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Humildade ativa

 

Proclamar Libertação – Volume 37
Prédica: Jeremias 14.7-10,19-22
Leituras: Lucas 18.9-14 e 2 Timóteo 4.6-8,16-18
Autor: Carlos Musskopf
Data Litúrgica: 23º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 27/10/2013

 

1. Introdução

Os três textos bíblicos previstos para este domingo falam da humildade ativa. Talvez não seja acaso que estejam a quatro dias da festa da Reforma luterana.
O evangelho relata a história do fariseu e do publicano, exemplos de humildade ativa (publicano) e de humildade interior, arrogante, excludente (fariseu). Na segunda Carta a Timóteo, o apóstolo Paulo enfatiza a humildade de quem “vive uma vida correta” (v. 8), humildade ativa de quem não usa as dificuldades conjunturais como desculpa para não pregar o evangelho com coragem e destemor.

Quanto ao texto de Jeremias, ainda não foi trabalhado na série PL, e não é fácil encontrar exegese do texto. Para o conteúdo do livro de Jeremias, remeto a outros estudos de textos do profeta no PL. São 33 estudos nas 36 edições do PL publicadas até agora. Guarde-se que, de uma maneira geral, esses estudos apontam positivamente para a reforma josiânica e o desastre de seus sucessores imediatos.

Jeremias nasceu num ambiente religioso, posto que pertencia a uma família de sacerdotes em Anatote. Iniciou sua pregação profética em 620 a.C. e morreu em 560 a.C. O local provável de sua morte foi o Egito, para onde teria sido levado juntamente com seu auxiliar Baruque depois da destruição de Jerusalém pelos babilônios. Durante seu tempo de atuação profética também viveram Naum, Sofonias, Daniel, Ezequiel e provavelmente Habacuque.
Jeremias viveu durante e após a reforma josiânica. A Josias seguiram no trono de Judá: Joacaz (609 a.C.), Jeoaquim (609-598 a.C.), Joaquim (598 a.C.) e Zedequias (598 a.C. até o cativeiro babilônico).

O contraponto à humildade ativa está na atitude do povo e das autoridades que provocaram a ira da divindade. Essa ira certamente não se produziu no curto espaço de tempo entre Josias e o cativeiro. A arrogância provocada pela reforma josiânica no povo e nas autoridades já deve ter sido o início da ruptura com a divindade.

Jeremias usa diversas figuras para descrever a situação pré-cativeiro: “casamento desfeito”, “beber água do Eufrates”, “parreira que foi colhida duas vezes”.
Com essas figuras descreve as vertentes da crise que viviam naqueles dias (possivelmente na época de Joaquim). A crise é descrita com a figura da seca.

Uma seca que atinge toda a criação: pessoas pobres e ricas, animais, vegetação; uma seca que não pode ser sanada por qualquer garoa. Tomo a liberdade de finalizar esta introdução com algumas informações gerais tiradas da internet: Jeremias é o 24º livro da Bíblia, tem 52 capítulos, 1.364 versículos e aproximadamente 43 mil palavras. O livro contém 779 predições. Há 194 perguntas, 303 mandamentos e 16 promessas. Em Jeremias, podemos descortinar 62 mensagens divinas. A tradição cristã identificou o “Senhor dos Exércitos” como sendo Jesus.

 

2. Exegese

No contexto de uma grande seca, acontece a explicação da divindade sobre sua origem e sua razão de ser. Jeremias contra-argumenta, colocando o ponto de vista do povo. A divindade mostra-se inflexível, enquanto o povo conta com sua mudança interior para livrar-se da seca e suas consequências. Mas a justiça divina não se conquista com santidade interior, e sim com humildade (sentimento) ativa (ação). Como essa se estabelece não aparece em nosso texto. Fica como proposta a ser definida.

V. 7 – Não é necessário que alguém aponte os erros cometidos. Os atos falam por si e acusam. Mas se solicita que Deus aja de acordo com Sua vontade.
Aqui transparece o desejo de que a vontade de Deus não seja fazer justiça pela vingança, como era comum acreditar na época (e ainda hoje), mas que reinvente a justiça como um novo começo para as pessoas em particular e para o povo em geral. Também retoma a concepção de uma divindade que precisa ser lembrada de seus acordos e alianças. Num outro contexto, a divindade estende o arco-íris no céu para que ela própria não esqueça da aliança que estava fazendo com o povo (Gn 9. 15).

V. 8 – Agora o povo lembra de um aspecto que havia esquecido: a fé na divindade está ligada à esperança (sentimento) e ao resgate (ação). Nesse caso, a uma atitude comprometida com a produção de alimentos, com a paz entre os povos e com a estabilidade política. Ao contrário das pessoas sem raízes e das pessoas passageiras que não plantam, nem colhem, nem se dedicam aos longos processos de educação para a humildade e para a paz.

