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Prédica: Lucas 1.46-55
Autor: Harald Malschitzky
Data Litúrgica: 4º Domingo de Advento
Data da Pregação: 21/12/1980
Proclamar Libertação – Volume: V

I – O texto

A tradução de Almeida é bastante fiel ao original e poderá ser usada perfeitamente. Em contrapartida a Bíblia na Linguagem de Hoje deixa algo a desejar quando, no v.46, traduz: Meu coração agradece ao Senhor, pois o original é muito mais incisivo e vai muito além do mero agradecimento. A tradução correta deve ser: Meu coração engrandece o Senhor. O lembrar-se no v.48 também é mais fraco do que o olhar, contemplar do original. No v. 49 a tradução … fez grandes coisas por mim é ambígua e pode originar uma interpretação incorreta, pois no original se lê em mim, ou, então, através de mim, isto é: usando-me com instrumento seu. No v. 52 o original é muito mais abrangente, derruba poderosos de seus tronos. Parece que não se trata apenas de reis.

Estes reparos se me afiguram importantes para que não aconteçam desvios fundamentais na compreensão do texto.

O texto, como Lucas no-lo transmite, é um cântico que obedece a certo ritmo e a uma métrica. Existe toda uma infinidade de teses sobre a procedência deste cântico. É muito provável que Lucas o assumiu e pode ser até que ele tenha incluído o v. 48 para, desta forma, deixar claro que se trata da resposta de Maria às palavras de Elisabete (Isabel, na versão de Almeida). Independentemente destes detalhes, temos diante de nós um cântico, um salmo, que obedece a um tema, qual seja, a ação de Deus na história, a história do Deus que se compadece, que é solidário justa e especialmente com os humildes. O cântico pode ser dividido em quatro estrofes: l – vv. 46b-48; II – vv. 49-50; III – w. 51-53; IV – vv. 54-55 (Krusche, p.25), esquema este que procuraremos manter adiante.

II – Excurso: Maria

Nos meios evangélicos grassa uma certa alergia, quando não repulsa, em relação à Maria. Basta conferir os volumes de prédicas a que se tem acesso e mesmo volumes de exegeses e meditações. O Magnificat (Cântico de Maria) aparece poucas vezes e, quando aparece, a pessoa de Maria é deixada tanto quanto de lado. Aliás, o mesmo fenômeno pode ser constatado nas mais diversas explicações existentes do 2o Artigo do Credo Apostólico.

Sem sombra de dúvida esta atitude nossa está arraigada em uma história de mais de 450 anos e se transformou em um círculo vicioso nas relações católico-evangélicas. Enquanto os primeiros acentuam sempre mais o papel de Maria, os segundos evitam citar-lhe ao menos o nome (Schütz), p.9). Desta maneira os evangélicos acabaram sobrepondo seus ressentimentos e preconceitos à própria mensagem do evangelho. Nós, protestantes, pensamos muito pouco em Maria. (Voigt, p.33) Sobretudo dentro do esforço ecuménico de nossos dias, deveríamos partir realmente do testemunho do evangelho, deixando de lado nossas alergias e nossos preconceitos. Os primeiros cristãos usaram o Magnificat de sã consciência em suas liturgias. E o reformador Lutero fala com muito respeito de Maria. Seria barato e simples demais alegarmos, neste caso, que isso ainda se deve à sua procedência e ao seu estudo em seminários católicos de então. Ora, toda a sua procedência e todo o seu estudo não o impediram de ver com clareza cristalina aquilo que, segundo o seu reconhecimento, divergia da mensagem bíblica. Se é que damos valor a um diálogo ecuménico honesto, não podemos ser arbitrários na leitura da Bíblia, deixando que nossos conceitos e preconceitos estejam acima do testemunho bíblico, por mais experiência histórica que haja por detrás.

Se partirmos do Magnificat e seu contexto, fica claro que a mariologia é legítima como um aspecto da cristologia (Voigt, p. 33), pois o Cristo vem a nós em alguma coisa: na palavra, no batismo, nos elementos da Santa Ceia, de outra forma na Igreja e, aqui, no ventre de sua mãe (Voigt, ibidem). Isso nos deveria encorajar a ver com mais objetividade. E neste contexto seria muito importante começar com a leitura da interpretação que Lutero dá ao Magnificat.

