Proclamar Libertação – Volume 38
Prédica: Mateus 18.1-5
Leituras: Zacarias 8.1-8 e 1 Pedro 2.1-3
Autor: Fernando Henn
Data Litúrgica: 18º Domingo após Pentecostes (Dia das Crianças)
Data da Pregação: 12/10/2014
No dia 12 de outubro, é lembrado o Dia das Crianças. Essa data será usada como pano de fundo para a reflexão sobre o texto de Mateus 18.1-5. Nessa conhecida passagem, os discípulos perguntam a Jesus quem é o maior no reino dos céus. Jesus responde-lhes dizendo que, se eles não se converterem e não se tornarem como crianças, de modo algum entrarão no reino de Deus.
O texto de Zacarias envolve-nos na temática por meio de uma passagem que lembra o tema do ano da IECLB de 2008: “No poder do Espírito, proclamamos a Reconciliação”, cujo lema bíblico era: “Velhinhos e velhinhas sentarão nas praças de Jerusalém, e as praças ficarão cheias de meninos e meninas brincando” (Zacarias 8.4-5). Trata-se de um sonho do profeta, quando crianças e pessoas idosas terão paz para viver sua velhice e também sua infância.
A passagem de 1 Pedro 2.1-3 tem uma beleza singular. Nela, a pessoa cristã é comparada a uma criança recém-nascida, que é exortada a buscar “o genuíno leite espiritual”. Em outras palavras, podemos interpretar assim: é uma exortação a cada pessoa buscar em sua caminhada de fé o genuíno evangelho de Jesus Cristo, que é o alimento para sua vida de fé, numa postura de humildade e reverência.
O texto de Mateus 18.1-5 é muito direto em sua mensagem. Ele inicia com a pergunta dos discípulos a Jesus: “Quem é, porventura, o maior no reino dos céus?”. Está apresentada a grande pergunta geradora de intrigas e distorções nas relações humanas e que também esteve presente entre os discípulos de Jesus: Quem é mais importante? Essa pergunta, nesse trecho do evangelho, parece especialmente destinada a Pedro, Tiago e João. Em Mateus 16.13-20, é relatada a confissão de Pedro: “Tu és Pedro e sobre essa rocha edificarei minha igreja… dar-te-ei as chaves do reino dos céus”. A seguir, acompanhado por Tiago e João, Pedro testemunha a transfiguração de Jesus (Mt 17.1-8). É possível que tais acontecimentos tenham “subido” à cabeça de um deles ou dos três, a ponto de surgir uma tensão no grupo dos discípulos. Não seria difícil imaginar que, pela proximidade com Jesus, esses discípulos, especialmente Pedro, estivessem pensando em outorgar para si algum tratamento diferenciado. Não é demais lembrar que o evangelista Mateus escreve a cristãos de origem judaica e por isso utiliza a expressão reino dos céus e não reino de Deus.
Jesus chama então uma criança, coloca-a no meio dos discípulos e afirma: “Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus” (tradução ARA). Jesus fala em conversão aos discípulos, indicando que os discípulos teriam que mudar o modo como eles percebiam seu papel. Há aqui um importante ensinamento de Jesus, que é valioso na teologia luterana. Os discípulos, seguidores de Jesus, são chamados a viver a conversão constantemente e não apenas em um momento da vida. Eles já haviam decidido seguir Jesus. E Jesus diz que eles precisam converter-se de novo, agora para tornar-se como crianças. Sobre tornar-se como uma criança cito o comentário de Champlin: “A criança, antes de ser atingida pelo orgulho, pela maldade, pela ostentação e pela ambição pessoal mundana, é dotada de um espírito humilde e de uma fé simples. Apesar de ser um ser fraco e indefeso, simboliza com propriedade o povo simples que usualmente recebe a mensagem do evangelho sem oferecer resistência, no que contrasta com os de nobre nascimento, instruídos e sábios aos próprios olhos, que geralmente buscam justificativas para não levar a sério as declarações e advertências de Jesus” (Champlin, p. 462).
No versículo 4, humilhar/humildade está colocado em contraposição a ensoberbecer-se/soberba. “A soberba cria o egoísmo; a humildade desenvolve o altruísmo” (Champlin, p. 462). A maior pessoa no reino dos céus é aquela que cultiva a humildade, que sabe não ser melhor do que ninguém, mas integrante da sociedade e responsável por ela.
No versículo 5, Jesus afirma que “quem receber uma criança, tal como esta, em meu nome, a mim me recebe”. Sem dúvida, é uma valorização das crianças e um modo de demonstrar o amor que Deus/Jesus tem por elas. Ao receber uma criança, estamos recebendo Jesus.
O Dia das Crianças, que acontece num domingo, é uma grande oportunidade para refletir, com a igreja reunida, sobre o modo como a sociedade tem cuidado das crianças. Entende-se sociedade de modo amplo, abrangendo na reflexão as famílias, a igreja, a escola, o estado, o mercado e quem mais exerce alguma influência direta ou indireta sobre o modo como cuidamos e valorizamos as crianças. É conhecida a frase: “Não devemos perguntar que mundo estamos deixando para nossos filhos, mas que filhos estamos deixando para o mundo”. Certa vez, ouvi numa palestra uma afirmação um tanto quanto “forte” que causou certa polêmica entre as pessoas que estavam próximas de mim. O palestrante disse que a falta de sentido que encontramos na juventude atual reflete diretamente a falta de sentido encontrada nas famílias de onde esses jovens provêm. Como um jovem já foi bebê, criança e adolescente, não podemos ignorar que o desenvolvimento é uma soma de experiências e estímulos que cada pessoa vai recebendo ao longo de sua trajetória.
