Prédica: 2 Coríntios 4.6-10
Autor: Clemente João Freitag
Data Litúrgica: Último Domingo após Epifania
Data da Pregação: 12/01/1986
Proclamar Libertação – Volume: XI
I — Observações gerais
Em sua segunda viagem missionária pelo mundo de então, Paulo faz surgir em meio ao paganismo mais uma comunidade cristã. Esta proeza ele realiza, com a graça de Deus, na cidade de Corinto. Por ser uma cidade portuária, Corinto sofria as mais diversas invasões quer fossem comerciais, políticas, culturais ou religiosas. Além disto primava em ser uma cidade inflacionada pelas diversões e possibilidade de se levar uma vida desregrada em qualquer área acima mencionada. Assim sendo, poder-se-ia dizer que Corinto era terra fértil e um local aconchegante. Qualquer estrangeiro que apresentasse alguma novidade, quer fosse comercial ou religiosa, poderia firmar morada com sucesso garantido. A cidade portuária acolhia tudo e todos, tornando-se assim multicultural. Como não podia deixar de ser, esta multiplicidade também foi transladada para dentro da vida cristã da comunidade de Corinto. Os relatos deixam transparecer esta multiplicidade na composição da comunidade (camadas inferiores-ricos-fugitivos), na vida interna, na prática da comunidade, nas teologias que tomam morada na comunidade, na chegada e saída de apóstolos oriundos de outros lugares.
Apesar de Paulo ter trazido o Evangelho de Jesus Cristo a Corinto e ser o fundador desta comunidade cristã, acabou sendo perseguido por Judeus e obrigado a abandonar a cidade. Diante da abertura do pensar corintiano, muitos apóstolos, missionários e outros conseguiram inseminar ideias alheias ao Evangelho no seio da comunidade. O resultado destas inseminações foi que a teologia pneumática e suas implicações tomaram conta de quase toda a comunidade. Mais tarde desabrochou num gnosticismo exacerbado que foi danoso para a vida e testemunho da comunidade. Igualmente a abertura de ‘aceitar qualquer apóstolo com credenciais’, resultou no desprezo e na exclusão ou contestação da apostolicidade de Paulo em seu meio. Esta atitude da comunidade de Corinto e dos ‘apóstolos das credenciais’ estava embasada nos itens: ausência de manifestações visíveis do Espírito e demonstração mediante sinais do poder divino; além disto, Paulo não conseguia apresentar cartas de recomendação, como os demais. Estes aspectos somados ao da Teologia da Cruz que Paulo ofereceu à comunidade eram motivos suficientes para não considerá-lo apóstolo verdadeiro. Paulo não esmorece ante tais posições. Reage de uma maneira veemente, afirmando que os critérios dos cristãos e dos tais apóstolos, não são oriundos da mensagem do Evangelho. Sugere que a comunidade reavalie sua posição no sentido de saber decifrar entre falso e verdadeiro ministério apostólico. Para tanto Paulo lhes envia e oferece uma apologia do ministério apostólico, que está revestida de uma proposta de reconciliação. Esta reconciliação tem como pano de fundo a punição, e consequente arrependimento e perdão da comunidade para com os difamadores da apostolicidade autêntica. Com isto estaria resguardada a supremacia da Palavra da Cruz na vida e na prática da comunidade. Além destas observações, sugiro consultar o v. lll do PL e o Livro de Atos dos Apóstolos, no tocante às viagens de Paulo.
II — Texto
O texto de 2 Cor 4.6-10 está inserido na carta apologética (2.14-7.4), que fala do ministério apostólico, entre outras coisas. Na perícope 4.6-10 Paulo apresenta com evidência a qualidade ‘do ser apóstolo’, dele e da comunidade. Esta qualidade tem como marca o poder e a grandeza de Deus manifesta na insignificância do ser humano, decepcionando e contrariando os anseios e a prática da comunidade. No v.6 Paulo afirma que a iluminação do conhecimento da glória de Deus’, acontece pela ação da Palavra de Deus e não pela capacidade do raciocínio humano. Seguindo nesta perspectiva ocorre uma ampliação da mensagem de Cristo em detrimento da figura do apóstolo (1 Cor 3.5). Com esta afirmação Paulo desdiz toda a prática e vida da comunidade e dos tais apóstolos que se gloriavam em ter e ser os portadores do conhecimento e do poder da glória de Deus. Olhando para a face do Cristo, é inadmissível que apóstolos e comunidade se vangloriem transformando o senhorio de Cristo em algo secundário. Com tal prática estavam a descaracterizar a palavra de Cruz e o autor desta proposta.
