DIA DO COLONO
Gênesis 2.40-15 – Edmundo Grübber
I – Introdução
No Brasil, quase cada profissão ou função tem o seu dia comemorativo especial: Dia do Comerciário, do Soldado, da Imprensa, do Contabilista, do Bancário, do Professor, da Mãe, do Pai, da criança, etc. Entre estes e muitos outros, também o agricultor tem seu dia, o DIA DO COLONO, comemorado no dia 25 de julho.
Se perguntarmos por que p dia 25 de julho, talvez encontremos a resposta na história da imigração. Foi no dia 25 de julho de 1824 que a primeira leva de imigrantes alemães aportou em São Leopoldo, RS. Por longos anos, no Rio Grande do Sul, esse dia foi, e em certos lugares é até hoje, lembrado como Dia do Imigrante. Mas com o correr dos anos foi transformado em Dia do Colono, visto que o imigrante foi chamado e veio para colonizar, para cultivar o RS.
Reputo como justa essa transformação, pois o Dia do Imigrante facilmente nos induz a falar e evocar a memória dos imigrantes, enaltecendo-os, muitas vezes até com exagero, sem conseguirmos deixar uma mensagem vivencial aos que nos ouvem e que têm as suas preocupações, sem serem imigrantes.
O dia 25 de julho é também consagrado aos motoristas. Aqui nesta reflexão queremos, porém, considerar e ter em mente apenas o dia 25 de julho como DIA DO COLONO.
Para a pregação neste dia, escolhi como texto base Gn 2.4b-15. Este texto está inserido num contexto maior, a saber Gn 2.4b 3.24, e forma uma unidade que, por Westermann, é intitulada Criação do homem – culpa e castigo. Escolhi-o porque nele temos um resumo de toda a criação, inclusive do homem, como também a indicação das tarefas, das atribuições do homem dentro desta criação, principalmente em relação à terra, ao seu meio ambiente. E, por ser a intenção da prédica falar sobre o relacionamento e a responsabilidade que o homem tem pela criação, pela terra, mormente o homem que lida diretamente com ela, o colono, creio ser este um texto apropriado para o Dia do Colono.
II – Análise geral do texto e seu contexto
Lendo todo o cap. 2, a partir do v.4, chama-nos a atenção o fato de ocorrerem certas repetições (cf. v.8 e v.9; v.8 e v. 15); além disso, também encontramos versículos que nos dão a impressão de não estarem bem situados dentro do texto (cf. vv.10-14). Com base nestas observações, estudiosos do Antigo Testamento constataram que aqui foram usados, compilados e juntados, pelo autor de Gn 2, vários relatos que existiam isoladamente (von Rad). Relatos estes que, muito antes de serem fixados por escrito, circulavam oralmente
De acordo com Westermann, podemos afirmar que G n 2.4b-8,18-24 é um relatório original e autônomo, enquanto que os vv. 9 e 15-17 são parte integrante de um segundo relato e os vv.10-14, de um terceiro. Contudo, o texto, assim como se apresenta, forma um todo, podendo ser descrito o seu surgimento da seguinte maneira: O autor do cap. 2, conhecido como Javista (J), iniciou o seu relatório e, chegando na altura do v.8, para maior clareza e descrição do jardim, incluiu, de um outro relato, o v.9, abrindo em seguida um parêntese para incluir os vv.10-14 que nos autorizam a identificar o jardim do Éden com a terra (D. Michel). O v. 15 retoma o assunto do v.8 e dá continuidade ao relato. Do texto da pregação excluímos os vv.16-17, pois estes preparam o tema do cap. 3 (D. Michel).
Nosso texto é, pois, um segundo relatório sobre a criação, porém, com outro acento do que o primeiro. Comparando os dois relatos, Gn 1.1-2.4a e Gn 2.4b-24, observamos que, no primeiro, Deus passa a pôr ordem no caos existente e o homem é criado, entre as outras criaturas, no final das obras criadas; já no segundo, o homem é formado e o restante da obra, até poder-se-ia dizer, é criado em função do homem. O primeiro relato fala mais do universo, enquanto o segundo, do mundo que fica mais próximo ao homem, do seu meio ambiente (terra cultivável, jardim, animais, mulher). Esse fato nos dá o tema gerai do segundo relato: o relacionamento entre o homem e a terra. (G. von Rad)
Apesar de encontrarmos em Gn 1 e 2 relatos distintos sobre a criação, constatamos que, em ambos, o homem é destaque e é sobre ele que recai o interesse principal dos dois relatos, acentuando-se, em ambos, seu encargo e sua relação íntima com seu Criador (M. Volkmann).
