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Prédica: Lucas 2.1-20
Leituras: Isaías 62.10-12 e Tito 3.4-7
Autor: Osmar Witt
Data Litúrgica: Dia de Natal
Data da Pregação: 25/12/1991
Proclamar Libertação – Volume: XVII


1. Introdução

Lucas, preocupado em dar uma exposição em ordem dos fatos relacionados com Jesus, relata, no início do evangelho, os acontecimentos extraordinários que antecederam e que sucederam ao nascimento do menino. Para o evangelista tudo teve início com o nascimento do primeiro filho de Maria.

O texto indicado para pregação neste dia de Natal, Lc 2.1-20, condensa as imagens que a tradição tem formulado sobre o nascimento de Jesus. Estas imagens do Natal tendem a exaltar o idílico, o romântico. Aliadas ao ambiente festivo que é criado, elas imprimem um clima natalino’ a esta época do ano. Existe alguma coisa diferente no ar que torna as pessoas mais receptivas e mais sensíveis. Por outro lado, é justamente este clima que torna a época do Natal muito deprimente para alguns. É a época em que a consciência da solidão se manifesta mais forte, e a pergunta pelo sentido da existência tende a ficar sem resposta.

O relato do nascimento de Jesus segundo Lucas, contém alguns elementos que nos ajudam a ver e viver o Natal de modo novo.

2. As cenas que compõem a narrativa

Os acontecimentos narrados neste texto estão divididos em quatro cenas distintas:

2.1. O local do nascimento (vv. 1-7)

Lucas inicia fazendo referência a um decreto de César Augusto, convocando a população do Império Romano para um recenseamento. É passível de discussão se esta referência é correta do ponto de vista histórico (veja Rengstorf, pp. 39 e 40):

A intenção de Lucas, citando um decreto de César Augusto como motivo da ida de José e Maria a Belém, no entanto, é clara: o menino que está nascendo em Delem, não está nascendo em um recanto qualquer (At 26.26), mas dentro do império. (Vau Kaick, p. 341.)

Consequentemente, o menino nascido não é só o Salvador e Messias de Israel, mas também o Salvador e por isso Senhor de todo o povo que vive no imenso império. Além disso, o nascimento de Jesus cumpriu as Escrituras, a profecia de Miquéias 5.2 tornou-se realidade. Talvez o evangelista não quisesse mais do que isto: falar do cumprimento da promessa e da universalidade da salvação em Jesus. No entanto, a presença da mulher Maria nesta cena, dando à luz um filho em condições extremamente precárias, diz algo mais: revela o modo pelo qual Deus age neste mundo.

Maria teve seu primeiro filho longe de casa. Após a viagem de mais de l30 quilômetros por estradas difíceis de Nazaré a Belém, os pais da criança que eslava por nascer não tiveram outra alternativa senão abrigar-se debaixo do primeiro leio que conseguiram, pois a hospedaria ou o recinto da casa particular que era reservado para o acolhimento e a hospedagem de visitantes (Rengstorf, p. 38) estava cheia. E Maria deu à luz seu primeiro filho em condições extremamente adversas. Acaso era algo natural deitar um recém-nascido em uma manjedoura? Quando hoje uma moça tem o seu primeiro nené, sua mãe está aí, junto da filha, paia ajudá-la. Em Belém não estava ninguém. A família de Maria estava longe, lá em Nazaré (Mesters, p. 72). As condições em que Jesus nasceu acrescentam alguma luz ao sentido do Natal? Claro que sim!

