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Proclamar Libertação – Volume 37
Prédica: João 20.26-31
Leituras: Salmo 118.14-29 e Apocalipse 1.4-8
Autor: Erli Manske e Rodolfo Gaede Neto
Data Litúrgica: 2º Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 07/04/2013

1. Introdução

Conforme o calendário litúrgico, estamos no tempo pascal. Esse inicia no Domingo da Páscoa e encerra no Domingo de Pentecostes. Trata-se de um tempo importante para a comunidade aprofundar a fé no Cristo ressuscitado. O texto de pregação previsto para este dia tem esse objetivo. Ao lado de João 20.26-31, temos o Salmo 118.14-29 e Apocalipse 1.4-8 como leituras bíblicas. Sugerimos que o Salmo 118.14-29 seja utilizado como salmo intermediário entre a leitura de Apocalipse 1.4-8 e João 20.26-31. Também é possível utilizar os v. 28 e 29 do Salmo 118 como versículos de aclamação do evangelho, pois, assim como em João 20.28, ali também temos uma confissão de fé: “Tu és o meu Deus, render-te-ei graças; tu és o meu Deus, quero exaltar-te”. Apocalipse 1.4-5 traz uma saudação de João às igrejas a quem ele se dirige (“graça e paz a vós outros…”). Essa pode ser utilizada na liturgia de entrada no lugar da saudação apostólica ou voto inicial.

 

2. Pistas exegéticas

2.1 – Situando a perícope

Para uma melhor compreensão de nossa perícope, é necessário levar em conta os dois textos anteriores (v. 19-25). Duas cenas antecedem o texto em destaque:

Primeira cena: os discípulos estão reunidos no primeiro dia da semana com as portas da casa trancadas por medo dos judeus. Jesus põe-se no meio deles e mostra-lhes suas mãos e o lado em que foi ferido. Jesus sopra sobre eles o Espírito Santo e os envia. Nesse dia, o discípulo Tomé não se encontra no meio deles (v. 19-23).

Segunda cena: os discípulos encontram-se com Tomé e dizem que viram Jesus. Tomé duvida, dizendo que, se ele próprio não ver os sinais dos cravos nas mãos de Jesus e não pôr a mão em seu lado, não acreditará (v. 24-25).

Os v. 26-31 compõem o terceiro cenário do capítulo 20 de João: Depois de oito dias desde a aparição de Jesus a seus discípulos, o grupo encontra-se novamente reunido e, dessa vez, Tomé está entre eles; as portas estão trancadas, e Jesus vem e põe-se no meio deles; logo depois de saudá-los, Jesus dirige-se a Tomé dizendo: “Põe aqui o teu dedo e vê as minhas mãos; chega também a tua mão e põe-na no meu lado; não sejas incrédulo, mas crente” (v. 27).

2.2 – João tematiza a superação da dúvida sobre a ressurreição

A saudação “paz seja convosco” parece ser uma fórmula litúrgica. Nesse encontro de Jesus com a comunidade dos discípulos, após a saudação, imediatamente se dirige a Tomé, expondo no meio de todos os questionamentos que Tomé havia levantado diante de seus companheiros. Jesus responde ponto por ponto o que o discípulo havia exigido: mostra-lhe as mãos com os sinais dos cravos e pede que Tomé ponha sua mão no seu lado. Provavelmente Tomé sentiu-se envergonhado de sua incredulidade e suas exigências. A exortação “não sejas incrédulo, mas crente” é uma resposta de Jesus ao posicionamento de Tomé “… não acreditarei” (v. 25).

O pano de fundo dessas narrativas é o fato de Tomé ter rejeitado o testemunho dos “onze” acerca da ressurreição de Jesus. Tomé representa todas as pessoas que, naquele momento histórico, tinham dificuldades para acreditar na notícia da ressurreição. A história de Tomé não tem paralelo nos sinóticos, mas a tradição mais antiga (Lc 24.11; 25.38.41; Mc 16.2; Mt 28.17) tem relatos no sentido de que a mensagem da Páscoa provocou inicialmente dúvidas e incredulidade entre os discípulos. Por isso o evangelista João ocupa-se com o tema da superação dessa dúvida. A perícope está a serviço dessa tarefa, nada fácil, de suscitar a fé na ressurreição de Jesus.

