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Prédica: Mateus 10.34-39
Autor: Augusto Ernesto Kunert
Data Litúrgica: 21º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 08/11/1987
Proclamar Libertação – Volume: XII

l – Exegese

1. Introdução: A maioria dos exegetas concorda com a tese que a perícope Mt 10.34-39 é uma composição de vários conteúdos de discursos proferidos por Jesus. Semelhanças ao nosso texto encontramos em Lc 12.51-53;Lc14.26; Lc 17.33. Presume-se que Mateus, baseando-se em fontes à sua disposição, coletou palavras marcantes de discursos de Jesus e lhes deu uma sequência coordenada, incluindo-as no discurso do envio dos discípulos para proclamar o reino de Deus.

Os exegetas consultados – veja a literatura indicada – apontam como pano de fundo, para a melhor compreensão da perícope, a profecia em Mq 7.6: Porque o filho despreza o pai, a filha se levanta contra a mãe, a nora contra a sogra; os inimigos do homem são os da própria casa.

A situação em sua dura realidade, seriedade, dificuldade e perigo, é apontada aos discípulos. Mt 10.34-39 evidencia o que significa o discipulado sob a cruz e mostra a exigência intransigente de fidelidade a quem se propõe seguir a Jesus.

2. Versículos 34-36: Realmente Mq 7.6 e textos do NT que falam nas convulsões no final dos tempos, nos ajudam a compreender Mt 10.34-39. Acho correio que assim se proceda para interpretar os acontecimentos arrolados por Mateus. Concordo, igualmente, com o pensamento de quem afirma que Jesus e, mais tarde, os evangelistas se colocaram contra a compreensão idealizada do Messias que vem para trazer o reino da paz, o reino dos mil anos. A compreensão idealizada e um posicionamento triunfalista sobre a vinda do Messias desvia a atenção da dura realidade da vida. Por isso sou contrário à opinião de quem defende o critério que Jesus pretendeu transferir a dureza do discipulado para os finais dos tempos. Pois, Jesus atuante em seu meio-ambiente, enfrentando problemas reais no dia-a-dia, sentindo na própria carne a perseguição, inimizade e falso testemunho, avisou os discípulos da dura realidade a ser enfrentada por quem que, por sua causa, assume o discipulado. Esse, desde logo, deve saber o que significa o discipulado sob a cruz. O discípulo corre o risco do sofrimento. Conflitos, tensões e mesmo o martírio não lhe são poupados. Jesus envia os discípulos para o mundo, avisando-os da realidade que os espera. Jesus é franco e sincero com os seus. Não esconde a verdade. Assim como no seu próprio caminho, desde Belém até ao Calvário, a espada e a cruz estão plantadas ao longo do seu caminho, os discípulos enfrentarão enormes dificuldades por minha causa (v. 39). Heinrich Beuchert-Rostock esclarece que o envio dos discípulos é marcado pelo fato que Jesus mesmo foi enviado. É característico do envio e do discipulado que são inseparavelmente ligados com o destino de Jesus (p. 352).

Jesus é divisor de águas. O eu vim (v. 35) significa que Jesus veio para cumprir a vontade de Deus. Ele não veio para atender sonhos nem para satisfazer desejos humanos. Ele não entra no jogo de interesses dos homens. Jesus rejeita especulações messiânicas do judaísmo e especulações que pessoas ligam com os últimos tempos. Ele desmascara afirmações dos que gritam paz, onde não há paz; dos que iludem com declarações que tudo está bem, quando em verdade existe sofrimento, há desentendimentos e surgem conflitos muito sérios na vida do povo e que quebram a comunhão com Deus.

Entendo do contexto bíblico que as convulsões de parto se vão agravando mais e mais até nos últimos tempos. Não há como negar, isto já o agravamento nos deixa claro, que os conflitos, o desentendimento e sofrimento pertencem ao dia-a-dia do discipulado. A comparação com a espada não quer dizer que Jesus trouxe a espada de aço para colocá-la nas mãos de seus seguidores; que quer fazer dos seus discípulos combatentes de alguma guerra santa para exterminar os seus inimigos com ferro e fogo. Antes, isto sim, Jesus alerta os seus seguidores da dura realidade a ser enfrentada em um mundo hostil à sua vinda e à sua mensagem, o qual não admite um Messias triunfalista.