III – Exegese

Vv. 46-48: Embora o v. 46a não faça parte do cântico em si, não pode ser ignorado, pois é ele que indica o lugar vivência! dentro do Evangelho de Lucas: não é qualquer pessoa que se vale dele para engrandecer a Deus, mas sim Maria, mãe de Jesus. Engrandecendo ao Senhor, Deus de Israel, ela confronta todas as aclamações usadas em relação aos deuses nacionais da época, com uma aclamação ao Deus vivo. Desta forma, ela destrona os deuses e põe em xeque os seus seguidores. O Deus de Israel fez grandes coisas , seu nome é notório. Por detrás do testemunho de Maria está toda uma experiência pessoal com este Deus. Todo o meu ser, todas as potências de minha alma estremecem de júbilo porque posso louvar a Deus e dizer-lhe todo o meu amor. Eu não posso deixar de elevar os meus louvores até ao trono de Deus e sinto-me como que fora de mim mesma de tão extasiada que estou. (Lutero, p.25) Para Maria Deus não é apenas aquele Deus que a maioria acredita que existe, mas sim um Deus que se tornou eminentemente pessoal, pois ele olhou para a sua humildade. Todavia é necessário alertar logo para o fato de que Maria não se valeu desta humildade para argumentar diante de Deus. Deus, na sua soberania, optou por uma humilde que fazia parte do resto oprimido do povo de Israel. Com isso Deus tomou partido ao lado dos humildes. Já aqui começa a transparecer o que, logo a seguir, é expresso com toda clareza: Deus provoca uma reviravolta na escala de valores dos homens. Ele escolhe uma humilde serva, quando, na realidade, poderia ter optado por qualquer jovem da alta sociedade de então. Por isso todos bendizem Maria, pois nela aconteceu primeiro aquilo do que vivemos (Voigt p.36). Maria, por sua vez, está pasmada, embasbacada, diante destes feitos de Deus. Nem lhe passou pela cabeça usar sua humildade como argumento!

Vv. 49-50: O Deus cuja ação se espelha na história do povo de Israel, continua agindo na história concreta, optando por uma humilde, para que ela seja instrumento dos grandes feitos de Deus. O que Deus fez em relação à Maria não representa excecâo, mas é uma característica sua e a partir disso ele escolheu Maria para uma determinada tarefa. Esta é a sua maneira de agir de geração em geração.

É interessante o desenrolar do cântico: Maria engrandece a Deus porque ela, pessoalmente, foi alvo do seu amor e da sua condescendência. Todavia, ela não o retém para si, ela não passa a orgulhar-se farisaicamente, mas vê o acontecido dentro de um todo do agir de Deus. A sua escolha a impele a engrandecer as obras que Deus efetuou em benefício da humanidade inteira (Lutero, p.66).

Vv. 51-53: Erguendo Maria de sua humildade e transformando-a no instrumento de sua ação salvífica, (Deus) iniciou uma inversão escatológica do status quo, uma inversão de todos os valores, o ataque de sua poderosa misericórdia ao status quo, aparentemente tão estável, do orgulho humano; (o ataque) ao poder político e económico autocrático e impiedoso. (Krusche, p.27) É Importante notar que Deus não derruba os tronos, mas sim aqueles que estão em cima deles, porque usam o seu poder de maneira egoísta e impiedosa. Enquanto o mundo for mundo é imperioso que haja poderes públicos, governantes, soberanos, tronos. Mas que a maldade e a impiedade se instalem e se valham do poder que têm na mão para oprimir os homens de bem com um regime de injustiças e de violências; que se comprazam com este estado de coisas e só pensem em sua promoção pessoal de glórias, ao invés de fazer uso de suas prerrogativas para o triunfo da justiça – eis abusos que Deus não toleraria por muito tempo. (Lutero, p.85) Não se trata, porém, de derrubar os poderosos para colocar os humildes em seu lugar; não se trata de mudar apenas os personagens, enquanto que as injustiças e espoliações continuam no mesmo (a exemplo do Ira!); e também não se trata de uma alegria sádica, porque Deus derruba os poderosos e deixa os ricos de mãos vazias. A inversão de valores vai além e, numa visão escatológica, se antevê um tempo em que não mais haverá poderosos. Deus levanta do pó, da miséria, da pobreza, isto é, ele valoriza justamente o que, aos olhos da sociedade, aos olhos do status quo, não tem valor, porque nossa escala de valores tem como critérios a produção e a posse de bens. Com o filho de Maria, Deus já iniciou um novo céu e uma nova terra; o filho que haverá de vir mexe justamente no cerne do ser humano, lá onde se arquiteta o orgulho com todas as suas consequências. Por tudo isso, os que são aquinhoados com a misericórdia de Deus – como Maria – não poderão calar e fazer de conta que nada mudou nem mudará. Os humildes que são levantados do pó precisam falar, proclamar que Deus subverte e inverte as ordens estabelecidas.

