Prédica: Lucas 18.1-8
Autor: Friedrich Genthner
Data Litúrgica: Antepenúltimo Domingo do Ano Eclesiástico
Data da Pregação: 06/11/1983
Proclamar Libertação – Volume: VIII
Os últimos domingos do ano eclesiástico coincidem com semanas de grande tensão: exames finais na escolas e colégios, preparo para o vestibular, tempo pré-natalino, ocupação máxima de pessoas no comércio. Não é fácil dizer uma palavra a ouvintes, cuja atenção está voltada para uma vida intensa no dia-a-dia. Ou será que essas pessoas têm uma sensibilidade maior para uma vida voltada a Deus?
Neste contexto, nosso trecho bíblico poderia intitular-se:
VIDA CRISTÃ EM DISCUSSÃO
I — Considerações gerais
A partir da tradução e da interpretação, a parábola Lc 18.1 -8 recebeu vários títulos, por exemplo: A parábola do juiz iníquo (versão de Almeida); O juiz iníquo e a viúva importuna (Bíblia de Jerusalém); Que significa Reino de Deus (O Novo Testamento por Jörg Zink); A viúva e o juiz (A Bíblia na Linguagem de Hoje). Isso reflete a variedade de opções para a interpretação que a perícope oferece:
1. No contexto (17.20-37), vê-se o aspecto escatológico;
2. Na parábola (18.1-8), a viúva pede justiça;
3. Na moldura (18.1,6-8a), fala-se da oração.
Lc 18.1-8 é um exemplo clássico de como pessoas engajadas interpretavam a Boa Nova, em nome de Jesus Cristo. Vemos aí também a voz da comunidade primitiva (v.8b). No v. 1 a ë b (nunca esmorecer), bem como no v. 8a e b, vemos a interpretação de Lucas. O que ele quis dizer com isso é animador para nós, hoje em dia, e merece a nossa atenção. A Palavra de Deus desafia, orienta e abre novos horizontes. Essas maneiras de interpretar o texto evidenciam os diferentes aspectos que a vida de fé tem, como por exemplo Rm 1.17 (o justificado vive = Rm 5-8).
Lc 17.20-37 contém pensamentos sobre o fim do mundo e a vinda do Filho do Homem. Esses versículos dirigem-se aos discípulos (v.22), o que também acontece com 18.1. A preocupação é evidente: quem suporta as tribulações?
Vários comentaristas ligam 17.20-37 com 18.8b (achará porventura fé na terra?). Lucas interpreta o tempo antes da vinda do Filho do Homem como tempo do Espírito Santo, tempo da Igreja ou tempo da ação de Deus. Neste sentido, v.8b serve, de ligação entre 17.20-37 e 18.1-8. Os vv. 6-8a colocam o acento na viúva, que dá um exemplo de comportamento.
Tanto Lc 18.9ss, quanto 18.1-8, tiveram originalmente outro contexto: quem se justifica a si mesmo é rejeitado. Em seu lugar, é aceito aquele que somente ainda pode dizer: Ó Deus, sê propício a mim, pecador! Esse procedimento da parte de Deus é a chance dos que pedem, confiam e se arrependem.
Assim, concluímos que a intenção de Lucas (17.20-37; 18.1-8; 18.9-14) é mostrar que, no tempo até a vinda do Filho do Homem, a oração é a característica da existência que se baseia exclusivamente na confiança em Deus. (Grässer)
II — Análise do texto
V.1: A parábola pretende indicar o comportamento de alguém que confia. ME ENKAKEIN define o orar como tal comportamento cristão perseverante. O termo DEI (dever), usado por Lucas em várias outras passagens (cf. 2.49; 4.43; 12.12; 13.16; 15.32; 19.5; 22.37; 24.44), explica a conduta de fé. Se muita coisa nos faz esmorecer, desanimar, a oração nos deixa perseverar. Será que por trás destas palavras não se esconde aflição, desistência, provação, pelas quais a comunidade primitiva teria passado? Neste caso, o v.1 seria uma confissão importante!
V.2: Temer a Deus significa aceitá-lo como supremo juiz. Neste versículo, o juiz confessa que não teme a Deus, nem ao homem. Ele se exclui de qualquer tipo de convívio humano. Ele é egoísta! Ele falhou totalmente como pessoa humana. Ele aparece como inimigo de Deus, como seu adversário, pois ignora sua responsabilidade perante ele.
V.3: A viúva não foi à justiça, nem tinha advogado. O seu caso era dinheiro, herança ou dívida. (Jeremias) Ela não tem quem a defenda. O único caminho que lhe resta é o dos pobres; pedir.
V.5: Interessante é a expressão grega TÈN CHÈRAN TAUTÈN, que significa essa coitada! Ela pede pela recuperação de seu direito. Sua única arma é HYPÕPIAZEIN = esbofetear.