Ao escolher Maria, Deus rejeitou a soberba, o orgulho, a auto-suficiência. A mãe do Salvador era pobre e temente a Deus. Na vida desta mulher Deus não encontrou resistências para realizar sua vontade. Lutero ao comentar o Cântico de Mana escreveu o seguinte sobre ela:

Agora compreendemos o que Maria quer dizer: Deus olhou para mim, pobre jovem sem nenhuma importância e desprezada. Não faltavam nobres rainhas, poderosas e ricas, tantas filhas de príncipes e de ricos. Deus podia ter escolhido a filha de Anás, de Cai fás ou de outros proeminentes do país. No entanto, é sobre mim, pobre filha desconhecida e rejeitada que Ele se dignou deitar seu olhar, por puro ato de bondade. (Lutero, p. 39)

Deus age assim:

Escolheu as cousas loucas do mundo para envergonhar os sábios, e escolheu as cousas fracas do mundo para envergonhar as fortes, e Deus escolheu as cousas humildes do mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são; a fim de que ninguém se vanglorie na presença de Deus. (l Co 1.27-29.)

Este aspecto é realçado pela presença de Maria e pelas condições em que se dá o nascimento no relato de Lucas: Deus agiu deste modo também no nascimento do Messias esperado conforme a promessa e que veio para salvar o mundo inteiro.

2.2. Os primeiros ouvintes da Boa-Nova (vv. 8-15)

Os pastores que guardavam seus rebanhos durante as vigílias da noite foram os primeiros a receberem a notícia do nascimento do Salvador esperado. Este fato não é sem significado, uma vez que

no tempo de Jesus, diferentemente dos dias de Davi e dos profetas, os pastores, apesar de serem indispensáveis, eram uma categoria desprezada, pois eram economicamente dependentes e tidos como desonestos. Se justamente eles são chamados, deduz-se daí que espécie de rei é o recém-nascido: Ele procura e tem o seu povo entre os pequenos e desprezados. (Rengstorf, p. 41.)

Os pastores nesta segunda cena apontam para a mesma realidade que Maria apontou na primeira. Deus se revela aos que por si mesmos não têm motivos para julgar-se importantes. Só mesmo quem vive à beira de uma situação desesperadora do ponto de vista humano é capaz de levar a sério uma notícia como a que foi trazida pelo anjo.

Já imaginou, você ir falar com os doutores daquele tempo, com os sacerdotes do templo, com os ricos latifundiários da Galileia ou com os governantes do povo e dizer a eles: Olhem, acabou de nascer o Messias, lá em Belém! Ele está deitado no cocho de um curral! Será que isso caberia na cabeça deles? Talvez nem ficassem bravos e pensassem que fosse uma piada. Acreditar que Deus tivesse realizado a sua promessa com aquela moça pobre de Nazaré, sem falar com eles, os doutores, e que aquele menino recém-nascido, deitado no cocho de uma casa popular qualquer lá de Belém, fosse o Messias! Não, isso nunca! Era chocante mesmo! (Mesters, p. 72.

Os pastores, no entanto, não perderam tempo. Se aprumaram e seguiram para Belém, a fim de conferir a notícia que receberam. Era bom demais para não se lhe dar nenhuma importância. É possível que dentro deles tenha queimado como nunca a chama da esperança por um novo Davi, que viesse para libertar Israel do jugo estrangeiro. Sabemos que Jesus não correspondeu plenamente. Mas, importa destacar a presteza com que aqueles pobres homens abraçaram a Boa Nova. Não se puseram a questionar se era ou não possível que o Messias viesse ao mundo da forma anunciada pelo anjo. Afinal, eles também puderam presenciar a glória do Senhor nos campos de Belém, longe do Templo, tido como o lugar onde ele habitava (cf. l Rs 8.10s.; SI 26.8). Por que não poderia o Messias nascer de uma família pobre como eles?

2.3. O encontro dos pastores com Maria, José e o menino Jesus (vv. 16-19)

Tal como lhes fora anunciado pelo anjo, encontraram a criança deitada na manjedoura. Pela boca dos pastores Maria, José e os demais presentes receberam a confirmação de que a criança era de fato o Salvador esperado. E todos os que os ouviram ficaram admirados. Que outra reação poderiam ter? O Messias era esperado, mas que aquele filho de Maria, deitado na manjedoura, era o próprio, isto só pode ter soado de forma totalmente inesperada. Como inesperada é a própria mensagem natalina. Acaso não é de causar espanto o anúncio de que a nossa vida está nas mãos de uma criança? No entanto, este é propriamente o assunto de Natal:

