|

 

Culto de investidura
na presidência da ieclb

Pregação feita em Porto Alegre,

em 20 de dezembro de 2002

Senhor, abre nossos ouvidos, nossas mentes e nossos corações para receber tua palavra, e minha boca que proclame o teu louvor. Amém

1 Pedro 3.15
Santificai a Cristo, como Senhor,
em vosso coração,
estando sempre preparados para responder
a toda aquela pessoa que vos pedir razão
da esperança que há em vós.

Estimadas irmãs e estimados irmãos da IECLB e de igrejas-irmãs, autoridades, irmãs e irmãos em Jesus Cristo!

Ouçamos a mensagem do apóstolo, refletindo-a do fim para o começo. Demos cinco passos.

O primeiro passo é a esperança. Somos uma comunidade da esperança. Isso não é tão natural. Mas ainda assim é uma característica fundamental da fé cristã. No calendário litúrgico estamos no Advento, por excelência o período da espera. Já próximos ao Natal, quando a espera chega ao seu fim, no duplo sentido de cessação e de cumprimento da espera. Ou seja: na esperança olhamos com confiança para o futuro. Aliás, esperança é espera com confiança. Outra passagem da Escritura, em Hebreus 11.1, define a própria fé como “a certeza de cousas que se esperam, a convicção de fatos que se não vêem”. Ou seja: a fé enxerga para além do momento e das condições atuais. A fé detecta realidades que não são percebidas por quem ainda não recebeu o dom da fé. Como seja, olhamos à frente. Nós que hoje estamos aqui reunidos temos o coração grato, grato a Deus que tem acompanhado a IECLB em sua trajetória, grato pelas suas comunidades, coração grato pela caminhada da IECLB em suas relações ecumênicas, grato pelo testemunho que ela tem podido dar e pelo serviço que tem podido prestar em nosso país. Mas nos reunimos como comunidade da esperança de quem sabe que ainda há novas responsabilidades a assumir, uma missão a desempenhar, novos serviços a prestar. Temos sonhos, também para a IECLB, temos planos, temos compromissos. Fomos vocacionados, ainda que em funções diferentes, vocacionados, cada um, cada uma de nós, como membros do povo de Deus. E confiamos na promessa proferida por Jesus a seus discípulos: “Eis que estou convosco todos os dias até a plenitude dos tempos.” (Mateus 28.20)

Somos comunidade da esperança. À primeira vista, quando falamos de esperança, parece que se trata de um dado universal. Não temos visto nos últimos tempos, em nosso país, um renascer da esperança, também como expectativa confiante para nosso futuro como país e como povo, e isso em meio a gravíssimas dificuldades? De fato, a esperança tem sido uma das molas propulsoras da história da humanidade. Que pobre, por exemplo, seria o projeto de pessoas e partidos na política, se não nutrissem nenhuma esperança, se não acalentassem sonhos, se não tivessem visões de um futuro melhor?

Ainda assim, há esperanças e esperanças. Qual é seu conteúdo? Ela tem razão de ser? Ou seria um falsa esperança, uma esperança ilusória que nos irá frustrar? E com isso estamos em nosso segundo passo: a razão da esperança. Pois todos conhecemos também esta realidade: a dolorosa experiência de esperanças frustradas.

Certamente, em nível pessoal todos nós, todas nós aqui reunidos poderíamos enumerar esperanças que tivemos, não se concretizaram, e hoje já não alimentamos, simplesmente não podemos mais ter. Esperanças que se foram ao vento… A experiência ensina que também esperanças coletivas, dos povos, podem ser gravemente frustradas, seja porque as pessoas em quem o povo confiou traíram intencional e gravemente a confiança nelas depositadas, seja porque as condições políticas e econômicas tolhem suas ações. Quando o ditado brasileiro diz que “a esperança é a última que morre”, afirma, sim, que a esperança é uma dimensão humana muito forte, mas também reconhece que esperanças acabam, nem que seja por fim.

