Prédica: Romanos 8.18-23
Autor: Otto Porzel Filho
Data Litúrgica: 4º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 29/06/1980
Proclamar Libertação – Volume: V
I – Tradução
V.18: Penso, com efeito, que os sofrimentos ao tempo presente não são para comparar com a glória que deverá revelar-se em nós.
V.19: Pois a ardente expectativa da criação anseia pela revelação dos filhos de Deus.
V.20: De fato, a criação foi submetida à vaidade – não por seu querer, mas por vontade daquele que a submeteu – na esperança
V.21: de ela também ser liberta da escravidão da corrupção, para entrar na liberdade dos filhos de Deus.
V.22: Pois sabemos que a criação inteira geme e sofre as , dores do parto até o presente.
V.23: E não somente ela. Mas também nós que temos as primícias do Espírito, gememos interiormente, aguardando a adoção de filhos, a redenção do nosso corpo.
II – Contexto e Delimitação
A delimitação da presente perícope não apresenta problemas maiores. Há, contudo, aqueles exegetas que acrescentam a ela os vv. 24-25 (e também 26-30). Vemos aí a clara intenção de ligar a perícope àquilo que já foi dito no v. 16, retomando assim a ideia da Importância do Espírito.
Observando bem, vemos também que entre os vv. 24-25 e os versículos anteriores há uma ruptura. Os vv. 18-23 abordam o expectativa da criação, enquanto que os vv.24-25 explicam o motivo da esperança do cristão. Temos assim os vv. 18-23 como um bloco Isolado dentro do contexto.
Como contexto maior teríamos 8.1-39, que poderíamos subdividir da seguinte maneira:
a) vv. 1-17 – Paulo diz que a total e radical mudança da situação do homem está fundamentada na dádiva do Espírito. Porque o homem agora tem como centro de sua vida o Espírito de Cristo e não mais a carne, ele está livre da perdição e da morte eterna.
b) vv. 18-30 – Aqui Paulo deixa bem claro: todo o sofrimento é a história do advento e do caminho para a glória e liberdade dos filhos de Deus. Todo tempo presente, bem como o sofrimento da criação, são partes integrantes da promessa da redenção.
c) vv.31-39 – Toda a nossa preocupação não tem mais sentido, pois Deus mesmo assumiu a nossa salvação. A nossa certeza da salvação não poderá mais ser abalada, pois ela se tornou a causa de Deus a nosso favor.
Assim, pois, a perícope encontra-se no contexto menor que são os vv.18-30, onde Paulo relaciona, intimamente, o sofrimento e a expectativa da criação com o sofrimento e a expectativa do cristão (da comunidade).
Dentro da própria perícope poderíamos efetuar ainda uma subdivisão, nos seguintes termos: O v.18 introduz um novo assunto e ao mesmo tempo vem destacar o que será tratado a seguir. Os vv. 19-23 contêm afirmações escatológicas em forma de teses sobre o sofrimento da criação. O v. 23 em especial fala de uma maneira clara sobre o sofrimento dos cristãos Esta subdivisão, contudo, apesar de ser possível, não é de suma importância para a prédica.
III – Exegese
Temos no v. 18 não uma nova tomada de posição de maneira bem lógica, mas antes uma conclusão teológica que é destacada por Paulo. Ele compara aqui o sofrimento presente com a glória que há de vir. Com isto, coloca a glória futura como uma descrição do mundo futuro. Uma comparação semelhante temos também em 2 Co 4.17. A glória de Deus será revelada no juízo final – para nós. Contudo, Paulo, ao comparar coisas tão distintas entre si, também tem em mente medidas distintas. O sofrimento presente que Deus distribui e a promessa da glória têm pesos diferentes. Se a glória futura será algum dia revelada, ela ocorrerá por vontade de Deus. Com isso é dito também que ela está presente em Deus. Para nós ela apenas pode ser levada em conta por olhos proféticos, mas continua sendo reservada para a eternidade. Temos assim no v. 18 uma confissão que Paulo assumiu, integrante agora de sua teologia.
