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QUINTA-FEIRA SANTA

O SANGUE DA ALIANÇA 

Marcos 14.17-26 (Leitura: Salmo 146) 

É a última ceia de Jesus com seus discípulos. É uma ceia festiva, a ceia pessoal. Eles «comiam a páscoa», como se dizia em Israel. Para celebrar a libertação do povo de Deus do Egito, no dia da páscoa, os judeus costumavam matar um cordeiro, cuja carne era comida durante um banquete festivo.

É uma ceia festiva, sim. Jesus celebrava tais refeições festivas com seus discípulos, assim como também participava de outras refeições que tinham caráter de festa — como a do casamento de Caná (João 2), ou do banquete que lhe preparou Levi (Lucas 5). Jesus e seus discípulos não rejeitavam horas festivas. Não eram pessoas tristonhas que viviam jejuando, de caras sérias e abatidas, como se as coisas boas desta terra não fossem dádivas de Deus. Mas esta ceia festiva de que fala nosso texto é diferente das outras. Uma sombra cai sobre aquela mesa coberta de pão, de vinho e de carne de cordeiro. Uma tristeza sem igual pesa nos corações dos discípulos que rodeiam a mesa, junto com seu mestre. É a sombra da cruz — é a tristeza que antecede a despedida, a separação entre os discípulos e seu mestre amado. E esta tristeza se torna mais dolorosa, enquanto vão comendo o cordeiro que os discípulos tinham preparado com carinho naquela sala ampla e mobiliada, naquele «cenáculo», que um habitante de Jerusalém tinha posto à sua disposição. Pois, enquanto estão à mesa, comendo, Jesus diz: «Em verdade, em verdade vos digo que um dentre vós, o que come comigo, me trairá.» 

Um dentre vós me trairá! Será possível que um daqueles doze homens que tinham seguido Jesus por três anos, que tinham anunciado com ele o evangelho, será capaz de trair Jesus? E um susto ainda maior cai sobre os discípulos — uma incerteza, uma insegurança referente a sua própria fé, sua própria fidelidade: «Eles começaram a entristecer-se e a dizer-lhe, um após outro: Porventura sou eu?» — Notemos bem: Os discípulos não apontam o dedo para ninguém. Não dizem: Olhem, é este lá, o Judas. É dele que já estamos desconfiando há muito tempo. Cada um pensa na terrível possibilidade de ele mesmo ser capaz de se tornar o traidor de Jesus. E não devemos pensar que eles perguntaram só para fazer de conta. Eles realmente estavam duvidando de si mesmos — pois sabiam que a hora se aproximava em que seu pastor seria ferido, e eles, suas ovelhas, seriam dispersas, hora em que todos eles deveriam provar a sua fé em Jesus. Sabiam que Jesus seria preso, torturado e morto. Com o Senhor presente, sob a sua orientação tinha sido fácil, ser discípulo. Mas a quem eles vão seguir, se o mestre lhes for tirado? — «Será que sou eu quem vai fraquejar na fé? Será que sou eu, quem vai desistir, quem vai ter medo da perseguição e do sofrimento?» — «Foi um engano — estava tudo errado — eis aí o homem — este Jesus é o culpado .. .» 

Vejamos que um discípulo de Cristo não é nenhuma pessoa que confia cegamente em si mesma. Ele sabe que nas horas decisivas mesmo, o homem não é dono de seu coração. E se um deles se esqueceu disto por algum momento, os próprios fatos em breve vão lembrá-lo de sua fraqueza. Não — sem a presença de seu Senhor, um discípulo é que nem ovelha rodeada por lobos. E Jesus deixa os doze naquela incerteza, voltando a dizer: É um de vocês, os doze, um que mete comigo a mão no prato! E acrescenta palavras que devem ter atingido o coração de todos os discípulos, que nem espada afiada: «O Filho do homem vai, como está escrito a seu respeito. Mas ai daquele, por intermédio de quem o Filho do homem está sendo traído! Melhor lhe fora não ter nascido!» 