A espada não é colocada nas mãos dos discípulos para levarem a luta ao mundo, mas eles devem saber que serão envolvidos pela luta que há no mundo; que estão convocados para o uso da espada para ferir a outros, mas devem saber que outros irão usar a espada contra eles. A espada pode apresentar-se de diversas maneiras. Não precisa ser necessariamente a espada de aço para ferir. Ela pode apresentar-se como inimizade, contestação, rejeição, conflito. À espada tem muitas maneiras de ferir. O exemplo da família nos mostra a seriedade de uma realidade de vida. A espada, em suas muitas formas de apresentação, penetra em todos os círculos, até no mais íntimo – a família.

Considero importante a colocação de Horst Keil: O anúncio da mensa¬gem evangélica vem a ser para o ouvinte uma ‘espada’ e é respondida com a ‘espada’ (…), significa separação entre os que aceitam e assumem o anúncio do Evangelho e os que o rejeitam. Esta divisão começa na família e se estende aos povos. Sereis odiados por causa de meu nome. Para Mq 7.6 a inimizade na família é sinal dos últimos tempos. E Mateus, assumindo o conteúdo de Mq 7.6 no grande discurso de Jesus nos quer dizer: Tudo isto já tem o seu início agora. Na experiência da comunidade a profecia escatológica já se cumpriu (p. 677).

3. Versículos 37-39: Os versículos 37-39 são complementação dos vv. 34-36 e fazem as colocações daquilo que espera os seguidores de Jesus. A espada impede os discípulos de se enquadrarem nos interesses que se chocam com o Evangelho. Não podem deixar as coisas correr como se em nada afetassem a confissão de Jesus Cristo. Sempre de novo estarão envolvidos em situações de conflito. Então, somente uma atitude clara e indubitável é de validade. Ninguém poderá esconder-se atrás de atitudes duvidosas ou assim chamadas diplomáticas, querendo satisfazer a gregos e troianos. As declarações: dissolução de laços familiares (37); a seguir Jesus sob a cruz (38); entregar a vida por causa de Jesus (39), são determinantes e exclusivas. O v. 37 tem seu paralelo em Lc 14.26 e significa decisão. Fixamo-nos em Jesus ou na família. No momento decisivo somente aquele que se decidir por Jesus é digno do Senhor. Não há meios-termos. Mateus interpreta o discipulado como ligação íntima com Jesus. É a ligação de amor que estabelece a comunhão. Jesus entregou-se por nós à morte de cruz e foi às últimas consequências do amor. Ele espera dos seus discípulos que tenham fidelidade e que saibam que nada e ninguém pode ser interposto entre ele e os seus seguidores.

4. Versículo 38: Também o v. 38 Mt interpreta assim. A confissão do nome de Jesus Cristo como meu Senhor e Salvador exige que esteja pronto para tomar a minha cruz e seguir a Jesus.

Deus é um Deus zeloso que não admite outros deuses. Só ele quer ser amado e temido por nós. Deus sempre está em primeiro lugar. Quem ama pai e mãe, filho ou filha mais do que a Jesus, não é digno de mim. Nos versículos 37 e 38 temos 3 vezes a declaração: Não é digno de mim. A ligação com Jesus não pode sofrer concorrência e prejuízo por causa de outras ligações. Como exemplo extremo temos em Mc 3.31-35 o posicionamento de Jesus referente à sua mãe e aos seus irmãos.

Não condiz com a ligação do discípulo e Jesus, quando o discípulo deixa de seguir a Jesus, negando-se a tomar a sua cruz. Daí a ruptura na comunhão já aconteceu e o discípulo deixou de ser digno de mim. O discipulado se determina e se caracteriza com o tomar a sua cruz.