Constantemente, ouvimos sobre a realidade de que professores e professoras dos ensinos fundamental e médio recebem salários baixos. É um reflexo do valor que a sociedade atribui a essas pessoas que têm a responsabilidade de contribuir na formação de cidadãos e cidadãs capazes de transformar positivamente a sociedade. Via de regra, observa-se nas escolas um reflexo do valor que a sociedade dá às crianças: quanto menor a criança, menos se paga ao profissional. Ironicamente, a remuneração é proporcional ao tamanho da criança.
Aos olhos do mercado, a criança nada mais é do que uma consumidora. Para o sistema de previdência, a criança é a esperança de que o sistema não entrará em colapso no futuro. Caso perguntemos a pediatras, esses confirmarão que as crianças não são prioridade, salvo exceções, tanto para o sistema de saúde pública como para a particular.
Quando pensamos na vida de nossas comunidades, do mesmo modo deveríamos investir aquilo que temos de melhor na educação cristã de nossas crianças e jovens. Tenho esperança de que o trabalho com crianças em nossas comunidades não esteja condicionado à sobra de tempo das lideranças ou ministros e ministras, antes seja prioridade. Inúmeras iniciativas têm se mostrado promissoras, a exemplo do projeto “Missão Criança”.
Lendo esse texto, parece impossível não fazer menção à reflexão que tem acompanhado nossa igreja nos últimos anos sobre a participação das crianças na Santa Ceia. Perante Deus somos como crianças, acolhendo o seu amor pela graça, não por nossos méritos. Não somos nós que chegamos a Deus pelo uso de nossa razão ou esforço mental; é Deus que em Cristo vem a nós, oferecendo-nos o perdão e a possibilidade de caminhar com Ele. Convidar as crianças para participarda Santa Ceia é testemunhar publicamente essa nossa convicção de fé.
Ao receber uma criança, estamos recebendo Jesus. Podemos dizer que, ao cuidar de uma criança, estamos cuidando do próprio Jesus. Ao amar uma criança, estamos amando o próprio Cristo. Ao respeitar uma criança, estamos respeitando o próprio Jesus.
Temos dois caminhos distintos para a pregação: podemos fazê-la num culto tradicional, como estamos acostumados, ou podemos aproveitar a data para organizar um culto especial do “Missão Criança” com a comunidade. Caso a alternativa seja um culto especial com as crianças, cada contexto pode preparar a temática como melhor convir. Caso seja uma reflexão “tradicional” com a comunidade, há vários caminhos possíveis:
a – A data é uma oportunidade para refletir com a comunidade sobre a participação de crianças na Santa Ceia. Em muitos lugares, essa reflexão já foi feita algumas vezes. No entanto, acredita-se que temas como esse devem estar presentes em nossa pregação com frequência, pois nosso público nos cultos é rotativo. O fato da comunidade ter ouvido uma vez sobre o tema não significa que ela já o tenha compreendido e apreendido para a sua vida de fé.
b – A frase “Não devemos perguntar que mundo estamos deixando para os nossos filhos, mas que filhos estamos deixando para o mundo” poderia iniciar a conversa com a comunidade.
c – Um texto do colunista da revista Veja Gustavo Ioschpe (“O que você faria pelos seus filhos?”) convida a refletir. Nele, ele questiona se nós brasileiros realmente estamos dispostos a fazer qualquer sacrifício em prol de nossos filhos e crianças. Cito um trecho desse artigo: “Quando você leu o título deste artigo, provavelmente respondeu a si mesmo: ‘Eu faria de tudo pelo meu filho’. Mas, se você for um brasileiro normal, a resposta real terá sido: ‘Tudo, desde que não atrapalhe o meu estilo de vida’. Você topa trabalhar duro para pagar uma boa escola e acha que por isso mesmo é que a escola não deve exigir de você que se envolva com os estudos do filho quando chegar em casa cansado à noite. Várias vezes, eu vi pais carregando filhos pequenos chorosos em restaurantes em horários em que esses deveriam estar dormindo. Há dois meses, usando a mesma lógica do ‘não tinha com quem deixar a criança’, um sujeito levou o filho de oito anos para explodir e roubar um caixa eletrônico. Já ouvi muito pai querendo colocar o filho em escola perto de casa – raramente encontro gente se mudando para deixar o filho mais próximo de uma escola boa”.
Oração:
Senhor, com gratidão em nossos corações celebramos este culto. Buscamos-te com todo o nosso ser porque queremos que a tua santa palavra e presença se façam presentes em nossa vida, em nossa família, comunidade e mundo. Hoje lembramos o Dia das Crianças. Por isso queremos orar por elas de modo especial. Oramos, ó Deus, pelas crianças que sofrem com a violência e a falta de amor, por aquelas que são privadas de educação, saúde e a possibilidade de um futuro melhor. Reconhecemos que somos culpados juntamente com toda a sociedade quando as crianças não são prioridade e deixam de ser cuidadas. Perdoa esse nosso pecado, Senhor. Perdoa também quando em nossas comunidades não cuidamos como deveríamos das crianças, adolescentes e jovens. Não permitas que fiquemos acomodados com o erro, mas que sejamos transformados por ti. Que possamos enxergar nas crianças o rosto da tua presença. Nós sabemos que diante de ti somos como crianças. Alimenta-nos com o teu amor e sacia-nos com a tua presença. Dá-nos teu perdão, a tua salvação. Em nome de Jesus é que oramos. Amém.
Hino: A música “Amar como Jesus amou”, do Padre Zezinho, combina muito com o dia.
CHAMPLIN, Russel Norman. O Novo Testamento Interpretado Versículo por Versículo. V. 1. São Paulo: Milenium, 1982.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).