Jesus sabe quem vai ser o traidor. Por que ele não o aponta? Por que não diz que é este malvado lá, o Judas, o ingrato, o falso? Por que Jesus não excomunga Judas? Agora não seria a hora indicada para excomungar aquela ovelha negra que já tramou com o lobo a entrega do próprio pastor? Não. Jesus não excomunga Judas. Jesus não o manda embora para o escuro. Ninguém de nós é excomungado por Jesus. O discípulo que abandonar o seu mestre, se excomunga a si mesmo. É quando ele se afasta dele, apesar de ter experimentado o seu amor, a sua comunhão. Apesar de ter sido avisado, apesar de ter sentido como Jesus fica triste com sua saída, como ele não quer perder nenhum daqueles que o Pai lhe tem dado.
Sim, a última ceia de Jesus com seus discípulos vai sendo sombreada por incerteza, por angústia, por dúvida inquietante. A grande crise se aproxima, a grande tentação. O coração dos discípulos estremece: Será que é o fim de sua vida com Jesus? Será que é o fim de sua comunhão? Será que é a última ceia que celebrarão com ele? «

E, enquanto comiam, tomou Jesus um pão e, abençoando-o, o partiu e lhes deu, dizendo: Tomai, isto é o meu corpo. A seguir, tomou um cálice, e, tendo dado graças, o deu aos seus discípulos; e todos beberam dele. Então lhes disse: Isto é meu sangue, o sangue da nova aliança, derramado em favor de muitos,» Não. Esta não é a última ceia que Jesus celebra com seus discípulos. Bem ao contrário: É a primeira Ceia do Senhor. É verdade: Ele não beberá mais com eles do fruto da videira, enquanto este mundo durar. Mas a sua morte na cruz não será o fim da comunhão que existe entre eles. Pelo contrário: Esta comunhão, após a sua morte, terá uma nova base: A vida que Jesus entrega ao seu Pai, como sacrifício vivo por todos os homens, será o fundamento desta ceia, será seu conteúdo, seu poder. No momento em que eles estão reunidos naquele cenáculo, em Jerusalém, ainda não se realizou aquele sublime sacrifício. Mas Jesus o antecipa, já que ele entregou sua vontade à vontade do Pai, já que ele aceitou a cruz, em obediência filial. Assim, já agora pode distribuir os frutos de seu sacrifício. 

«Tomai, isto é o meu corpo.» O pão abençoado, pão que alimenta, que sacia, que dá forças: Isto é meu corpo! — Palavras que são um mistério, palavras que só se revelam ao que tem fé; ao que, aceitando aquele pão, oferecido por Jesus, aceita o próprio Senhor, Palavras que não querem ser entendidas em sentido materialista ou mágico (veja que Jesus, com seu corpo e sangue físicos, está distribuindo o pão e o vinho!), mas que também não devemos entender em sentido figurativo («É como se eu estivesse presente neste pão …»). Palavras que só entenderemos, obedecendo ao «Tomai» de Jesus, isto é, participando de sua Ceia com fé! 

«Isto é meu sangue, o sangue da aliança, derramado em favor de muitos.» O vinho, pelo qual ele tinha dado graças vinho, que revigora, que desperta, que alegra: «Isto é meu sangue.» Sangue é vida. Sangue derramado é vida dada, vida sacrificada. Não é sangue semelhante ao sangue de animal sacrificado. O cordeiro e o novilho são levados à força ao altar de sacrifício. O Filho do homem dá a sua vida sem ser forçado. Ele a dá em obediência livre, por amor. E este seu sangue não será apenas derramado em favor dos doze discípulos aí presentes. Será derramado em favor de muitos. Em favor de inúmeros pecadores que em todas as terras e em todos os tempos se haverão de ‘reunir em redor da mesa do Senhor. Será o sangue da Aliança. Da Nova Aliança, do Novo Testamento. Esta Nova Aliança não será feita com um povo único como a Antiga Aliança, feita entre Deus e Israel. Será feita com um povo diferente, um povo que se reunirá, proveniente de todos os povos da terra. Muitos virão do oriente e do ocidente, do norte e do sul, e tomarão lugares à mesa, no reino de Deus. Na casa do Pai de Jesus há muitas moradas! 