5. Versículo 39: O v. 39 nos lembra outros textos, como por exemplo Lc 17.33 preservar a vida; Mt 16.25 salvar a sua vida e Mc 8.35 salvar a sua vida -perder a sua vida. As colocações são bastante sucintas e facilmente se tornam um enigma. Como decifrá-las? Vida e vida; achar e achar; perder e perder são substantivos e verbos iguais e com sentido igual. Mas, no discurso de Jesus recebem significado oposto. A vida que queremos manter a todo preço vem a se perder e, outra vez, a vida que entregamos para preservá-la, será achada. Para entender o aparente enigma que envolve a relação entre achar e perder a vida, devemos fazer uso da chave que o próprio texto nos oferece: Por minha causa. O v. 39 aponta a última consequência para o cristão. A palavra do achar e perder tem neste texto sua exigência mais radical. Mt 10.39 ao falar em perder a vida não se refere à vida espiritual somente e sim, também à vida física. Quem segue a Jesus deve estar disposto para o extremo. Cada um está diante da alternativa: Ser fiel e com isto pôr a vida em risco ou tornar-se infiel para ganhar a vida (Calwer, p. 289). Isto, à primeira vista, nos pode parecer uma contradição! Como alguém, perdendo a sua vida, pode ganhá-la? A compreensão nos vem do entendimento que vida (PSYCHE) tem sentido duplo: Uma vez vida tem o sentido de existência física; outra vez é aquilo que faz o homem valer perante Deus. O que se agarra à vida física e tem medo de perdê-la, se afasta de Jesus e acaba perdendo o que acredita possuir. Mas quem por causa de Jesus Cristo põe a sua vida física em risco, talvez até a venha perder, ganhará o que perante Deus significa vida. Assim não acontece porque existe alguma lei da natureza que coloque a vida espiritual acima da vida física, mas vem da decisão do discípulo a favor de Jesus, colocando-se junto de quem concede vida plena. Pois de Jesus depende a decisão sobre vida e morte (10.32s) (Calwer, p. 289).

II – Meditação e preparação da prédica

O escopo do texto nos é dado com: HENEKEN EMOU = por causa de mim v. 39. As contradições, os conflitos e o caminho que levam ao tomar a sua cruz não ocorrem por causa de divergências de pontos de vista nas ideologias sociais, políticas ou económicas. Ocorrem, isto sim, por causa de Jesus Cristo. Onde Jesus Cristo é diminuído e blasfemado, o discípulo está chamado para o testemunho do senhorio de Jesus. A prédica, portanto, deve considerar claramente o por causa de mim. No momento em que o pregador venha esquecer a chave por causa de mim terá o texto trancado a sete chaves. Então irá perder-se numa interpretação legalista, fazendo da mensagem evangélica do texto uma comunicação de horror à comunidade. O pregador correrá o risco de desvalorizar a vida física em favor da vida espiritual, causando uma divisão que o texto quer evitar. O outro perigo é dado com a tentativa de amenizar a seriedade das situações arroladas no texto. Uma simplificação no sentido que as cousas não são tão sérias assim vai terminar na perda do conteúdo da mensagem evangélica. Pois, o texto prega a Jesus Cristo, o Salvador. Por sua causa corremos o risco de sofrer. Ele veio para pôr a nossa vida em ordem. E a tarefa do pregador está exatamente no anúncio do evangelho da salvação em Jesus Cristo. E a compreensão da intenção do texto nos vem e o seu enigma se deixa decifrar a partir da chave: por causa de mim. Isto quer dizer que em Jesus Cristo recebemos a vida que realmente é vida perante Deus, mesmo que soframos, vivamos em conflitos e corramos o risco de perder a vida física.