V.6: O título KYRIOS tem a sua origem na comunidade primitiva. O mesmo acontece com a expressão seus eleitos(v.7). Essa expressão não era usada por Jesus, mas pela comunidade, quando interpretava a cristologia: Jesus é Senhor de tudo e de todos. Cabe, pois, aos seus seguidores comportarem-se como eleitos. E estes eleitos têm a certeza de que Deus realizará o seu plano. Estes eleitos são os que esperam pela salvação. — O imperativo: escutai! revela uma verdade que parece simples demais, mas que também pode ser entendida como consolo, animação e conforto: a insistência de uma pessoa carente encontra atendimento. Isto faz parte da proclamação do Evangelho (Lc 4.18-20).
V.7: BOAN, clamar, gritar, expressa o clamor, o grito de pessoas que vivem doentes, com medo, desamparadas e em tensões. Quem é competente para ajudar? A quem procurar numa situação dessas? A resposta é: Deus! E isto não se faz com palavras bonitas, ou com jeitinho e elegância, mas com autenticidade que se expressa através de confiança e perseverança (cf. 18.15-17). A expressão demorado”, não precisa ser entendida de modo negativo. Pode ser traduzida também por paciência. E paciência é um fruto do Espirito Santo, uma dádiva (cf. 1Co 13.4; 1 Ts 5.14; Gl 5.22). Deus tem paciência ou demora para aumentar a chance de as pessoas se converterem, de se apoiarem somente nele. Que seria, se não existisse essa demora? Por causa dessa demora, a Igreja, a comunidade pode agir.
V.8: A palavra PISTIS, fé, descreve a ética. Enquanto os vv.1 e 8a formam a moldura da perícope, perguntando pelo que fazer até a vinda do Filho do Homem, o V.8b traz a resposta de Lucas e da comunidade: crer, isto é, agir em confiança no Espírito Santo (cf. At 1.8). Agir, comportar-se como eleito, expressa a profunda confiança que se põe em Deus. A respeito disso, há yma promessa: EN TACHEI = depressa (cf. Ap 1.1). Essa palavra é essencial para uma comunidade que confia na missão de Deus, mas que passa por aflições, sofrimento, persegui-ção, ódio, etc. E, desde o dia da Páscoa, a Igreja pede: Ó! Vem, Senhor!
III — Reflexão
Os que confiam em Deus têm contra si os fariseus, os sadu-ceus, o sinédrio, os professores judaicos, os representantes das religiões pagãs, o Império Romano (Voigt). Têm também contra si a sociedade materialista e de consumo, o modo de pensar em lucro e rendimento. Neste contexto acontece confiar em Deus.
Jesus disse para a comunidade: Quem não toma a sua cruz e vem após mim, não é digno de mim! (Mt 10.38) Confiar, orar não evita aborrecimento, fraqueza, cansaço e dúvidas. Jesus mencionou várias vezes o conflito que uma vida cristã traz consigo.
Em nossa perícope, a viúva representa os pequenos, os humildes e simples. Estes são os que foram deixados de lado. Voigt vê nisso a situação da comunidade. E isso tem a ver conosco, pois somos comunidade.
Em meio a tudo, nós queremos ser importantes. Mas somos uma minoria absoluta no Brasil. Seria interessante avaliar uma vez os motivos para a nossa atuação social, política e cultural. É fácil falar em ajudar os pequenos, quando se tem as mãos cheias. As nossas mãos, entretanto, não estão tão cheias assim. A viúva pode indicar-nos um retorno ao Senhor da Igreja. A vida comunitária e os cultos poderiam ganhar nova atualidade, se deixássemos Cristo ocupar o seu lugar. Neste ponto reside a grande validade da Reforma de Lutero: na descoberta da função da Igreja como serva de Deus. Parece que nós falamos disso, enquanto que outras Igrejas o praticam.
Para Deus, a comunidade é eleita por amor (cf. Sl 17.8; Lc 18.7). E não há nada que possa separar a comunidade de Deus, como diz Paulo aos Romanos (Rm 8.35ss). A verdade expressa no v.7 tornou-se importante para Jesus. (Voigt) Assim também falam as parábolas do Reino de Deus (cf. Mt 13): o insignificante revela-se como dominante. Não é fácil relacionar a nossa vida com a nova vida em Cristo. As correntes teológicas apresentam uma larga faixa de possibilidades, que se estendem do extremo legalismo ao extremo liberalismo, da entrega total à auto-suficiência da pessoa humana. As nossas expressões políticas e sócio-econômicas beneficiam soluções ad hoc e sem comprometimento pessoal: a prefeitura ou o governo é responsável. E aqui, aparece mais uma dificuldade: o homem quer um Deus = remédio, sem maiores implicações, e acha que negociar com Deus é uma maneira de alcançar seu objetivo. Não foi essa a experiência da viúva. Ela optou pelo caminho da esperança prometida, e pediu. Seria importante considerar aqui as 3 primeiras petições do Pai Nosso. Igualmente seria importante lembrar que a Igreja Evangélica Luterana vê na cruz de Jesus Cristo o caminho da salvação. E isto significa, também, a crucificação do velho homem, com todas as suas fantasias e ilusões.