Pode-se afirmar que o v.6 e anterior são como que a moldura de perícope em questão. Eles dão luz ao sofrer da comunidade. Somente mediante o crer, compreender e exercitar o teor do v. 6 é possível aceitar e viver a Palavra da Cruz, como está expressa nos demais vv que formam a perícope. Nos vv 7-10 Paulo apresenta as credenciais do ministério apostólico, sempre tendo em sua frente a face do Cristo. Aspecto que os demais ‘apóstolos’ ignoravam ao expor suas glórias. Mediante a apresentação vivencial do ministério apostólico, Paulo incentiva a comunidade em buscar a vida que Deus oferece. Esta nova vida nasce no exercício do ministério apostólico que também foi confiado à comunidade de Corinto. Assim, o ministério da comunidade não pode diferenciar-se em ‘nada’ do de Paulo. Neste sentido, com sua carta apologética, Paulo quer oferecer subsídios e critérios da Teologia da Cruz à comunidade de Corinto. Doravante poderiam fazer frente à corrente gnóstica da comunidade que estava excluindo o caráter do morrer próprio, para que Cristo ressuscitasse na vida da comunidade. Paulo exemplifica sua defesa com elementos concretos e vividos, como veremos nos demais versículos.
Vv.7ss — Visualizando sua postura apostólica, Paulo conceitua o ser humano como vasos de barro. Com isto já contraria a teologia inseminada que estava criando espaços perigosos na comunidade. Por um lado tenta mostrar a insignificância do ser humano e sua fragilidade pelo outro. De outro modo valoriza esta fragilidade dos ‘vasos de barro’, pois é através deles que Deus propaga sua mensagem e ilumina os corações. Assim, Deus confia ‘a excelência do poder’ a tesouros de valor reduzido e que a qualquer instante podem quebrar. Devido lesta precariedade dos ‘vasos de barro’ é que a Palavra de Deus segue poderosa e atuante. Já na vida da comunidade de Corinto estava ocorrendo a vanglória humana em detrimento da propagação do Evangelho. A luz que brilhava era a da gnose humana,e não a luz de Deus. Os vasos de barro mostram sua qualidade ao saber cultivar, propagar e pregar, em meio a um mundo repleto de morte, a mensagem do Cristo sofredor e ressurreto.
Nesta vida apostólica que ‘os vasos de barro’ são convidados a levar acontecem e se dão momentos de alto suspense dialético, perpassados por paradoxos que estão expressos em antíteses. Estas são quase que insondáveis para aqueles que não receberam a iluminação de Deus, como veremos nos vv. seguintes. Tais paradoxos a gnose humana não aceita, mas despreza e ridiculariza como algo fraco e impotente que não vem de Deus. Eis como o apóstolo apresenta a iluminação do conhecimento da glória de Deus nos vasos de barro. O resultado desta iluminação resplandece e resulta na prática do exercício da fé. Onde está contraposto ao poder do sistema opressor, a novidade do Evangelho. Assim sendo, o sistema do atual mundo faz com que em tudo somos: atribulados — perplexos — perseguidos — abatidos — levando sempre no corpo o morrer de Jesus. Já o exercício, a prática do Evangelho de Cristo nos garante que apesar disto não viveremos: angustiados — desanimados — desamparados — destruídos — para que a sua vida se manifeste em nosso corpo.
As antíteses acima expostas têm seu motivo de ser, pelo fato de o sofrer para Paulo não estar restrito à concepção opressora do sofrimento. Bem antes, ligado ao sofrer de Cristo em busca da nova vida. Além disto, estas antíteses existem porque são fruto da prática apostólica que Paulo imprimiu no seio da comunidade.