a) Não a paz, mas a espada? Será que Jesus convoca os seus seguidores para uma guerra? Ele se faz um marechal de campo que envia suas tropas ao fronte para matar os soldados inimigos, lançar a espada em forma de bombas nucleares sobre a população civil, ocupar cidades e subjugar povos? Tais afirmações seriam uma aberração. A pregação e a ação de Jesus nos dão o direito de rechaçar decididamente tais insinuações. Gottfried Voigt nos alerta: Nada nos escritos nos leva a imaginar que Jesus propagasse tais ideias; que elas surgissem no sentido de tentação, poderíamos, eventualmente, deduzir de Mt 4.8-10, mas Jesus reagiu prontamente: Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele darás culto. (p. 373). Jesus abençoou os pacificadores (Mt 5.9). Proibiu ao discípulo o uso da espada para’ defendê-lo contra a turba que veio prendê-lo. Alertou que todos que lançam mão da espada, à espada perecerão (Mt 26.51-55). Os discípulos devem levar aos lares a paz (Mt 10.12-13). Jesus declara que o seu reino não é deste mundo e por isto os seus ministros não lutam pelo seu reino (João 18.36). Os discípulos de Jesus usam a espada do Espírito para a propagação do evangelho da paz (Ef 6.15-17).

Por que então falar em espada? É evidente que Jesus não envia seus amigos ao mundo para a luta em forma de guerra e destruição. Mas os discípulos são envolvidos em situações conflitantes. Os seguidores de Jesus não usam a espada, mas a espada é usada contra eles e eles sofrem com esta. A palavra espada tem o sentido de sofrimento. Entre os mais fiéis seguidores de Jesus muitos sofreram o martírio. Nem sempre a morte foi o desfecho, mas perseguição, insegurança, conflitos e tortura se fizeram presentes. E em 2 Co 11 o apóstolo Paulo enumera uma lista de sofrimentos, o que mostra a realidade vivida pelos fiéis seguidores de Jesus. É a situação de espada usada contra os discípulos e que fere profundamente.

b) Mesmo que os tempos não sejam conturbados e que a comunidade possa levar urna vida mais tranquila, devemos estar conscientes que a espada nos pode ferir a qualquer momento. Nunca nos podemos iludir com uma imagem simplória do Messias, mesmo que os tempos sejam tranquilíssimos. Jamais podemos usar a Jesus para encaixá-lo nos nossos planos e interesses, querendo adaptá-lo à nossa maneira de viver e de agir. Jesus não se deixa manipular ou transformar em um bonzinho útil que não vai incomodar a ninguém. Conhecemo-nos o suficiente para saber que o velho Adão em nós sempre de novo faz das suas. Lutero disse uma vez que o velho Adão mesmo afogado, sempre de novo levanta sua cabeça. Ele quer ficar com as rédeas nas mãos e nos cavalgar a seu contento. Um Jesus que não exige, não incomoda, não confronta, mas adula não existe no Evangelho. E o nosso texto é muito claro neste particular. Aí está Jesus a exigir fidelidade e que o discípulo tome a sua cruz. E Jesus, que venceu o pecado com sua morte na cruz, chama para o discipulado, alertando que todo aquele que quer segui-lo, está sujeito às cruzes e espadas ao longo do caminho a percorrer.