O v. 19 passa a usar ideias apocalípticas em forma de teses. Vemos isto já na própria escolha dos termos, os quais demonstram que Paulo assumiu uma tradição anterior a ele. A tensa expectativa de toda a criação está voltada à revelação dos filhos de Deus. E por criação deve se entender aqui a totalidade daquilo que foi criado, e que aqui está contraposto aos filhos de Deus. O termo criarão usado por Paulo já despertou grande polémica entre os exegetas. Para alguns, criação quer aqui significar as coisas inanimadas, enquanto que, para outros, quer significar somente as coisas animadas. Em todo caso, hoje em dia esta polémica é desnecessária. Sabemos que toda a existência humana está intimamente ligada à natureza em sua totalidade. E isto fica cada vez mais claro à medida que descobrimos que ela não é algo inesgotável. Por isso, também a criação como um todo sofre- com a exploração indiscriminada. Assim deve ficar claro que a criação como um todo anseia por uma mudança. E esta só acontecerá quando da revela¬ção dos filhos de Deus. A revelação, por seu turno, deve ser entendida como sendo a glorificação dos mesmos, e sob o ponto de vista apocalíptico ela está intimamente ligada à renovação da criação como um todo.
No v.20 é dito que a criação está subjugada à vaidade. Aqui o termo vaidade tem por significado: inutilidade, falta de conteúdo, futilidade, desordem, aquilo que é passageiro. A criação não se apresenta mais como aquilo que ela realmente é, ou seja, como criação. Como consequência ela está fadada à deterioração, e isto, não por obra da própria criação. É possível que aqui se expresse uma alusão a Adão em Gn 3. Contudo, Paulo, neste contexto, quer chamar a atenção de que é Deus mesmo quem está em ação. Deus uniu a sorte do mundo com a existência amaldiçoada do homem.
O v.21 mostra o conteúdo da expectativa – esperança da criação. Esta criação não só será tirada do seu estado de escravidão, mas também terá parte na libertação dos filhos de Deus, os cristãos. Morte e perdição, que neste mundo têm poder, não existirão no novo céu e na nova terra. E Deus mesmo é que fará com que isto não aconteça. Ele permanece sendo o sujeito, e jamais a comunidade através de um processo evolucionário em direção à glória. Por isso é que toda a criação também geme e anseia, pois este gemer não é sem esperança. Todo este sofrimento é comparado, aqui, às dores do parto, onde, porém, a certeza de uma nova vida está presente.
Também os filhos de Deus devem experimentar, por um lado, a tensão do gemer e da permanente ameaça da morte, e, por outro lado, a libertação definitiva da escravidão. Também aqueles que receberam o Espírito gemem. Sim, até aqueles que já tem parte na nova vida ainda não estão livres das dificuldades do mundo presente. Que aqui se fala da comunidade está claro. Ela, justamente por possuir o Espírito, é diferente do mundo. Por isso é que o cristão reunido (em comunidade) pode ansiar pelo total recebimento da filiação divina.
Mesmo já tendo o Espírito e também a filiação divina, a maneira de viver do cristão ainda se encontra na tensão entre o velho e o novo. Somente quando acontecer a revelação da filiação divina em toda a sua amplitude é que ele tomará conhecimento da real forma e configuração desta filiação. Em outras palavras: isto acontecerá quando o corpo for redimido de sua transitoriedade.
Vemos, assim, que também os cristãos estão envolvidos na situação imperfeita do mundo com todas as suas consequências. Por isso, está também legitimado o seu gemer e lastimar. Simulta-neamente a criação e os cristãos são portadores da esperança da glória e da redenção.
IV – Meditação e Sugestões para a Prédica
A comunidade cristã como tal vive e existe a partir do Espírito de Cristo. Apesar disso ela continua sujeita ao sofrimento. O fim desta tensão ainda não aconteceu, ainda está à sua frente. Nesta linha vemos que há tentativas humanas, fundamentadas em Cristo, que querem amenizar essa tensão. O texto, porém, está interessado em mostrar que Deus mesmo está agindo para dar cabo dela. O centro e sujeito de toda e qualquer mudança é e continua sendo Deus.
Na prédica deve ser levado em conta que o próprio ouvinte está envolvido, no seu dia a dia, numa gama enorme de sofrimentos. No presente texto, quando se fala no sofrimento do fim dos tempos (v. 18), não só se pensa no sofrimento que tem a sua origem no sacrifício em favor de Cristo, mas também naquilo que produz medo, que é assustador, que sufoca, que é mau e que, consciente ou inconscientemente, quer impedir o fim dos tempos. Estes sofrimen¬tos justamente aumentam e se intensificam à medida que acontecem em nome de Cristo, por causa da sua vontade e a favor de Cristo. Por isso, cabe ressaltar que nem todo o sofrimento pode, sem mais nem menos, ser caracterizado como merecedor da glória divina. Temos assim, a partir do texto, que o sofrimento do tempo presente acontece em função do desconhecimento ou ignorância de Deus e da sua vontade.