III – Análise de detalhes
Após a análise geral, podemos subdividir o texto da seguinte maneira:
vv.4b-6: introdução
v.7: formação do homem
vv.8-9: disposição de área e alimento para a vida do homem
vv.10-14: localização do jardim, da área disponível
v. 15: tarefa do homem
Vv.4b-6. Descrever a situação antes da criação foge à nossa capacidade, como fugiu à capacidade do autor de nosso texto. Ele resolveu, no entanto, o problema de uma maneira simples, afirmando que isto e aquilo não existia. Não havia plantas e não havia o homem (v.5). E, a partir dessa afirmação, parte o autor para a descrição daquilo que segue. Ele não está preocupado ou interessado tanto naquilo que havia antes. O seu interesse é a criação, a obra de Deus e, dentro desta obra, o homem e seu relacionamento com o Criador e a terra, como destaque.
V.7: Assim como o v.5, também o v.7 evidencia esta íntima relação entre Deus-homem-terra e, vice-versa, terra-homem-Deus. O v.5 destaca esse relacionamento, quando diz que a terra ainda nada produzira porque Deus não fizera chover sobre a terra, e porque não havia homem para lavrar o solo. O v.7, por sua vez, fala do homem formado por Deus do pó da terra. Em hebraico, para homem, é usada a palavra ‘ADAM e, para terra, ‘ADAMAH. Também nessas duas palavras, já por sua semelhança ortográfica, se expressa nitidamente a ligação homem-terra. Mesmo que o autor não o entenda literalmente assim, essa expressão deixa claro o relacionamento entre Deus-homem-terra e vice-versa. O homem é formado do pó da terra, quer dizer: o homem recebeu o seu ser de Deus e é formado de elementos pertencentes à terra, de elementos transitórios. Deus dá a vida e a retira novamente, voltando o homem a ser terra, da qual foi formado (Gn 3.19).
Vv.8-9: Criado o homem, Deus coloca à sua disposição uma área e providencia para que a sua criatura tenha alimento para sobreviver. Cf. v.8: Deus planta um jardim no Éden e coloca nele o homem. Este jardim, cf. Gn 3.7 e Ez 31.8s, é um conjunto de árvores. Dificuldades nos proporciona a localização geográfica do Éden, cujo nome significa lugar de delícias. Também os vv.10-14, com os quais o autor, ao nosso ver, tenta definir melhor a localização, não nos permitem uma fixação clara. O v.9 é, em parte, uma repetição do v.8, mas especifica melhor as espécies de plantas que havia no jardim: toda sorte de árvores agradável à vista e boa para alimento. Além disso, informa o v.9 sobre uma árvore da vida e uma do conhecimento do bem e do mal. (De acordo com Westermann e outros, foram aqui unificados dois relatos de origens e significados distintos. Originalmente só era mencionada a árvore no meio do jardim, sem nome específico. Mas com a inclusão de parte de um relato sobre a árvore da vida, conhecida e citada em mitos de muitos povos antigos, também a árvore no meio do jardim teve que receber um nome. Dessa forma, foi-lhe atribuído o nome de árvore do conhecimento do bem e do mal.) É verdade que o v.9 ainda não dá uma definição detalhada sobre as espécies de plantas e árvores no jardim. Cremos que também não é essa a intenção do autor. O que ele quer dar a entender com os vv.8 e 9, é que o jardim oferecia todas as condições de vida ao homem.
Vv.10-14: Temos aí um relato isolado sem qualquer ligação com os acontecimentos seguintes. Tampouco o autor volta a se referir a esta passagem num outro contexto. É, pois, impossível, à base destes versículos, determinar o local geográfico do Éden. Também não sabemos se o autor e seus conterrâneos tinham em mente um determinado lugar. Mas, de acordo com os conhecimentos atuais, podemos afirmar que aqui se trata do início da história da humanidade nesta terra (D. Michel). Com a figura do rio que rega o jardim e se divide em quatro braços (cf. v.10), o autor nos permite identificar o Éden com o mundo, a nossa terra. G. von Rad lembra, nesse contexto, que o número quatro simboliza a totalidade do mundo (cf. Zc 1.18ss – os quatro chifres representam as nações do mundo).