Esta perspectiva do sofrer nos é concedida apenas mediante o iluminar do conhecimento da glória de Deus. Sem o ser humano receber tal ‘iluminar’, seu sofrer, sua vida não aceita e não faz parte do morrer e ressurgir de Cristo. Bem antes, passa ser glória humana ou recompensa noutro mundo. Já o morrer dos ‘vasos de barro’ e seu sofrer, passa a ser algo dinâmico e vivido. Apenas tem sua validade na luta contra este atual sistema que é guiado pelo conhecimento que ausenta Deus. Este sofrer oriundo da luta contra o atual mundo, é algo dinâmico que descaracteriza qualquer possibilidade de transformar o sofrimento em algo contemplativo, celestial e descarnado como estava sendo exercitado na comunidade. O sofrer assim concebido passa a ser um guia de vida, onde o cristão aceita o seu sofrer como uma parcela do sofrer de Cristo. O sofrimento é aceito como documento adquirido em e com liberdade durante a vida toda na terra. São as propostas do Evangelho que trazem o sofrimento. Pois, segundo a Teologia da Cruz, tudo que oprime deve morrer para que surja a vida em novidade. A atual sociedade deve e pode morrer. Diante disto ela reage e impõe o sofrer aos cristãos. Seguindo nesta perspectiva o sofrimento não é sina. Como também não é algo que o cristão e a comunidade escolhem. É algo que vem pela prática do ministério apostólico. O sofrimento assim entendido é imposto à comunidade por aqueles que defendem e propagam o mal. Podemos subentender que toda a vida de cristão pode ser perpassada por sofrimento, conferindo assim um caráter sacramental ao viver do cristão. Cabe lembrar aqui que o sofrer do cristão é entendido como um longo processo de morrer para si, quando então a morte de Cristo passa a ser manifesta. Com isto abre-se a perspectiva da ressurreição da nova vida já no ser humano, aqui na terra. Esta manifestação da vida de Jesus em nossa vida de sofrimento, passa a figurar como um dos grandes paradoxos incompreendidos pela comunidade de Corinto e seus falsos profetas. Somente nesta perspectiva o nosso sofrer, o ser atribulado e perseguido, o estar perplexo e abatido não acarreta em derrota final. Mas simboliza o carregar em nosso corpo o morrer de Jesus, contrariando a vontade e o desejo do mundo em trevas. Mediante o exemplo de Cristo, Deus não permite que os seus vasos de barro cheguem ao ponto de confundir angústia, desânimo, desamparo e destruição como algo fatal e final. Se assim o fosse de fato, a nova vida apenas iria irromper depois. Contudo, Deus quer que a vida de Cristo já esteja manifesta em nosso corpo, hoje, aqui neste mundo. Esta é a característica do ministério apostólico de Paulo e da comunidade de Corinto, segundo a Teologia da Cruz.
III — A caminho da prédica
Fazendo o pensamento percorrer a grande e vasta seara que é o campo de atuação de nossa Igreja e sua história, podemos constatar e perceber alguns aspectos intrigantes no que diz respeito ao ministério apostólico. Relembrando o passado de nossa Igreja, ele foi extremamente sofrido e penoso. Uma série de aspectos externos (torre-sino-formato-ritual e etc…) eram contestados. Igualmente a parte ideológica, cultural, teológica e até vivencial seguiram sendo contestados pela ‘religião oficial’. O não reconhecimento e a falta de liberdade marcou e deixou cicatrizes profundas no corpo de nossa Igreja. Tanto assim que até nos dias de hoje, a celebração eucarística entre as diversas confissões ainda sofre convulsões violentas que separam e chagam o corpo de Cristo. Olhando assim, até que é algo consolador perceber o quanto nossa Igreja já penou nesta terra que pertence aos povos indígenas. Se a palavra da Cruz ainda persiste em habitar e iluminar este ‘vaso de barro’, é porque nem sempre pregou ou apresentou sua própria glória. Menos ainda, talvez tenha tentado resguardar alguma arrogância de sobrevivência pessoal neste mundo. Bem antes talvez tentou aceitar o seu morrer, o seu sofrer para dar lugar a nova vida que Cristo oferece em liberdade. No nosso entender, este é o lado real e dinâmico de nossa Igreja e que mostra sua lealdade ao ministério de Cristo.