E não nos iludamos: a igreja não está imune a esse processo de morte das esperanças. A história da Igreja poderia ser escrita, por alguém que tivesse esse objetivo, por este viés: o das esperanças que a própria Igreja gravemente frustrou. Igrejas abençoaram e até mesmo conduziram guerras, legitimaram a escravidão e o racismo, abandonaram os pobres à própria sorte. Eu disse antes que estamos reunidos com gratidão pela IECLB. Mas é forçoso reconhecer: também a história da IECLB poderia ser escrita pela viés de suas falhas, suas omissões, seus pecados. Por tempos os valores culturais e étnicos foram mais fortes do que os evangélicos, por vezes as limitações financeiras provocam ou, quem sabe, ocultam um insensibilidade para com as necessidades dos irmãos e das irmãs. Se olhamos para a Igreja como um todo, a Igreja de Cristo, reconhecemos como escândalo resistente sua divisão, sua crescente fragmentação, apesar de todos os esforços ecumênicos. A cada aproximação parecem corresponder dez novas divisões no corpo de Cristo.

Não temos o tempo nem é esta a oportunidade para nos estendermos mais nessa necessária admissão de nossos pecados. Mas é forçoso reconhecer: a razão da nossa esperança não pode residir nas nossas qualidades pessoais, nos nossos conhecimentos intelectuais, mesmo que teológicos, nas nossas capacidades administrativas, muito menos nas estruturas e regulamentos eclesiásticos, muitas vezes construídos com tanto empenho. Nem mesmo o melhor de nossos empreendimentos constitui razão suficiente e confiável para uma esperança que não tenha fim, que não venha a morrer.

Demos o terceiro passo: somos interpelados, somos questionados. Qual é a razão de nossa esperança? Por isso o apóstolo também diz que devemos “estar preparados” para dar a razão de nossa esperança a qualquer pessoa que nos interpele. Em verdade não se trata de saciar a curiosidade de outras pessoas: em que acreditamos ou não acreditamos. Não é um pesquisador do IBOPE que nos pergunta, por exemplo, se acreditamos na existência do diabo, para depois transformar nossas respostas em percentuais estatísticos. Não é um inventário das crenças ou das crendices que o apóstolo tem em mente.

Que é então? Somos perguntados, primeiramente, pelo fundamento de nossa existência, pela orientação de nossa vida. Quem nos pergunta está existencialmente movido. Quer saber em que se pode confiar – ou melhor: em quem se pode confiar. O que podemos apresentar, pelo que valha a pena viver? Viver e morrer; morrer e ressuscitar. É uma resposta última, definitiva que se espera da proclamação cristã. Uma resposta que tenha consistência em meio às dúvidas, às precariedades, às transgressões.

Ainda mais, porém: somos, em segundo lugar, também questionados no sentido da credibilidade de nossa resposta. Se a história da cristandade está carregada de tão graves pecados, que podemos apresentar que seja digno e merecedor de que se creia? A fé será sempre uma ousadia, provavelmente uma petulância para quem não crê. Vale a pena a ousadia da fé? Qual é a razão de nossa esperança?

Mais uma vez, portanto: precisamos estar preparados. Isso, sem dúvida, inclui a instrução, o conhecimento. Numa igreja luterana sempre se tem enfatizado a importância da educação, da formação, da capacitação. Ainda que esse processo educacional muitas vezes tenha se concentrado unilateralmente na capacitação de obreiros e obreiras, particularmente pastores e pastoras, a convicção e a concepção tem sido a de que todas as pessoas, indistintamente, devem ter acesso ao conhecimento da Palavra de Deus. Por isso a afirmação teológica do “sacerdócio universal dos crentes”, por isso a conseqüência prática de colocar a Bíblia na mão do povo e ajudá-lo nesse processo com o instrumento pedagógico do catecismo. Confessar a fé significa, pois, dar as razões da esperança. Envolve o conhecimento e, portanto, o instrumento da razão, do intelecto.