c) Jesus não assalta nem manda os seus assaltar o mundo e os homens. Ele ama o mundo. Ele ama os homens: Pois Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu Filho unigênito para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. (Jo 3.15-16) Por amor ao mundo Jesus assumiu o plano de salvação de Deus e foi morrer por ele na cruz. Pelo mesmo amor Deus o ressuscitou para que o mundo tivesse paz na reconciliação. Por isto Jesus não deixa o mundo entregue à sua própria sorte; não se afasta do mundo como quem nada mais tem a ver com ele. Mas Jesus também não estabelece uma paz furada com o mundo ao estilo dos falsos profetas que anunciavam paz, quando não havia paz e com isto curavam superficialmente a ferida do povo. Com uma paz furada ele entregaria o mundo ao velho Adão e conseqüentemente também os homens à destruição. Jesus se alegra com a verdade e com a justiça (1 Co 13.6). Não nos cabe, portanto, como pregadores, condenar o mundo. O nosso mandato está no anúncio do evangelho da salvação em Jesus Cristo ao mundo em pecado, ao mundo em sofrimento e angústia; ao mundo que usa a espada contra os mensageiros da paz e do amor de Jesus Cristo. Jesus ama o mundo; como poderíamos nós, os seus discípulos e mensageiros, deixar de amar o mundo mesmo que ele nos conteste, nos persiga e use a espada contra nós? Esta é a realidade, conflitante que vivemos e a comunidade sempre estará sujeita a tais situações. É necessário que tenhamos isto sempre bem presente, evitando assim que a comunidade caia na tentação de assumir postura de uma marcha triunfalista, de glória através dos tempos. A glória do discípulo e de uma comunidade está na fidelidade com que toma a sua cruz. Basta olharmos com olhos claros para a realidade em nosso redor e veremos os milhões de pobres; o sofrimento com doenças; o descaso com o tratamento médico-hospitalar; a corrupção no comércio, na indústria, as fraudes económicas! É de se admirar que o medo ataque os corações? Tudo isto nos deixa imunes, insensíveis? Não é o pecado a grassar em nosso meio? Tudo isto permite ao discípulo e à comunidade uma conduta triunfalista? Antes, todos nós discípulos, ministros e servidores de Jesus Cristo somos convocados a contestar por causa de Jesus Cristo toda esta lama do pecado, mesmo que os sabotadores e os corruptos voltem contra nós a espada.

d) Diversos exegetas afirmam que o nosso texto pertence ao período de perseguições da comunidade primitiva. Elas aconteceram por parte dos judeus, mas também, como Mt 24.9 dá a entender, por parte de todos os povos. Alguns aceitaram de bom grado a mensagem de Jesus, outros a contestaram e a rejeitaram. Não faltaram os que usaram a força contra Jesus e os discípulos, mais tarde, sofreram o mesmo tratamento.

Há situações semelhantes no Brasil ou devemos buscar exemplos em países com regime comunista-marxista-materialista ou recorrer à África do Sul, onde a ideologia (religiosa) do apartheid causa profundo sofrimento a quem por causa de Jesus Cristo contesta o desrespeito à pessoa humana? Acabamos de sair da velha república. O sofrimento ligado com ela não pode estar esquecido. A própria História nos ensina que todas as ditaduras, sejam elas da direita ou da esquerda, acabam dominadas pela força, corrupção e opressão. As ditaduras colocam-se em primeiro lugar. As da direita procuram adonar-se de Deus, fazê-lo servil a seus interesses e ideologia. As da esquerda rejeitam a Deus. Ambas, por causa do senhorio de Jesus Cristo, levam os discípulos a sofrer a espada. A grande maioria faz, nestas circunstâncias, o papel de Maria vai com as outras e tira suas vantagens de uma ou de outra maneira. Os que visam um testemunho evangélico de combate à corrupção, exploração, injustiça social acabam por tomar a sua cruz.

e) Recomendo ao pregador que evite contar estorinhas que tratam de decepções pessoais, de desejos e interesses frustrados em sua vida e na de terceiros. Isto iria diminuir a seriedade do texto. O texto não se refere às minhas dificuldades com o pagamento das prestações do BNH. Também não se fundamenta na briga entre vizinhos por causa de fofocas ou divergências com divisas das terras. Este tipo de exemplos não serve para identificar o significado do tomar a sua cruz. O texto trata dos conflitos, da perseguição, do sofrimento, do risco de vida que passamos por causa de Jesus Cristo. Trata, portanto, do sofrimento por causa de Jesus Cristo e não por causa de alguma burrada minha nos negócios, nos investimentos, meu egoísmo ou arrogância. Sofrimento por causa de Jesus Cristo é uma coisa, sofrimento por causa de minhas fraquezas, interesses e exploração é outra coisa. O primeiro é consequência da fé e fidelidade no discipulado e o segundo é fruto de meu pecado.