Com relação á volta de Cristo, se será logo ou mais tarde, existe uma grande tensão. Quando é que Deus agirá em nosso favor? Por que Deus não faz força para eliminar os motivos de guerras em meio à humanidade? — Quero lembrar aqui os hinos 221 e 222, de nosso hinário Hinos do Povo de Deus, que, talvez, possam ajudar na reflexão. Deus é fiel, atencioso e paciente conosco. O problema não está em Deus, mas em nós mesmos. É importante que verifiquemos nossa situação perante Deus (2Ts 1.5-10). Ele mantém as portas abertas (cf.Lc 15.11-32; 14.15-24), e nos atrai a entrar por elas. A paciência de Deus é chance, graça imerecida e dádiva. Os que crêem nele agem do mesmo modo (Gl 5.22). A demora de Deus não é má vontade. Se os cristãos enxergassem o tempo, a situação atual como oportunidade para agir, mais e mais haveria de crescer em nós o que é chamado de Santa Igreja (cf. hino 105). A palavra PISTIS, fé e confiança, descreve a ação cristã. Cabe a nós fazer valer o tempo da Igreja, o tempo de proclamar libertação. Tempo de mostrar interesse pelo que se passa na sociedade, no emprego, na América Latina, no mundo inteiro. Tempo de ser criativo, procurando descobrir formas adequadas para envolver pessoas num diálogo com Deus. A base de nossa existência crista é a oração e a intercessão. Assim se chega à certeza de que Deus é quem executará a salvação (Rm 8.37-39).
IV — Sugestão para a prédica
Imagino como ponto de partida uma pequena história: pessoas que se mudam do sul do pais, para o norte; de uma cidade para outra; de um país para o outro. Em qualquer um destes casos, as pessoas correm o perigo de traçar comparações entre a vida de antes e a de agora. Numa tal comparação, a vida anterior sempre sai ganhando. Quantas pessoas estão hoje, em áreas de colonização, em campos industriais, em bairros ou favelas, voltados para trás, acusando e lamentando. Neste contexto, o exemplo de uma viúva nos mostra como se pode enfrentar a vida.
A partir daí, a prédica poderia ser desenvolvida nos seguintes pontos:
a) Deus prometeu atender-nos (Pai Nosso);
b) Deus pede que lhe roguemos com toda a confiança;
c) Deus está decidido a nos libertar.
Como encerramento da prédica, convidaria a comunidade a ler o hino 222, estrofes 3 e 4.
V — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Bondoso Pai celeste! Uma semana de trabalho, preocupação e corre-corre findou. Chegamos a ti, com louvor por tudo o que fizeste por nós. Com que paciência tu nos acompanhaste! Reconhecemos que a nossa vida não se baseia em teu amor. Temos sempre muita pressa em ver resultados. Por isso fazemos cálculos, consultamos o computador, perguntamos colegas ou outras instâncias. Só quando não vemos mais nenhuma saída, nós procuramos por ti. Perdoa-nos essa falta de confiança em ti, e aumenta-a em nós. Senhor, tem piedade de nós!
2. Oração de coleta: Senhor, agradecemos-te, porque não desistes de amparar-nos e salvar-nos. Muitas pessoas, cheias de problemas e doenças, têm sido curadas, e, por elas e com elas, nós te agradecemos. Muitos voltaram bem do seu trabalho, das aulas e de suas viagens. Agradecemos-te por estas suas experiências. Mas também há muitos que ainda não encontraram em ti o seu libertador, o seu renovador, o seu salvador. Por isso pedimos: abençoa este culto, a pregação e o ouvir, para que possamos voltar aos nossos lares movidos pelo Espírito Santo. Amém.
3. Leitura bíblica: 1 Ts 5.1-6 (7-11). Neste texto são destacados o vigiar e o ser sóbrio, o que está na mesma linha que a viúva, que pede com perseverança.
4. Assuntos para a oração final: pedir que Deus nos dê mais fôlego, mais paciência para com os membros em dificuldades ou problemas de fé; que ele nos anime a olhar o mundo com mais simpatia e confiança, a fim de sermos exemplos neste sentido; que ele nos dê a força para tentarmos vida nova, não escolhendo falsos esteios, mas amparando-os nele mesmo; pedir pela Igreja e sua participação na missão de Deus; por seus membros que estão atuando em áreas governamentais e privadas, no ensino, no lar, nos hospitais; pedir também pelos que escolheram o caminho do Espiritismo, da Umbanda ou outro, para alcançar a salvação; incluir também aqueles que se colocam acima de tudo, como o juiz iníquo: os marginais, os ladrões, os traficantes e os exploradores.
VI — Bibliografia
– COENEN, L/BEYREUTHER. E./BIETENHARD, H. ed. Theologisches Begriffslexikon zum Neuen Testament. 3.ed. Wuppertal, 1972.
– GRAESSER, E. Meditação sobre Lucas 18.1—8. Göttinger Predigtmeditationen, Göttingen, 23 (4): 397-404, 1969.
– GRUNDMANN.W. Das Evangelium nach Lukas. In: Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament. Vol. 3. 2. ed. Berlin, 1961.
– JEREMIAS, J. Die Gleichnisse Jesu. S.ed. Göttingen, 1958.
– VOIGT, G. Meditação sobre Lucas 18.1-8. In: — Der rechte Weinstock. Vol. 2. Göttingen, 1968.