V.15: Este v. retoma, como já dissemos anteriormente, o assunto do v.8 e acrescenta as atribuições do homem neste jardim. Ele deverá cultivá-lo e guardá-lo, isto é, protegê-lo contra toda e qualquer destruição. O homem foi, segundo o v.15, colocado na terra para administrá-la responsavelmente com amor, em nome de Deus, o legítimo proprietário (Lv 25.23; SI 24.1).
IV – Meditação
Dia do Colono! Dia que nos faz pensar naquelas pessoas que trabalham na terra, na roça, como lavradores, agricultores, granjeiros, chacareiros, quer sejam proprietários, arrendatários, meeiros, agregados ou posseiros. O Dia do Colono nos faz refletir sobre o trabalho e suas alegrias e tristezas, sucessos e dificuldades.
Consulto o dicionário, para ver qual a definição que dá à palavra colono, e obtenho a seguinte informação: Colono: membro de uma colônia; cultivador livre de terra pertencente a outrem. De fato, colono é uma pessoa ligada à colônia, à terra, mais do qualquer pessoa de outra profissão. E a terra que ele cultiva livremente, na verdade, pertence a outrem, pertence a Deus, o Criador (Lv 25.23 e SI 24.1).
Que mensagem vamos deixar para os nossos ouvintes no Dia do Colono? Que mensagem nos transmite o nosso texto?
O texto nos faz lembrar e falar da íntima ligação, do íntimo relacionamento que deve haver entre Deus-homem-terra e, vice-versa, terra-homem-Deus. O v.5 menciona que a terra ainda nada produzira, porque Deus não fizera chover sobre a; terra e porque não havia homem para lavrar o solo. Por outro lado, é dito no v.7 que o homem é formado do pó da terra. Mesmo que o autor não o entenda literalmente assim, esta expressão deixa claro o relaciona¬mento entre Deus-homem-terra e vice-versa. O homem é formado de elementos pertencentes à terra, de elementos transitórios. Deus lhe dá a vida, ao soprar nele o fôlego da vida (v.7), e é Deus que a retira novamente, voltando o homem a ser terra, da qual foi formado (Gn 3.19). O homem depende de Deus e da terra.
O homem também não é o dono exclusivo e absoluto da terra. Ela apenas lhe foi confiada para que, durante um certo período de tempo, tivesse onde viver e onde obter a sua alimentação (cf. vv.8-9). No fim da vida, ele voltará a ser pó (Gn 3.19). A terra é propriedade de Deus, o Criador da mesma (Lv 25.23; SI 24.1). O homem, na realidade, não é o dono, mas o mordomo, o administrador da terra, devendo prestação de contas sobre sua administração a Deus, o autêntico proprietário (cf. 1 Pe 4.5; Ec 11.9etc.).Deus quer que o seu administrador cultive e guarde (proteja) a terra contra toda e qualquer destruição (cf. v.15). A terra, com o que ela produz, deve servir para o sustento do homem (cf. v.9), sendo que ele deverá, com o seu trabalho responsável, contribuir para que ela produza e seja protegida contra a destruição. Ele deverá lavrar o solo (v.5), cultivá-lo e guardá-lo (v.15).
Qual é, no entanto, a realidade que nos cerca? Estamos agindo como Deus quer? Estamos conscientes de que somos administradores, de que devemos prestar contas sobre a nossa administração? Que é que podemos observar ao nosso redor? Observamos bem o contrário daquilo que o nosso texto expõe e do que Deus quer. O homem começou a explorar a terra de uma maneira abusiva e irresponsável. Em parte, motivado por seu egoísmo e pela ganância. Por outro lado, levado pela propaganda da sociedade de consumo em que vivemos, e na qual o homem vale pelo que produz e não pelo que é. Para satisfazer o seu eu e para cumprir o que a propaganda desta sociedade de consumo exige, o homem começou a destruir despreocupadamente o jardim em que foi colocado. E o resultado está aí: Erosão; lagos tendem a secar devido ao grande volume de terra que neles entra por ocasião das enxurradas. Os rios transformaram-se nos maiores condutores e exportadores de terra para os lagos. A terra fértil transforma-se em deserto. Há grande ameaça no Rio Grande do Sul de que, em poucos anos, grande parte do estado se transforme em deserto. Já foram descobertos inícios de desertos na zona da campanha. Estes são como o câncer. Vão penetrando terra a dentro, deixando atrás de si somente areia. O que resta da fauna é destruído, quer por caçadores irresponsáveis, que matam pelo simples prazer de matar, quer pelo envenenamento através do uso irresponsável e indiscriminado de defensivos agrícolas. Enfim, o homem, para satisfazer o seu egoísmo, a sua ganância, destrói a obra criadora de Deus e, muitas vezes sem que se dê conta, a si mesmo.