Já na comunidade primitiva as coisas se embaralharam em alguns casos. A intenção de buscar a paz sem juízo e sem justiça sempre de novo se apresenta, também em nossos dias. Buscar a paz à revelia da justiça significa ratificar o status quo. Eu diria a nós pastores que este procedimento significa passar a batina por cima de situações gritantes de injustiça, corrupção, e desrespeito à pessoa, pretendendo amenizar a realidade dos acontecimentos. É o mesmo como amordaçar o evangelho do amor, da verdade e justiça em favor próprio, esconder a culpa por medo e abafar interesses escusos. Paz sem justiça é a intenção de adaptar-se à situação existente e assumir compromissos furados, fazer carreira à custa de outros, enriquecimento ilícito. Paz sem justiça é, portanto, negar o discipulado. E essa conduta nos faz perder a vida em vez de ganhá-la. Ganhamos, talvez, a vida física, mas perdemos a vida que é vida perante Deus.

f) Também em nosso meio houve e há a tentativa de fazer de Jesus um revolucionário político que veio, primordialmente, para resolver a situação político-social-econômica do povo. Ao mesmo tempo está aí a tentativa de carimbar a Jesus de simples consolador, o salvador particular, do conforto privado, da segurança pessoal, degradando-o ao posto de justificador da minha vida desregrada e pecaminosa.

Na primeira tentativa o risco de ver Jesus como o justiceiro é muito grande. Jesus, o justiceiro que veio para sarar e curar as feridas físicas do povo, fica limitado a um combatente em busca de um reino deste mundo. Na segunda tentativa vamos cair no erro de anunciar um Cristo bonzinho, meigo e dócil que não se envolve com as convulsões de parto de um mundo caído e sofredor. E Jesus Cristo é rebaixado para a função de falso profeta que cura superficialmente a ferida do meu povo. Onde fica nisto tudo o senhorio de Jesus Cristo?

A compreensão do Eu vim e do por causa de mim é decisiva e requer participação na vida de Jesus em testemunho e ação. É o discipulado em comunhão de vida com Jesus, conseqüentemente é participação nas reações que o testemunho e a ação provocam. Aceitação e rejeição; alegria e sofrimento; cruz e ressurreição estão no caminho do discípulo.

Não há discipulado sem consequências. Ele leva à confrontação. Os conflitos são inevitáveis e penetram na maior intimidade de nosso relacionamento com pessoas: na família. Não sou poupado de conflitos. Eles atacam o meu próprio íntimo. Trava-se uma luta íntima. De um lado estão os meus desejos, interesses e sonhos, do outro lado está o chamado de Cristo: por causa de mim deves afas-tar-te de tudo isto. E surgem os conflitos que podem terminar em fincar uma cunha entre mim e Jesus. Lutero sentiu isto em sua profundidade e o expressou no hino Castelo forte é nosso Deus: Se a morte eu sofrer, se os bens eu perder, que tudo se vá, Jesus conosco está; seu reino é nossa herança.

É bom que o pregador reconheça que os conflitos começam em seu próprio íntimo. Isto vai ajudar a compreender os tantos pais e filhos e vai ajudar a nós mesmos a não fugir do sofrimento. A pergunta que se apresenta é esta: Estamos dispostos a carregar a própria cruz? O pastor como pecador só existe em casos disciplinares? A inveja, o ciúme, o falso testemunho, a dureza de coração, o nosso fracasso no convívio com a esposa e com os filhos são encobertos pela nossa batina?

Tomar a sua cruz pode significar despedida dos que me são caros; pode significar despedida do meu passado que sempre me foi querido e a exigência de seguir em frente em humildade de vida. O importante é Cristo em mim e comigo. A entrega de minha vida a Cristo e o perder minha vida por causa de Cristo, em verdade é o achar a vida.