A conversa é sobre o nascimento de uma criança, não sobre o agir transformador de um homem forte, não sobre a audaciosa descoberta de um sábio, não sobre a obra piedosa de um santo. Isto ultrapassa qualquer compreensão. O nascimento de uma criança deve provocar as grandes mudanças de todas as coisas, deve trazer salvação e redenção para toda a humanidade. Em função daquilo que reis e estadistas, filósofos e artistas, fundadores de religião e moralistas se esforçam inutilmente, isto acontece agora através de uma criança recém-nascida. Como para envergonhar o enorme esforço e a realização humana, aqui uma criança é colocada no centro da história do mundo. Uma criança nascida de seres humanos, um filho dado por Deus. Este é o mistério da salvação do mundo; todo o passado e todo o futuro é aqui abarcado. A infindável misericórdia de Deus Todo-Poderoso vem até nós, desce até nós na forma de uma criança, Seu Filho. De que esta criança nos nasceu, de que este Filho nos foi dado, de que esta criança humana, este Filho de Deus me pertence, de que eu o conheço, o tenho, o amo, de que eu sou seu e ele é meu, disto depende agora minha vida. (D. Bonhoeffer, in: Jens, p. 60.)

Lucas ainda destaca de modo especial a reação de Maria (v. 19). Como mãe põe-se a pensar sobre isto que lhe dizem:

O Messias seria de fato seu filho? Isto deve ter lhe parecido estranho. Sobre o Messias, o Ungido, o Salvador tinha-se outras ideias. Ele deveria ser um descendente da gloriosa casa real e não o filho de dois pobretões. (R. Wagner-Gehlhaar, in: Härtling, p. 32.)

2.4. Volta à rotina com ânimo novo (v. 20)

Os pastores voltaram para os seus rebanhos e para o seu trabalho de onde o anjo os chamara. Este aspecto é importante, pois não retornaram de modo como foram, senão que na manjedoura de Belém, onde misteriosamente o céu e a leria se fundem, encontraram razão para regressar a sua rotina glorificando e louvando a Deus. Quiçá fosse melhor ficar ao pé da manjedoura agora que tinham encontrado o Salvador. Porém, o anjo em sua mensagem lembrara que o nascimento do Messias seria uma Boa Nova para todo o povo. Era pois, necessário anunciá-lo Não é possível usufruir da Boa Nova natalina e não passá-la adiante aos que vivem sós e sem esperança, por já não contarem mais com ela ou por não a conhecerem.

3. O Natal na vida da gente

Mais importante do que lamentar a distorção do verdadeiro sentido do Natal, transformado em festival de consumo, é apontar elementos que lhe confiram conteúdo cristão. O que é que se encontra no fundo do baú e precisa ser trazido alo na novamente, e que Boas Novas precisam ser anunciadas?

3.1 — A narrativa sobre o nascimento de Jesus em Lc 2 revela o modo pelo qual Deus age na história. Ele toma o rumo da periferia (Belém), encontra morada nas vidas de gente humilde (Maria) e se revela a marginalizados (pastores). Ele o Ia/ não por mérito, mas por benignidade e graça (Tt 3.4-7).

3.2 — O interesse do evangelista não se restringe a narrar o nascimento de Jesus. Se assim fosse poderia ter encerrado seu relato no v. 7. A entrada em cena tios pastores ilustra o quanto a mensagem natalina é mobilizadora. Os pastores se levantam e vão à procura do recém-nascido. Depois de o haverem encontrado, voltam e glorificam a Deus. Este voltar lembra à comunidade cristã sua tarefa missiona ria de anunciar que o Salvador chegou (Is 62.10-12).

3.3 — Tendo sido agraciados por Deus, os personagens da narrativa de Lucas não se tornaram orgulhosos e arrogantes. Maria manteve-se humilde, tentando compreender os desígnios de Deus em sua vida (v. 19). Os pastores voltaram às suas lides (v. 20), isto é, continuaram sendo pastores.