Vv. 54-55: A ação de Deus em relação à Maria é o início de algo novo. Ao mesmo tempo, porém, está dentro da ação salvífica de Deus experimentada pelo povo veterotestamentário. Poderíamos dizer que aqui Deus está cumprindo as suas promessas feitas ao povo de Deus. Mas o cumprimento dessas promessas é alargado, é tornado abrangente ao mundo que inclui e não exclui Israel (infelizmente, muitas vezes o excluir e condenar Israel fez e faz parte de um perigoso orgulho cristão). Deus mantém a sua palavra dada a Abraão, Isaque e Jacó, e Deus haverá de manter a sua palavra, pois esta palavra, este verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade (Jo 1.14a).

IV – Meditação

A história da Igreja nos mostra que esta muitas vezes não tomou a sério o seu Deus, que inverte a nossa escala de valores. Ela, a Igreja, sempre de novo procurou compactuar, ela sempre de novo foi conivente com os poderosos, para garantir a si mesma. Maria pode ser exemplo de que Deus usa instrumentos bem mundanos e, assim como ela, a Igreja nada mais é do que instrumento de Deus e sua ação misericordiosa.

Mas, seria por demais cômodo ficarmos atirando pedras no passado, encobrindo, assim, o presente. Por isso, coloco algumas perguntas que me preocupam e que, na prática, tenho dificuldades em responder.

Sob o aspecto dos bens e da influência, a Igreja (organização) hoje faz parte dos poderosos. A pergunta é: Estes bens e esta influência estão sendo usados como instrumentos de Deus e para Deus? Não estamos sempre de novo na linha de garantirmos o nosso próprio futuro? Certamente seria uma irresponsabilidade deixar que as coisas – também de organização – corressem por conta. Mas a pergunta é: O que desejamos? Qual a finalidade de todos os bens e de toda a influência por este Brasil a fora?

Mas nós, pessoalmente, também pertencemos à classe média mais ou menos bem estabelecida. Como aquinhoados por Deus (afinal fazemos parte de seu povo!), para que usamos os bens? Por que e para que procuramos acumular sempre mais?

Como aquinhoados por Deus através de sua mensagem salvífica, será que estamos falando português claro? Quantas vezes estamos ligados aos poderosos (de todos os tipos!) justamente para garantir a nossa situação privilegiada?

O Cântico de Maria é um desafio a engrandecermos os feitos de Deus e a aceitarmos na fé, com humildade – como Maria – o sermos instrumentos de Deus. Somos desafiados a proclamar que Deus não aceita simplesmente a nossa escala de valores, mas que ele a subverte e inverte. Se Deus está do lado dos humildes, será que nós, sua Igreja, poderemos estar em outro lugar?

V – Pistas para a prédica

1. Seria importante falar de Maria como o evangelho no-la testemunha, sem, por isso, fazer grande polémica. Nossas comunidades precisam ser ajudadas a vencer as alergias em relação ao assunto.

2. Falar dos feitos de Deus em Cristo, antes de Cristo e depois dele (aqui cada um deverá pensar o que mencionará concretamente).

3. Deixar claro que os feitos de Deus são uma reviravolta em nossos conceitos e valores, pois Deus toma o partido dos humildes, o que, para nós, não é nada natural!

4. Perguntar (e assim fazer ver) a comunidade pelo seu lugar, pelo seu ser instrumento na mão de Deus e mostrar que isso vale tanto para nós individualmente como para nós como Igreja, como povo de Deus.

5. Lembrar que a palavra de Deus não voltará vazia Assim como Deus cumpriu suas promessas usando Maria (entre outras pessoas), assim ele continuará cumprindo as suas promessas, ainda que à revelia da Igreja que se diz sua.

6. Maria, a partir dos grandes feitos de Deus, não pode calar. Será que nós estamos proclamando os grandes feitos de Deus?

VI – Bibliografia

– DIVERSOS. Evangelischer Erwachsenenkatechismus. Gütersloh, 1975.
– KIRST, N. Prédica sobre Lucas 1.46-55. In: Vai e Fala. São Leopoldo, 1978.
– KRUSCHE, W. Meditação sobre Lucas 1.46-55. In: Calwer Predigthilfen. Vol. 7. München, 1968.
– LUTERO, M. Magnificat Rio de Janeiro, 1968.
– SCHÜTZ, R. Prefácio. In: LUTERO, M. Magnificat. Rio de Janeiro, 1968.
– VOIGT, G. Meditação sobre Lucas 1.46-55. In: Der Schmale Weg. Göttingen, 1968.