Mas é preciso voltar à dimensão existencial da fé. Porque para o apóstolo “estar preparado” não significava apenas, e fundamentalmente não significava dar respostas plausíveis e razoáveis, ainda que para questões decisivas, mas significava uma atitude, uma postura de vida que esteja em condições de suportar e enfrentar as adversidades da vida. A comunidade a quem ele se dirigia era uma comunidade acossada pelas forças do Império. A pregação cristã era vista como subversiva e as pessoas que proclamavam que Cristo é o Senhor, tinham que estar dispostas a empenhar suas vidas por sua esperança e por essa confissão de fé. Qual é a razão que se pode dar que valha o empenho da própria vida? Ou seja: a vida e a fé carecem de um fundamento sólido, qual casa construída sobre a rocha, e não sobre a areia.

Assim, já estamos dando o quarto passo: o coração. Quando a vida está em jogo, prevalece a lógica do coração. Sem o coração, que seria de nossa mente? Se transformaria em algo frio, calculista, interesseiro, insensível. O Presidente eleito do país disse que queria ver no governo pessoas com coração, com sentimentos, ou seja: pessoas sensíveis ao sofrimento alheio, pessoas dispostas a servir sem se servir. Sábio preceito. Sem dúvida mais fácil de estabelecer do que de realizar. Ainda assim: um sábio preceito e uma indispensável advertência. E se é um sábio preceito para o país, quanto mais não o será para a Igreja? Assim, também na fé sabemos que a matriz viva de todos os pensamentos, de todas as palavras, de todas as ações, é o coração. Por isso o salmista clamou aos céus: “Cria em mim, ó Deus, um coração puro e renova dentro em mim um espírito inabalável.” (Salmo 51.10) Espírito inabalável vem de mãos dadas com um coração puro. E de onde vem o coração puro?

“Cria em mim, ó Deus, um coração puro.” Estamos dando o quinto passo. A razão da esperança encontra-se num lugar bem determinado. Como estamos próximos ao Natal, formulo: a razão da esperança encontra-se no Menino Jesus, menino pobre e indefeso, batizado no Rio Jordão, pobre com os pobres peregrinou pelas estradas poeirentas da Palestina, ungido pelo Espírito de Deus, evangelizou os pobres, proclamou libertação aos cativos e restauração da vista aos cegos, pôs em liberdade os oprimidos, e apregoou o ano aceitável do Senhor, como ouvimos em Lucas 4 (18). Sofreu morte ignominiosa, mas vive entre nós, e a comunidade cristã o confessa como Senhor, o único senhor, porque seu senhorio ainda é o daquele Menino indefeso, daquele peregrino que disseminou esperança e espalhou vida, e vida em abundância. Ele é a boa nova. Ele é a razão da esperança.

Por isso, repetimos o versículo bíblico:

Santificai a Cristo, como Senhor,
em vosso coração,
estando sempre preparados para responder
a toda aquela pessoa que vos pedir razão
da esperança que há em vós.

A partir do peculiar senhorio de Cristo, por nós santificado – não porque ele não fosse santo, mas, parafraseando Lutero, para que seja santificado também entre nós – , a Igreja não está apenas repleta de pecados, ela também está grávida de esperança. A IECLB – grávida de esperança. Assim como Maria neste dia, segundo a memória celebrativo do calendário litúrgico, grávida do filho que viria a chamar-se Emanuel, Deus conosco, está prestes a dar à luz. Estão se completando os dias, assim como já se completaram para Isabel, sua parenta, contra todas as evidências que já a apontavam como estéril. A igreja que sonhamos, é uma grandeza de impossível prognóstico, ainda assim na esperança ela é muito real. Assim também é a IECLB. Ela difunde o chamado a seguir aquele Menino e aquele peregrino da Palestina. Trata-se de uma esperança que suplanta todos os percalços e todas as resistências. É uma fé que remove montanhas. É um amor que se esvai em serviço e solidariedade.

O último passo – o de santificar a esse Cristo – em verdade já era o primeiro passo. Nós é que invertemos a seqüência da leitura. Esse último primeiro passo é o decisivo; ele é o passo de todos os passos. Encontramo-nos – e isso não deixa de ser simbólico – à Rua Senhor dos Passos. Nas pegadas desse Senhor todos os nossos passos seguirão.

Amém.