Mas o homem não pára por aí. Ele não só destrói os animais, a natureza, mas, para alcançar os seus objetivos, não teme e não hesita em passar por cima de seu semelhante. Explora e se apodera do que é do outro. Quantos pequenos agricultores são incentivados e, muitas vezes, até obrigados a vender as suas terras para os grandes e, assim, despachados para a cidade onde, com toda a certeza, serão marginalizados? Quantas pessoas, menos bem preparadas, são enganadas com palavras bonitas e então exploradas? Quantas pessoas, também muitos membros da IECLB, aproveitam-se das terras dos índios, mesmo sabendo que não o devem fazer, só para aumentar os seus lucros e satisfazer a sua ganância? Como ficamos em relação ao 7o mandamento, do qual M. Lutero diz na sua explicação: Devemos temer e amar a Deus, para que não tiremos do nosso próximo o seu dinheiro ou os bens, nem nos apoderemos deles por meios ou negócios fraudulentos; devemos, porém ajudá-lo a melhorar e conservar os seus bens e tudo que lhe pertence, índio também é gente! índio também é nosso próximo! Todos têm direito a um pedaço de terra, pois em Ec 5.9 lemos. O proveito da terra é para todos. Deus é contra a exploração gananciosa e irresponsável da terra. Os profetas não deixaram dúvidas quanto a isso (cf. Mq 2.1-2; Is 5.8).
E por que esta situação? Porque o homem se afastou de Deus; porque interrompeu a ligação, o relacionamento íntimo que deve haver entre Deus-homem-terra e vice-versa. Ele se arroga o direito de querer ser o senhor, o dono absoluto de si e da terra. E Isto é pecado!
Pensando em tudo isso, assalta-nos a pergunta: Que é o homem, que Deus dele se lembre? (SI 8.4). Pois, apesar de tudo, Deus se lembra do homem e lhe dá sempre novas chances. O presente culto é uma dessas chances. A maior prova dessa chance é Cristo, que veio para nos reconciliar com Deus. E todo aquele que aceita esta chance, que aceita Cristo e sua obra salvífica, é feito nova criatura (2 Co 5.17). E, como nova criatura, deixará de ser egoísta e explorador ao ponto de destruir tudo ao seu redor. Como nova criatura, começará a ter outro relacionamento com o seu próximo, com a terra, a natureza, enfim, com o seu meio ambiente. Como nova criatura, deixará de pensar só em si e em seus lucros imediatos. Como nova criatura, lembrar-se-á também daqueles que virão depois, dos seus filhos, netos e bisnetos, que têm o mesmo direito de viver.
Nesta situação temos, como igreja cristã, uma missão. Precisamos alertar, precisamos denunciar, conscientizar e ajudar a construir um mundo mais justo, mais humano, onde reine paz, tranquilidade e harmonia entre toda a criação de Deus. Precisamos ajudar para que o íntimo relacionamento entre Deus-homem-terra e vice-versa seja reestabelecido, para que todos possam viver em dignidade e como seres humanos.
V – Sugestão para a prédica
Poder-se-ia, praticamente, seguir a linha de pensamento da meditação, isto é:
a) partir do Dia do Colono e fazer uma análise da situação e da realidade em que vive e se encontra o colono, ao qual se dirige o pregador;
b) compará-la com a mensagem do texto;
c) alertar, denunciar o que está mal e conclamar para a reconciliação e consequente transformação, para a qual Cristo nos capacita.
VI – Bibliografia
– RAD, G. v. Das erste Buch Mose. In: Das Alte Testament Deutsch. Vol. 2-4. Göttingen, 1953.
– WESTERMANN, C. Meditação sobre Gen 2.4-15. In: Calwer Predigthilfen. Vol. 6. Stuttgart, 1971.
– MESTERS, C. Deus, onde estás? Belo Horizonte, 1972.
– MICHEL, D. Israels Glaube im Wandel. Berlin, 1968.
– VOLKMANN, M. Quem sou eu? São Leopoldo, 1974.
– KÖHLER, L. Theologie des Alten Testaments. Tübingen, 1953.