Lutero frisou certa vez que os mandamentos da segunda tábua não podem ser colocados acima da primeira pedra, isto seria dar preferência à criação e ao homem, portanto, seria colocá-los acima de Deus. Tudo está ligado, diz Lutero, à palavrinha ‘mais’. Com isto a autoridade dos pais não é eliminada, mas ratificada: Devemos honrar e amar os pais, mas não mais do que a Deus. Quando a palavra de Deus corre risco, devemos deixar também os pais em segundo plano, no mais os devemos honrar e amar. (p. 443).

g) O texto nos quer levar à compreensão de que o mais importante é ter Jesus. A prédica deve se ater a este pensamento. Toda e qualquer resignação deve ser evitada. A alegria de uma vida com Jesus quer ser enaltecida. É verdade que experiências dolorosas são inevitáveis. Não é possível querer fazer de conta que a vida com Jesus seja um flutuar em um mar de rosas, livre de problemas, conflitos e de sofrimento. A vida com Jesus nunca foi a promessa de segurança, de vida fácil, tranquila e cômoda. Jesus nos põe em movimento, depois de renovação de nossa própria vida interior, para testemunhar paz com justiça. E estar a caminho por causa de Cristo traz consigo conflitos que podem acabar no sofrimento.

Mas, aí está a mensagem da segura e certa esperança evangélica: Eis, eu estou convosco. Jesus está conosco a caminho. Está conosco no sofrimento. Por isto, quem por minha causa perde a vida, vai achá-la. Isto somente a fé compreende.

Ill – Subsídios litúrgicos

1. Confissão de pecados: Senhor, chamaste-me para que te siga. Eu ouvi e quis atender o teu chamado e ser fiel na caminhada proposta. Em mim cresceram desejos e interesses que me desviaram do caminho e eu me perdi na poeira da estrada.

Tomei a cruz com muito afã para te seguir, mas ela se tornou um fardo muito pesado e a deixei, sempre de novo, em uma outra estação da vida, e fugi, trocando-a pelo que me parecia mais fácil e agradável.

Senhor, perdoa a minha fraqueza! Perdoa, Senhor a minha traição e tem piedade de mim!

2. Oração de coleta: Senhor Jesus! Quero ser teu – também na noite que possa cair sobre mim – pois, dizes: Assim seja e somente tu podes falar as¬sim, somente tu podes cumprir com a vontade do Pai em favor dos mentirosos e poderosos, pelos oprimidos e opressores, pelos que estão com medo e sofrem. Deixa-me ser fiel no discipulado e aceitar a lua palavra como a palavra da vida.

3. Oração final: Senhor, no mundo temos medo! Muitos são os conflitos e as perseguições e grandes são as dificuldades para manter a fidelidade na confissão do teu nome em palavras e ações. A espada golpeia feridas muito fundas. Ela nos fere, cortando boas amizades. Ela separa relações que nos são muito queridas. A cruz pesa sobre os nossos ombros frágeis e fraca é a nossa resistência contra a tentação. Contudo, a tua palavra nos diz que acharemos a vida se permanecermos fiéis por tua causa! Senhor, dá-nos força do Espírito Santo para manter a fidelidade. Dá-nos a fé inabalável que resiste às tentações! Somente com a tua ajuda, Senhor, podemos ser discípulos fiéis.

Tem misericórdia, Senhor, com os que confessam o teu nome nas horas de perigo e de risco de vida! Dá conforto e proteção aos que sofrem por tua causa! Ampara os que são perseguidos! Dá ânimo a todos nós para buscarmos junto de ti a vida que é vida perante Deus! Dá-nos, Senhor, vida em abundância! Amém!

IV – Bibliografia

– KEIL, H. Meditação sobre Mateus 10.34-39. Arbeit und Besinnunq Stuttgart,29 (18); 675-680.
– ROLOFF, W. Meditação sobre Mateus 10.34-39. In: BREIT, H. et GOPPELT, L. ed. Calwer Predigthilfen. v. 7, Stuttgart, 1968.
– STECK, K. G Meditação sobre Mateus 10.34-49. Göttinger Predigt-Meditationen. Göttingen, 23 (4): 375-382.

– VOIGT, G. Meditação sobre Mateus 10.34-49. In:————. Der Recht Weinstock, tomo 1, Göttingen, 1968.