A perícope procura desconstruir a dúvida sobre a ressurreição de Jesus através do milagre da aparição do próprio ressuscitado. Esse milagre é concedido ao incrédulo Tomé. Todavia essa forma de resolver a dúvida sobre a ressurreição é uma última exceção. É uma exceção concedida aos fracos e incrédulos. Doravante, a verdadeira fé pascal não mais carecerá desses milagres, pois ela terá seu fundamento no anúncio da Palavra sobre a ressurreição.

Por isso é importante atentar para a indicação “passados oito dias”, que aparece logo no início do texto. Em João 20.19, a presença de Jesus no meio dos discípulos, sem Tomé, acontece no “primeiro dia da semana”. “Passados oito dias”, diz o texto, “estavam outra vez reunidos ali os seus discípulos e Tomé com eles” (Jo 20.26). Conforme o costume antigo, contava-se a partir do primeiro dia até o último, numa série, de modo que oito dias correspondia a uma semana. Com isso o autor situa a aparição de Jesus no domingo seguinte após o dia da Páscoa (cf. v. 19; também o manuscrito da versão siríaca sinaítica não deixa dúvidas quanto a isso). Lembremos que domingo é o dia em que a comunidade cristã se reunia para celebrar a fé no Cristo ressurreto, partilhando a Ceia do Senhor (cf. At 20.7). Provavelmente, para a comunidade joanina, o domingo já é uma instituição, e o texto reflete o costume da comunidade cristã de se reunir no domingo. É possível que nessas celebrações, nos tempos posteriores, a comunidade joanina recordasse o relato da aparição de Jesus a Tomé.

No episódio da primeira aparição aos discípulos, Jesus fundou sua comunidade, infundindo-lhes o Espírito e enviando-os à missão. Dessa vez, não se trata mais de formar a comunidade, mas de se fazer presente entre os seus na reunião comunitária de domingo. Nessa reunião, Tomé está presente. Agora ele está integrado à comunidade, diferentemente da primeira vez (cf. v.24). Ao mesmo tempo em que João ainda apela para o milagre da aparição do ressurreto para ajudar Tomé em sua dúvida, já aponta para o lugar onde doravante a fé na ressurreição será alimentada: a comunidade. No futuro, não mais haverá, para a igreja, aparições do ressurreto com o objetivo de apresentar provas para a fé. As provas são supérfluas e estão definitivamente encerradas, porque a verdadeira fé se funda no anúncio da Palavra. No seio da comunidade, na Palavra anunciada, o Cristo crucificado está presente. Assim, o evangelista João, ao trazer essa palavra crítica de Jesus em relação aos que exigem provas de sua ressurreição, está colocando a história da Páscoa no seu devido lugar: não no espaço das comprovações, mas no espaço da fé, que nasce da pregação e é fortalecida na comunhão da Ceia do Senhor.

2.3 – A confissão de fé na divindade de Jesus

O convite de Jesus para “o tocar” é recebido por Tomé com uma imediata reação de confissão de fé. O texto não diz se Tomé tocou as feridas das mãos de Jesus com os dedos ou se colocou as mãos no seu lado. No v. 29, observa-se que Jesus fala dos que querem “ver para crer”, mas não faz nenhuma referência aos que exigem “tocar para crer”. Ao que tudo indica, quem narra o texto não tem interesse em provar se houve ou não contato físico com o ressuscitado. Interessa, isto sim, mostrar a atitude de Tomé diante do Senhor. A força da presença de Jesus é tamanha que, diante dele, a dúvida é transformada em confissão de fé.

Chama atenção que, em sua confissão, Tomé dirige-se a Jesus com o título de Senhor – Kyrios – e Deus – Theos – (“Senhor meu e Deus meu”, v. 28) ao invés de Mestre, como os discípulos estavam acostumados antes da morte de Jesus. Quer dizer, Tomé reconheceu Jesus como o exaltado. Confessar a Jesus como Kyrios significa reconhecê-lo como Deus, como o Cristo ressuscitado. Com isso Tomé afirma crer na ressurreição de Jesus; e mais: ele crê na divindade de Jesus.

A confissão de Tomé é a única confissão da divindade de Jesus que sai da boca de um discípulo no Evangelho de João. Tomé confessa representativamente para a comunidade joanina a sua fé pascal na divindade de Jesus. O que o hino do logos já cantou no início do evangelho (“Deus era a palavra” – Jo 1.1), isso é confessado no fim do evangelho justamente pelo incrédulo Tomé: aquele que havia se tornado pessoa humana retorna, agora, através de sua ressurreição para a glória, onde estava no início.