V. 9 – Voltam as expressões de confiança; agora, através de comparações da divindade com um homem de personalidade forte que não se pode mostrar desanimado; como um herói que se preocupa com seus simpatizantes; no v. 9b, há duas possibilidades de tradução: “somos chamados por teu nome” (Almeida); “teu nome é invocado sobre nós” (Bíblia de Jerusalém). Em todos os casos, a identidade e a personalidade das pessoas são definidas pela pertença à divindade.

V. 10 – O primeiro bloco de versículos do texto da prédica termina com palavras da divindade. Ela aponta para o problema principal: o andar errante das pessoas que confiam em sua própria piedade e santidade. Essa é a causa da trágica seca que estão enfrentando. O andar errante não pressupõe preguiça nem acomodação (não poupam seus pés), mas pressupõe falta de foco, de consciência e, sobretudo, falta de uma humildade ativa. No v. 10b, as versões brasileiras traduzem a formulação hebraica pqd por “punir” e “castigar”. Mas a edição alemã em linguagem justa (gerechte Sprache) traduz por “trazer à responsabilidade” (zur Verantwortung ziehen), e Martim Lutero usou “afligir” (heimsuchen).

O segundo bloco (v. 19-22) termina com palavras do povo, que repete a vontade de negociar com a divindade, oferecendo como moeda de troca sua própria santidade. Faz a divindade lembrar de seus atos no passado e pergunta se se esqueceu deles e se não está disposta a repeti-los.

V. 19 – Essa experiência de cruz leva somente a uma transformação interior. Mas, sem dúvida, o sofrimento é grande. Não se pode mais olhar para baixo.
A dor provocada pela situação de seca está no limite máximo. Se não é ali que a esperança não acaba, é ali que ela se mostra em sua dramaticidade maior.

V. 20 – Não dá mais para esconder; não dá mais para fazer de conta. Não é de agora. Quando se chega ao fundo do poço, é porque se desperdiçou muita água, andou-se errante por muitos quilômetros.

V. 21 – O povo tenta mexer com os brios da divindade. Afinal, os seres humanos, as cidades, a terra fértil são suas criaturas. Destruí-las teria que ser para a divindade como destruir uma parte de si mesma. Isso seria contraditório com as promessas e as alianças que sempre estabeleceu desde a criação.

V. 22 – Em contrapartida, o povo assume o compromisso de cuidar melhor da criação, das cisternas que acolhem a chuva (v. 3) e certamente aonde colocam suas energias.

 

3. Meditação

Quatro são os personagens principais de nosso texto: num lado, estão Jeremias, o povo e as autoridades de Judá; no outro, a divindade.

O pano de fundo está na chamada “reforma josiânica”. Como se sabe, Josias provocou uma aliança indissolúvel entre Estado e “Igreja”. Podemos ver aí uma subordinação da fé aos interesses do Estado. Por outro lado, a radicalidade da reforma josiânica não provocou união, mas submissão. Josias via os “deuses” estrangeiros como ídolos, mas não tratou da mesma forma o “deus” poder com o qual ele se armou. Com isso desprezou as convicções religiosas genuínas e sinceras de muitas pessoas. Certamente, sua atitude intolerante em relação a outras expressões de fé criou ressentimentos e represou descontentamentos que afloraram de forma desordenada após sua morte.

O profeta Jeremias tem um amor muito grande pelo povo. Percebe que a seca provocou mudanças no interior das pessoas. Acredita nessas mudanças, mas enxerga que elas não levam à solução dos problemas. Por isso sua vocação é dizer palavras duríssimas de denúncia contra o povo e contra as autoridades de Judá.

Como as referidas mudanças interiores não resolveram os problemas, eles recrudesceram. Criaram como que um “direito próprio”, centrado na mudança pessoal e na conduta particular e não no direito da divindade. O resultado desse tipo de mudança não podia ser outro: o povo tornou-se arrogante em sua autocrítica e em seus propósitos. Tornou-se “orgulhoso de sua humildade”. Sabe-se que pessoas arrogantes são exatamente assim por causa da insegurança que não querem e não podem admitir.

A divindade anuncia sua intervenção terrível, que já se prenuncia na seca. Jeremias está na difícil situação de querer impedir a justiça pela destruição e de ser ao mesmo tempo o porta-voz dela. Insistentemente, ele tenta negociar com a divindade, lembrando-a de suas intervenções na história, quando se deixava
convencer e mudava o veredito.

Mas, dessa vez, a divindade mostra uma inflexibilidade como em poucas oportunidades. Não está aberta a negociações. Não está disposta a dar-se por satisfeita com a mudança interior que o povo tinha efetuado. É chegado o momento em que a mudança interior por si só não basta. Tem que haver uma transformação maior. Tem que partir do zero para que aconteça verdadeira reconciliação entre a divindade e o povo/autoridades.

O que chamo de “partir do zero” foi dramático para o povo da época. A seca era real com todas as suas consequências. O cativeiro babilônico foi experimentado com toda a sua dor. Para nós, fica a lição de que a justiça própria, a arrogância, o desprezo ao direito divino têm que ser combatidos com sua destruição total. Não pode ficar pedra sobre pedra. Não pode ser construída uma humildade ativa sobre essas bases. A humildade é aquela que sai do âmbito do interior para alcançar o exterior. Tanto nas questões estruturais (que conhecemos graças ao programa da Teologia da Libertação) como nas questões de relações interpessoais.