O texto também enfoca, a libertação de toda a criação. Em poucos lugares do NT é abordado este tema. Por isso, a prédica não deveria perder esta chance tão rara de falar sobre o assunto. Deus quer o .bem do mundo. Quer a sua salvação. Ele prometeu a reconciliação com toda a criação. E este é o motivo que deve levar o cristão a não se satisfazer com menos, ou seja, a querer sempre a renovação da totalidade da criação no novo céu e na nova terra. Salvação do mundo e salvação da comunidade de Cristo estão ligados intrinsecamente. Contudo, na prédica faz-se necessário, em ambos os casos, estabelecer a relação que existe com Deus, assim como a que existe entre mundo e comunidade. A criação depende do agir de Deus, assim como a comunidade. A criação não existe por si e para si. Nós costumamos ver isto de maneira diferente. Deus por sua mão dirige a Igreja através das turbulências do mundo à salvação. O texto mostra justamente o contrário: o mundo necessite da comunidade para a sua salvação. E ambos estão à espera da revelação final de Deus. Esta esperança, da qual ambos estão imbuídos, torna-os dependentes e pobres. Este também é o motivo de a Igreja não ter necessidade de temer o mundo. A solidariedade no sofrimento, a espera pela libertação da parte de Deus não deve mais despertar medo e ameaças mútuas, mas sim o amor mútuo Por isso o medo não deve existir na Igreja, pois ela também reconhece o amor de Deus pelo mundo. É lá que ela o coloca em prática, é lá que ela o espera ansiosamente.
Deve ainda ser lembrado que o extermínio e a devastação indiscriminada da natureza, igualmente o uso inadequado de defensivos agrícolas, a técnica usada de maneira irresponsável caracterizam a culpa do homem em relação à incumbência recebida de Deus na criação. A criação, através da mão do homem, foi desfigurada a ponto de quase perder a qualidade de criação. Parece até que a relação do homem para com ela deixou de existir. Para o homem ela tornou-se apenas uma fonte de exploração indiscriminada. A natureza não parece ser mais criação. Este fato também é a dura realidade nas nossas comunidades, sejam elas urbanas ou rurais. E nisto tudo participam também os membros das nossas comunidades. Eles podem ser simultaneamente vítimas e agentes do sofrimento. A situação atual parece vir demonstrar que a criação estende os seus braços vingativos e faz do homem a sua maior vítima. Como exemplo, temos uma escassez cada vez maior de alimentos, petróleo, minerais etc.
O mundo todo sente, cada vez mais, a necessidade de colocar-se sob a vontade de Deus, à espera da sua revelação final. Nisto consiste justamente o seu sofrer.
Se a comunidade também não gemer, isto pode ser o sinal de que ela ainda não está levando a sério a sua própria realidade, ou então o faz de uma maneira totalmente errada. Pode também ser o sinal de que ela não leva Deus a sério, e que por isso não tem motivos para ter esperança. Contudo, se a comunidade está sofrendo, se ela está consciente do seu sofrimento, o texto deixa claro de que ela tem motivos para ter esperança, a saber, a própria promessa da redenção que ela recebeu de Deus.
V – A Prédica
A tarefa da pregação será bastante facilitada se estruturarmos a prédica de acordo com o próprio texto. O ponto de partida seria a revelação de Deus, na qual é dada a plenitude da vida (a glória) à criação e à comunidade (ao cristão). Teríamos assim:
1. O motivo do sofrimento
2. A relação com o sofrimento presente
3. O significado do sofrimento para o mundo
4. O significado do sofrimento para a comunidade.
Lembre-se, contudo, o pregador de que ele terá diante de si cristãos que muitas vezes não têm esperanças. E isto talvez se deva a uma orientação errada que recebeu na sua fé. Talvez o pregador também tenha diante de si aqueles que ignoram o ainda não e vivem numa falsa piedade do já. E Paulo aqui acentua a necessidade diária da conversão da carne.
VI – Bibliografia
– BRUNNER, E. Der Römerbrief. Stuttgart, 1948.
– BULTMANN, R. Theologie des Neuen Testaments. 6a. ed, Tübingen, 1968.
– MICHEL, O. Der Brief an die Römer. 12a ed., Göttingen, 1963.
– SCHMIDT, H. W. Der Brief des Paulus an die Römer. In: Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament. Vol.6. 3a. ed., Berlin, 1972.
– WINTER, F., Meditação sobre Rm 8.18-23. In: Göttinger Predigtmeditationen. Ano 22. Göttingen, 1967/68.