Com a confissão de Tomé, João alcança o ponto mais alto de seus relatos sobre a história da Páscoa. Maria Madalena e os “onze” testemunharam que viram Jesus, mas Tomé vai além e confessa a sua divindade.

A confissão de Tomé é seguida por uma palavra de bem-aventurança de Jesus. Porém essa não é dirigida aos discípulos reunidos em sua presença. Provavelmente com essa bem-aventurança o evangelista tinha em mente as pessoas de seu tempo, aqueles e aquelas que criam no Senhor ressuscitado sem ter conhecido o Jesus terreno, sem jamais tê-lo visto. Certamente está pensando nas pessoas (plural, cf. v. 29) que vivem no tempo em que não mais há aparições do ressurreto. Essas creem sem ver, com base no anúncio que tem a ressurreição de Jesus como conteúdo. A confissão de Tomé constitui um chamado aos crentes do futuro para que, sem o “ver”, possam crer e confessar Jesus como Tomé: “Senhor meu e meu Deus”.

 

3. Meditação

Aspectos que chamam nossa atenção

1 – O Jesus ressurreto encontra-se com seus discípulos no tempo e no espaço da comunidade. O texto fornece indícios de que os discípulos estão reunidos num domingo, isto é, trata-se de um encontro litúrgico semanal. No primeiro encontro, sem Tomé, Jesus, ao mostrar as mãos e o lado, com os sinais de sua morte, apresenta-se como o Jesus da cruz e o Senhor ressurreto. O evangelista João dá testemunho, nesse texto, de Jesus, o Cristo. É esse o que se apresenta aos discípulos e os envia à missão, soprando sobre eles o Espírito Santo (v. 19-23).

2 – O segundo encontro de Jesus com seus discípulos acontece novamente no tempo e no espaço da comunidade, num domingo, estando Tomé entre eles. Dessa vez, o motivo do encontro parece ser outro. Tomé havia duvidado do testemunho de seus colegas de que esses tivessem visto Jesus. Parece que a primeira tentativa dos discípulos de dar testemunho de Jesus fracassou. Eles não conseguiram convencer nem mesmo alguém de seu próprio grupo. Como iriam convencer os outros, os de fora? Foi necessário um novo encontro com Jesus. Esse novo encontro tinha, pois, um motivo muito forte: aprofundar a fé no Cristo ressurreto. Para seguir dando testemunho de Jesus Cristo, os discípulos necessitavam, eles próprios, estar firmes na fé no Cristo ressurreto; eles necessitavam encontrar-se de novo com Jesus, o Cristo, para fortalecer-se na fé e desconstruir a dúvida.

3 – O encontro de Jesus com Tomé não ocorreu em separado, entre os dois apenas, mas na reunião com os discípulos, na celebração de domingo. Nesse encontro, Jesus dirige-se imediatamente a Tomé e responde, ponto por ponto, às suas dúvidas. Nem foi necessário Tomé tocar nas mãos e no lado de Jesus. Tão profundas foram suas palavras, tão forte foi sua presença, que foram suficientes para Tomé. E sua resposta foi a confissão de fé: “Senhor meu, meu Deus”.

4 – A reunião comunitária no culto é o evento primordial da comunidade cristã. Culto é lugar da revelação de Jesus Cristo, de sua presença na Palavra e nos sacramentos, da recepção do dom do Espírito, do envio ao mundo (para a diaconia), do aprofundamento e fortalecimento na fé.

5 – Fora da comunidade somos o Tomé incrédulo, que exige provas, sinais, milagres. Somos também os discípulos que, no testemunho de Cristo, enfrentamos a incredulidade dos outros, sentimo-nos fracos, inseguros, impotentes. Dentro da comunidade, somos o Tomé que é tocado por Jesus (note-se: não somos nós que o tocamos, mas ele nos toca com sua presença na Palavra e nos sacramentos). E somos os discípulos fortalecidos na fé e no testemunho do próprio Cristo.

 

4. Imagens para a prédica

– A ressurreição de Cristo é o fundamento da igreja (“E, se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação e vã a vossa fé” – 1Co 15.14).

– Todavia, a ressurreição não é um evento que se coloca no nível da comprovação científica (provas científicas são necessidades dos humanos, que têm limitações na compreensão dos fatos). A ressurreição coloca-se em outro nível: o da fé.