No passado, quando da luta pela legalidade e reconhecimento da fé evangélica, não se duvidava de que os meios humanos ou caminhos materializados da fé fosse algo da Igreja ou dos cristãos. Mesmo que tal reivindicação custasse a vida, foram em frente. O mundo meramente pneumático foi ocupado por uma prática mais realista e palpável. Caso contrário não teria ocorrido sua aceitação e legalização. É claro que haviam posições contrárias ao caminho que nossa Igreja trilhou. Por ironia da história, quando da conquista do direito de ser Igreja no País e sua consequente institucionalização, esqueceu-se as lições de sofrimento como um todo. Passou-se quase que automaticamente para o outro lado. O lado da opressão e do desprezo para com os outros grupos sofredores existentes no pais. Pois, qual é e onde está o apoio e nosso compromisso de lutar junto e dar abrigo a todos os movimentos que nos dias de hoje defendem a vida e a liberdade? Por representar a parte marginal da sociedade oficial, não recebem apoio e vez. No juízo destes movimentos usamos os mesmos pensamentos e artimanhas que o sistema capitalista usa. Esquecemos assim que no passado a Igreja chorou quando não podia louvar a Deus nos quatro cantos deste país. Igualmente esquecemos que ela era considerada fora da lei e da ordem oficial, mas nem por isto deixou de lutar por sua permanência. Hoje, os desprezados e marginalizados igualmente choram quando a Igreja os excomunga e os maldiz. Contudo louvam e agradecem a Deus quando a Igreja os apoia e facilita sua caminhada em busca da vida. Segundo nosso entendimento, aqui residem os resquícios e a semente do pecado contemplativo carregado durante séculos. Quando se tenta dividir a Igreja pelo material e espiritual, denota que estamos fugindo do ministério apostólico que caracterizou o início de nossa Igreja. Como a comunidade de Corinto, igualmente a nossa Igreja não nasceu sob a marca da teologia da glória, mas sim sob o signo da Teologia da Cruz. Quando fugimos desta característica, automaticamente estamos atrelados ao atual sistema que oprime e mata, como também não mais estamos dispostos ao sofrimento que gera vida nova em nossa Igreja. Passamos então a negar o símbolo da Cruz, do sofrimento que caracterizou o nosso passado.
Partindo para uma possível esquematização da pregação, diria que: a) — A primeira parte da alocução versasse sobre o passado da Igreja(paróquia-comunidade), extraindo exemplos de sofrimentos que deram base sólida à fé evangélica. Se possível, descobrir qual o conceito que a religião oficial tinha da fé evangélica, b) — Como segundo passo tentar identificar na comunidade ou em suas cercanias grupos que também lutam por seus direitos, liberdades e deveres. Ainda, ver qual o conceito que temos e fazemos deles, c) — Nossa ação concreta, nosso compromisso e postura ante tais grupos, sob a luz de nosso passado sofredor e de 2 Co 4.6-10.
IV — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, em nossa vida de Igreja é uma constante o negar, o ocultar, o desfazer o teu sofrimento. Queremos tão-somente paz e sossego no coração, sem um compromisso maior com a vida de nosso semelhante. Confessamos-te que o sofrimento passado de nossa Igreja não tem mais morada em nossa vida. Levamos uma vida desregrada e cheia de contradições que nos oprime e cega para com a tua luz. Confessamos-te em humildade que estamos caminhando como pessoas e comunidade auto-suficientemente, sem necessidade maior de tua orientação. Enquanto ainda estivermos sob a iluminação do saber humano, pedimos-te: tem piedade de nós Senhor!
2. Oração de coleta: Senhor, mesmo sendo difícil para em nossa vida realizar o teu querer, agradecemos-te que depositas o teu valioso tesouro em vasos de barro, tua comunidade. Como vasos de barro aqui reunidos, pedimos-te por clemência. Concede-nos a iluminação do entendimento de tua glória, principalmente para que o nosso sofrer diário faça parte da nova vida. Amém.
3. Assuntos para a oração final: Interceder pela comunidade e seus sofrimentos que espelham o sofrer de Cristo; pelas organizações e líderes que lutam e perdem a vida em defesa do direito e da justiça, interceder pela aplicação da justiça no tocante aos opressores do povo brasileiro que estão vivendo impunes na atual Nova República; interceder por todos os movimentos que lutam pela vida humana para que não caiam na tentação de fazer aliança com as forças opressoras; interceder pela liberdade de imprensa, pela liberdade e direito ao trabalho digno, pela justa e boa recompensa deste trabalho, interceder pelas igrejas, para que a unidade também possa acontecer na celebração da vida e da eucaristia; interceder pelo fim do autoritarismo também dentro das Igrejas; agradecer pelo fato de Deus nos escolher como mensageiros de sua Palavra.
V — Bibliografia
– BULTMANN, R. Der zweite Brief an die Korinther. In: Kritisch-ExegetischerKommentarzum Neuen Testament, Goettingen, 1970.
– LIETZMANN, H. KUEMMEL, W.G. An die Korinther l. II. In: Handbuch zum Neuen Testament, v. 9, Tuebingen, 1969.
– LOHSE, E. Introdução ao Novo Testamento, São Leopoldo, 1974.
– SCHLATTER, A. Die Briefe des Paulus. In: Erlaeuterungen zum v. 2, Stuttgart, 1928.