A verdadeira mudança, baseada na humildade ativa, muda todos os atores do processo. Nos dias em que escrevo este estudo, foi aprovada pela presidenta da República a constituição da Comissão da Verdade. Importa para nossa meditação que essa comissão não é baseada em ódio ou revanchismo, nem tem o objetivo de vingar e de punir, mas de restabelecer a verdade. A presidenta afirmou que a verdade não deixa de existir por ter sido escondida.

Busca o equilíbrio entre as pessoas envolvidas. De acordo com o portal UOL, Dilma “diz que não haverá ressentimento, ódio, nem perdão. Ela só é o contrário do esquecimento”. Exatamente esses elementos estão dentro do nosso texto: não há perdão, mas também não há vingança nem punição ou castigo (v. 10). Há um novo começo, não baseado na justiça própria, mas numa renovação das relações pessoais e estruturais.

Existem bons exemplos de técnicas de resolução de conflitos sem o uso da violência e sem inverter a ordem de vencidos e vencedores. Esses podem ser usados na prédica.

 

4. Imagens para a prédica

A chave de interpretação do texto de Jeremias é a oração do fariseu no evangelho. O fariseu é uma pessoa de fé, que tem sua piedade pessoal e procura viver de acordo com ela. Uma piedade baseada na justiça própria e na mudança pessoal. Nem percebe que fere e exclui.

A pregação pode começar expondo a fé do fariseu e perguntando quantas pessoas no culto não têm uma fé parecida. Um segundo passo seria apresentar as crenças e convicções de torturadores e torturados durante a ditadura brasileira; também essas pessoas agiam de acordo com suas convicções e sinceramente achavam que estavam fazendo o melhor para o país.

O v. 10 de Jeremias dá a pista para uma solução pacífica dos conflitos que surgem a partir de convicções particulares e excludentes: a humildade ativa. A pregação deve interpretar o verbo pqd no sentido de “trazer à responsabilidade”, sem perdão e sem vingança; reconhecer a culpa pessoal e estrutural que não propõe a punição e o castigo, mas que pretende reestabelecer um equilíbrio e uma relação aceitáveis e justos.

 

5. Subsídios litúrgicos

Oração inicial: (Momento de silêncio para concentração e autoanálise):

P – Senhor, tu me chamaste e convidaste para ouvir tua Palavra. Mas sinto que interiormente ainda estou bem distante de ti, distante nos meus pensamentos, nas minhas atividades e preocupações.

C – A vida no cotidiano me deixa distante de ti, mas também das outras pessoas. Também de pessoas que fisicamente estão ao meu lado.

P – Reconheço que não são forças externas que geram esse distanciamento, mas são impulsos e decisões que eu tomo e pelas quais eu sou responsável.

C – Essa consciência gera culpa dentro de mim e pesa sobre mim. Impede-me de encurtar as distâncias e de estabelecer a proximidade que desejo e que me faria tão bem.

P – Permite, ó Deus, que esta oração seja o início de um novo tempo em minha vida.

C – Que a mudança que provocas em mim seja o início de uma mudança em tudo o que penso e faço.

P – Tem piedade de mim, escuta meus sentimentos mais íntimos e concede-me coragem para mudar.

P – Absolvição: Ouçam a resposta que Deus dá à nossa oração: “Saberás que eu sou o Senhor, e que os que esperam em mim não serão envergonhados”
(Is 49.23).

Oração de coleta:

P – Ó Deus de amor e justiça, na semana que passou, tivemos momentos de alegria e de dor, de grandes preocupações e também de descontração e lazer. Em tudo se mistura a nossa fé, a consciência de que necessitamos de ti e, ao mesmo tempo, de que vivemos sem ti, sem contar com a tua presença.

C – Neste culto, aproximamo-nos de ti e nos colocamos diante da tua presença. Pedimos: vem também a nós, a cada pessoa em particular. Dá-nos teu bom Espírito Santo para que compreendamos melhor a ti nesta hora e compreendamos melhor a nós mesmos e também uns aos outros.

P – Deixa-nos voltar para casa com tua bênção, com a proteção e o alimento da tua Palavra.

C – Permite que te sintamos como nosso misericordioso e bondoso Deus e Pai. Por Jesus Cristo, que contigo e com o Espírito Santo vive e reina de eternidade a eternidade. Amém.

 

Bibliografia

BIBELARBEIT – Es ströme aber das Recht wie Wasser und die Gerechtigkeit wie ein nie Versiegender Bach (Amos 5,24) – Dr. Walter Altmann – 3. November 2008 (7. Tagung der 10. Synode der EKD, Bremen, 02.- 05. November 2008) http://pt.scribd.com/doc/64815188/14/Jeremias-14

 

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Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).