– Portanto, a igreja cristã não é edificada sobre fundamento humano (físico, passageiro, duvidoso, carente de comprovação), mas sobre o fundamento do eterno (divino, escatológico).

– A fé na ressurreição é cultivada e fortalece-se no espaço da comunidade (na reunião da comunidade, no culto), onde é anunciada a mensagem da Páscoa. Deus usa o espaço físico/humano/passageiro/duvidoso da igreja para manifestar o que vai além do físico/humano: os valores eternos.

– Páscoa (tempo pascal) é tempo de valorizar a comunidade, suas reuniões e seus espaços. A comunidade pode ser pequena, simples, humana, com problemas humanos (medos, insegurança, dúvidas e tudo o mais), mas é nesse espaço que Deus (através do Espírito Santo) trabalha os fundamentos e valores mais sublimes, as coisas eternas, a vida que supera os limites da morte. No espaço da comunidade (com suas limitações) é que os valores eternos são sempre colocados como horizonte para a igreja. A igreja seria muito pobre se ela tivesse apenas os seus próprios horizontes humanos e físicos, limitados, passageiros, duvidosos. Páscoa nos permite, através da fé, olhar além, ir além.

– O relato de João sobre Tomé fundamenta a existência de programas na comunidade que trabalham a questão da integração de todos e todas no corpo comunitário, pois é ali, na reunião, que a comunidade se fortalece diante das dúvidas e inseguranças. Desgarrados/as da comunidade, os indivíduos tornam-se alvos da incredulidade.

– A reunião da comunidade nos seus diversos espaços é o lugar para aprofundar as questões teológicas, para trabalhar as dúvidas e inseguranças que atormentam as pessoas. A perícope fundamenta um programa de formação continuada na fé.

– Aprofundar a fé na ressurreição de Jesus como programa comunitário faz a diferença para a presença da comunidade cristã no atual mundo pós-moderno, mundo esse que se contenta com experiências religiosas superficiais.
Observação: é possível usar uma imagem (projetada ou colocada em cartaz na entrada do templo) que represente a comunidade reunida, lugar onde Cristo se faz presente. Para essa imagem sugerimos fazer uma montagem com fotos de diversos grupos da comunidade: crianças, confirmandos, jovens, mulheres, presbitério e do próprio culto, demonstrando, assim, as formas diversas de reunião comunitária, onde a fé no Cristo ressuscitado é fortalecida e alimentada.

 

5. Subsídios litúrgicos

Salmo de confiança em Deus:

Senhor meu e Deus meu. Creio em ti.
Na insegurança e no medo, a ti me asseguro: Senhor meu e Deus meu!
Na doença, questiono: tu me esqueceste? A ti clamo: fortalece-me!
Na morte, diante do fim, na incerteza do que vem, rogo-te: não me abandones!
Na vida, quando me perco na busca por sentido, tu me chamas: volta-te a mim!
No desespero, quando me falta a esperança, tu vens como luz no fim do túnel!
Em minha mais profunda dor, quando somente tu a conheces, só me resta dizer:
Senhor meu e Deus meu!

Obs.: Esse Salmo de confiança em Deus pode ser usado como parte da Oração Geral da Igreja. Se, acaso, houver nesse culto uma oração memorial, ela poderá ser encaixada.

Oração do dia:

Senhor Jesus, tu que venceste o nosso pior inimigo, a morte! Vem, põe-te no meio de nossa comunidade e, pelo poder do Espírito Santo, ajuda-nos a destrancar as portas do medo e da insegurança. Dá-nos a tua Palavra que liberta e, assim, sejamos tuas testemunhas no mundo, amparando as pessoas que sofrem, orientando as que buscam sentido para a vida. Por ti, na unidade do Espírito Santo. Amém.

Outros subsídios litúrgicos, confira em Proclamar Libertação 29, p. 135.

 

Bibliografia

BARRETO, Juan; MATEOS, Juan. El evangelio de Juan: analisis linguístico e comentário exegético. 2. ed. Madrid: Cristiandad, 1982.
SCHNACKENBURG, Rudolf. El evangelio según san Juan: versión y comentário: capítulos 13-21, tomo terceiro. Barcelona: Herder, 1980.
SCHNEIDER, Johannes. Das Evangelium nach Johannes. In: Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament. 2. ed. Berlim: Evangelische Verlagsanstalt, 1978.
SCHULZ, Siegfried von. Das Evangelium nach Johannes. Göttingen: Vandenhoeck

 

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Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).