-toa. Dentro do rancho uma mulher: Mulher tão precisada: pobre que não teria o com que para uma caixa-de-fósforo. E a mulher a reprimir o nascimento do filho, porque sabe que vai nascer desprotegido.

Que mundo é este, em que existem carrascos e vítimas. Em que uma mulher reprime o filho, por saber que vai nascer desprotegido! E ao lado deste podemos colocar outros exemplos. O que mudou com a vinda de Cristo ao mundo? Continua a haver os carrascos e as vítimas, os que dominam e os que choram por viverem desprotegidos. Os que têm futuro e os que não vêem futuro para os seus filhos. Basta olhar ao nosso redor. E por isso as vozes dos que dizem que não vale a pena lutar, que tudo não tem mesmo sentido, que o melhor é não se interessar mesmo por tudo isso.

Hoje vos nasceu o Salvador, isto significa: Com a vida de Jesus entrou no mundo aquele que não dá aos carrascos a última palavra, que não dá a vitória às forças, que criam vítimas e medo, mas que traz vida sem medo, vida protegida, vida libertada e com futuro. Hoje vos nasceu o Salvador, isto quer dizer: A vinda de Jesus mudou tudo e mudará tudo. Desta vida vem salvação para os povos e para cada um. O mundo diz: nada mudou! A fé diz: tudo mudou e mudará! Não é verdade que tudo continua na mesma.

3. Existe um poder, que é a causa de to dos esses males, de todas as injustiças, de toda a violência, e por isso a fonte de todas as angústias. Um poder que separa um do outro e que nos separa de Deus. Existe uma força que torna a vida insuportável. E não é assim que nós tentamos melhorar, mudar a nossa vida e a vida ao nosso redor?, esse poder, no entanto, nos derruba e derruba outros. Esse poder é o pecado.

Em vista desse poder nos todos nos tornamos pequenos. Pois não dá mais para dizer que os outros é que são sempre os que são egoístas e cometem erros e que os outros é que têm sempre os pensamentos de mal e não de bem. Nós todos temos que dizer que nós todos somos culpados do mal que há no mundo, pois esse poder, o pecado, existe em cada um de nós. Esse poder nos transforma em seus instrumentos e nos torna culpados. Culpados da situação do mundo! Nos todos colaboramos para que o mundo seja assim.

Hoje vos nasceu o Salvador, isto significa: Através de Cristo entrou no mundo aquele que não se compraz com a nossa situação, que se põe do nosso lado e nos perdoa e que e tão poderoso que nos puxa para dentro de uma nova maneira de viver e agir. Não estamos ainda lá, aonde esta vida nos quer levar (Gollwitzer), mas esta vida já nos agarrou, já nos acompanha, quer nos levar para dentro de uma vida onde e possível comunhão com Deus e entre nós. Onde não é preciso ser um o carrasco do outro.

4. Ver a vida assim, isto tira o medo, e dá alegria. Isto não deixa continuar pessimista, como se nada tivesse acontecido e nada pudéssemos fazer. A vida de Cristo nos acompanha, e por isso existe esperança para os povos e para cada um de nós. O mundo diz: nada mudou. A fé diz: coma entrada de Cristo no mundo, tudo mudou. Tudo mudará. E por isso Jesus é denominado de Salvador, de Cristo, de Senhor. Por isso não há títulos suficientes para lhe dar. Por isso é narrado que ele nasceu em Belém, o lugar da promessa, e ao mesmo tempo dentro do império romano, como uma boa notícia para todos os homens. Por isso é narrado que o céu se abriu quando de seu nascimento e os anjos deram glória a Deus.

5. No entanto: Viver a partir da vida deste um também leva a consequência. A Igreja Antiga festejava o dia 26 de dezembro como o dia do mártir Estêvão. Viver a partir de Jesus não é nada fácil , pode incluir o martírio. E no Brasil isto não é mais desconhecido. Viver a partir de Jesus, leva à luta pela justiça, pela verdade. Compromete com a vida, com o amor, com a liberdade. E apontar para estas consequências no Natal em nem um caso prejudica os festejos, mas lhes dá um sentido mais profundo e lhes tira o sentimentalismo, pois convida para uma vida de luta contra as forças negativas, que destroem a vida. Na prédica de Natal, o pregador, por isso, não deverá criticar, polemizar contra costumes e usos natalinos, mas mostrar que eles são expressão de algo mais profundo e dar liberdade de o ouvinte escolher sua maneira de festejar e de distanciar-se de formas não condizentes. Onde o ouvinte foi conduzido a grande alegria, as alegrias pequenas também são permitidas.

O nosso texto, no entanto, diz que as primeiras consequências do evento que tudo mudou são o dizer adiante e o louvar a Deus.

6. Viver a partir de Cristo, também dá paz. Não se trata de uma paz universal, mas de uma paz que começa na comunidade. Entre os homens a quem Deus quer bem, e isto significa; entre os cristãos, os eleitos. Uma paz em meio ao servir. Uma paz que recebem os escolhidos e que os fortifica para viver as consequências da salvação.

7. Guimarães Rosa, no final da cena do nascimento no rancho deixa Riobaldo dizer: Minha Senhora Dona: um menino nasceu – o mundo tornou a começar!…

Com cada nascimento o mundo torna a começar. Com o nascimento deste um, que nasceu em Belém, no entanto, tudo mudou e mudará. Mas para afirmar isso a fé só tem atrás de si o que os pastores também tiveram: a vida daquele que estava deitado em uma manjedoura e depois não tinha onde reclinar a cabeça. Esta é a situação da fé no mundo. Por isso: o que vale é – escutar – e começar a viver a partir da vida deste um. Fora isso, nada e ninguém nos convencerá. Mas onde alguém procurar viver a partir deste um, ele entenderá o que é salvação e não ficara sem alegria e paz.

Da mulher – que me chamaram: ela não estava conseguindo botar seu filho no mundo. E era noite de luar, essa mulher assistindo num pobre rancho. Nem rancho, só um papiri à-toa. Eu fui. Abri, destapei a porta – que era simples encostada, pois que tinha porta; só não alembro se era um couro de boi ou um tranço de buriti. Entrei no olho da casa, lua me esperou lá fora. Mulher tão precisada: pobre que não teria o com que para uma caixa-de-fósforo. E ali era um povoado só de papudos e pernósticos. A mulher me viu, da esteira em que estava se jazendo, no pouco chão, olhos dela alumiaram de pavores. Eu tirei da algibeira uma cédula de dinheiro, e falei: – 'Toma, filha de Cristo, senhora dona: compra um agasalho para esse que vai nascer defendido e são, e que deve de se chamar Riobaldo… ' Digo ao senhor: e foi menino nascendo. Com as lágrimas nos olhos, aquela mulher rebeijou minha mão… Alto eu disse, no me despedir: – 'Minha Senhora Dona: um menino nasceu – o mundo tornou a começar!… ' – e saí para as luas.

(Grande Sertão: Veredas, p. 353)

III – Bibliografia

– GOLLWITZER, Helmut. Erfahrungen mit Weihnachten. Kaiser Traktate 8. Chr. Kaiser, München,1972.
– ROSA, João Guimarães, Grande Sertão: Veredas. 7a ed.. José Olympio, Rio, 1970.
– SCHÜRMANN,Heinz. Das Lukasevangelium. Erster Teil. Herder,Freiburg-Basel-Wien,1969.