O sangue de Cristo não é nenhuma substância mágica. Não é nenhum remédio que se tome contra o pecado. O sangue de Cristo é a vida do Cristo vivo — vida que ele nos dá, da qual nos faz participar. É o sangue da Nova Aliança, é perdão, é vida nova, é comunhão, é coração novo. É vida reconciliada, vida dada por Deus, que não mais terminará, vida que já antecipa a vida eterna. 

«Isto é o meu corpo — isto é o meu sangue!» Cristo diz: Sou eu mesmo que me entrego, que me dou, sou eu mesmo que estarei presente entre vós. Estarei presente como vosso Senhor, que deu sua vida por vós e que ressurgiu para uma nova existência — existência de poder e de graça. Não vos deixarei órfãos. Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estarei em seu meio. A Nova Aliança, estabelecida por meu sangue derramado, é mais poderosa do que a Antiga. Na Antiga Aliança, são os homens que oferecem o sacrifício por seus pecados. Na Nova Aliança, é o próprio Deus que oferece o sacrifício. Tomai e comei! Tomai e bebei! Não temais, sou eu! A comunhão de mesa que tereis comigo será comunhão de vida. Vai levar-vos a dardes a própria vida já que eu abri o caminho para a nova obediência filial. A comunhão baseada em meu corpo e em meu sangue não depende do poder de homens, não está sujeita a poderes malignos. Onde eu estiver presente, haverá vida, perdão e paz! 

São apenas doze, os que comungam com Jesus, na primeira Ceia do Senhor, na primeira Eucaristia. E um deles toma o corpo e o sangue do Senhor para o próprio juízo. Mas as palavras de Jesus que o sangue da aliança será derramado em favor de muitos — apontam para fora do cenáculo. Apontam para as ruas da cidade, para as casas, para os lugares de trabalho. Apontam para o norte e para o sul, para o oriente e para o ocidente. Apontam para o futuro — e apontam para nós. Deus seja louvado: Elas apontam para nós. O sangue da aliança foi derramado em nosso favor também. Nós é que fomos convidados para a comunhão de Cristo. O nosso pecado já foi expiado, nossa vida já foi regenerada por Cristo. Ele nos convida — assim como somos. Ele nos quer como hóspedes que tenham comunhão total com ele. Ele nos dá tudo que tem. Não reserva nada para si. Assim, não nos excomunguemos a nós mesmos! Não fiquemos fora, no escuro, na solidão! «Este é o meu corpo, este é o meu sangue»: Aceite o que Jesus lhe oferece, e passe o convite adiante, em gratidão e alegria. Ainda há muito lugar na mesa do Senhor. 

Oremos: Senhor e Salvador. Nós te agradecemos por também teres convidado a nós para tua mesa. Louvado sejas, Senhor; pois tu não nos dás apenas o pão e o vinho: Com o pão e o vinho nos dás o teu corpo e o teu sangue, dás a ti mesmo, dás vida e salvação. Senhor: Sem ti, nada podemos fazer. Fortalece a nossa comunhão contigo. Atrai-nos à tua mesa. Ajuda-nos a vencermos as nossas dúvidas e a nossa descrença. Fortalece o nosso amor aos irmãos, e lembra-nos em nosso dia-a-dia de que teu sangue foi derramado em favor de muitos. Amém.

Veja:

Lindolfo Weingärtner 

Lançarei as redes – Sermonário para o lar cristão

Editora Sinodal

São Leopoldo – RS