E nós, miseráveis que somos, basta que tenhamos algum bem, um pouco de poder, umas honrarias, alguma beleza e qualquer distinção algo especiais, para que passemos então a olhar os pequenos não mais como nossos iguais, e nossas pretensões não conhecem mais limites! (Lutero, p. 31).

A mensagem natalina nos ajuda a perceber que o sentido da existência não cslrt nas honrarias, no prestígio ou no poder. O sentido está em nos dispormos para qur Deus possa agir através de nós.

4. Como pregar Lc 2.1-20

Proponho os seguintes passos:

1. Apontar para o modo de agir de Deus na história e em que momentos da narrativa de Natal isto nos é dado conhecer.

2. O modo de agir de Deus revela sua intensão de nos salvar por graça. Fazendo nossa vida depender de uma criança pobre, Deus estraçalha com o nosso orgulho e nossa auto-suficiência, esvaziando desta forma muita solenidade pomposa de Natal.

3. Somos desafiados a manter a humildade de Maria e dos pastores ao desincumbir-nos de nossa tarefa missionária de anunciar a chegada do Salvador.

5. Subsídios litúrgicos

1. Intróito: Salmo 98

2. Confissão de pecados: Senhor, temos dificuldades para compreender o teu modo de agir na nossa vida. Nós te queremos grandioso, mas tu insistes em identificar-te conosco. Temos dificuldades para crer que na criança de Belém teu Filho veio ao nosso mundo. Perdoa, Senhor, a nossa incredulidade e ajuda-nos na nossa falta de fé. Neste dia de Natal tu nos lembras de novo que enviaste teu Filho a nós e que desde o seu nascimento na manjedoura de Belém ele nos tem ensinado que tu queres o nosso bem. Nós, no entanto, confessamos que esta mensagem natalina já não mexe mais conosco. O Natal nos mobiliza em direção das casas comerciais atrás de presentes, mas não nos impulsiona na direção da criança na manjedoura. Perdoa, Senhor, que a gente dá mais importância ao que é secundário. Neste Natal faze a tua luz vencer a nossa escuridão. Tem piedade de nós, Senhor!

3. Absolvição: Lucas 2.10s.

4. Coleta: Senhor Jesus! TU és a luz do mundo. Nós precisamos tempo, muito tempo, para entendermos o sentido da luz que brilha na escuridão. Nós te pedimos, Senhor: concede-nos tempo, concede-nos tranquilidade. Ajuda-nos a ouvir, ajuda-nos a festejar. Delxa a tua luz clarear a nossa vida e o nosso mundo. Amém.

5. Oração final:

— Agradecer pelo Natal e porque a luz que brilhou para os pastores nos campos de Belém também brilha para nós.

— Orar pelos que têm suas vidas fechadas para o amor e que se julgam auto-suficientes.

— Interceder pelos que não encontram motivos para estarem felizes nestes dias: os que se sentem sós e sem esperança, os que ficam de fora das festividades.

— Pedir que a comunidade seja fiel portadora da mensagem natalina e que esta mobilize a comunidade na direção de iniciativas locais que promovam a vida.

6. Bibliografia

HÄRTLING, P. (ed.). Textspuren — Konkretes und Kritisches zur Kanzelredc. Radius Bücher, 1990.
JENS, W. (ed.). Es begibt sich abei zu der Zeit — Texte zur Weihnachtsgeschichte Radius Bücher, 1989.
KAICK, B. van. Lucas 2.1-20. In: Proclamar Libertação. Vol. 3, pp. 339-350
KILPP, N. Lucas 2.1-14. In: Proclamar Libertação. Vol. l, pp. 168-175.
LUTERO, M. O magnificat. Petrópolis, Vozes, 1968.
MESTERS, C. Maria, a Mãe de Jesus. Petrópolis, Vozes, 1977.
RENGSTORF, H. Das Evangelium nach Lukas, NTD. Göttingen, Vandenhoeck u. Ruprecht, 1978.