Proclamar Libertação – Volume 38
Prédica: Deuteronômio 5.12-15
Leituras: Mateus 20.1-16 e 2 Tessalonicenses 3.6-13
Autor: Geraldo Graf
Data Litúrgica: Dia do Trabalho
Data da Pregação: 01/05/2014
Deuteronômio 5.12-15 será pregado no Dia do Trabalho. Sua mensagem será anunciada no contexto da pós-modernidade, do capitalismo selvagem e devorador, que se caracteriza, por um lado, por um individualismo crescentemente intenso e um consumismo desenfreado e, por outro, por um sofrimento cada vez mais agudo e uma exploração predatória da força de trabalho das classes operárias e pelo esgotamento da força da terra. Ao pregar sobre o texto bíblico, não se pode fugir dessa análise e constatação, pois os mandamentos, em especial o terceiro, surgiram da relação entre trabalho e descanso a partir da libertação da escravidão no Egito e do contexto do trabalho e do uso da terra. Fugir disso é blindar o texto e sua consequente mensagem no moralismo e na discussão estéril sobre o dia mais apropriado para o descanso. Anteriormente, a perícope foi desenvolvida no PL III pelo Dr. Milton Schwantes. Recomendamos a leitura de sua contribuição (Deuteronômio 5.12-15).
O livro de Deuteronômio (hebraico: Debarim – Palavras / Grego: Deuteronômio – a Lei pela segunda vez) marca o fim da transição entre o período de escravidão no Egito e o início da existência como uma nação independente na terra prometida. Mais do que uma repetição de leis anteriores, Deuteronômio é um testamento espiritual. Os livros anteriores relatam acontecimentos e fatos históricos, transmitindo a palavra de Deus ao povo tal como Moisés a recebeu. Em Deuteronômio, explicam-se, exemplificam-se e aplicam-se as leis, mostrando suas consequências práticas.
Deuteronômio 5.12-15 reflete a situação de uma sociedade. Promovem–se maus-tratos à terra e violência às camadas mais pobres da população. O fato ocorre provavelmente nos séc. VIII-VII (antes do exílio babilônico). Por conta da destruição do Reino do Norte, Judá recebe migrantes procedentes do Norte. São fugitivos da desolação e destruição causadas pelos assírios. Esses israelitas servem de mão de obra não especializada em Judá. Devido a alguns arrendamentos, um grupo seleto dos mesmos garante maiores propriedades, desenvolvendo um sistema de sublocação para agricultores mais pobres. Com juros que chegam a 20% e até 40%, eles arrecadam muito dinheiro e, por conseguinte, acumulam mais direitos. Enriquecem principalmente pela estratégia, ora com anexações de propriedades dos devedores, ora por manipulação junto aos governantes. Em pouco tempo, acumulam propriedades e poder. Enquanto eles progridem e enriquecem, o resto da população sofre as dores da dominação. É nesse quadro que se situa o texto. Desenvolvimento e riqueza de poucos e pobreza e calamidade para muitos. Eles se beneficiam seja pelos produtos de suas propriedades, seja pelos acordos com os governantes e com os anciãos. No tribunal, os anciãos propõem que os proprietários de terras tenham uma atitude radical. Da forma como existe o ano sabático, eles instituem, além do ano de descanso, um dia da semana para que os animais descansem. Consequentemente, a terra também o fará. Não apenas anualmente, mas agora semanalmente.
Os três verbos guardar, não fazer, lembrar apresentam entre si uma sequência. Inicialmente, destaca-se uma instrução, depois se propõe aquilo que não se faz pela instrução dada e, por fim, a lembrança do tempo de escravidão no Egito como sustentação da palavra. Isso mostra que o trabalho da confecção das leis não era tecido por simples representantes do povo, mas que tinham um refinamento jurista. Entretanto, como qualquer escrito feito por pessoas, a instrução não é isenta. Nela aparecem forças, pessoas e grupos que têm interesses. Dá-se sustentabilidade à classe dominante. Os anciãos do portão unem forças com os ocupantes da terra. Deuteronômio 5.12-15 encaixa-se nesse contexto.
A questão do sábado – O judaísmo chegou ao consenso de guardar um dia em comum como dia do descanso: o shabbat – o sétimo dia no calendário judaico. Esse sempre coincidia com a mudança da fase lunar. O positivo nessa determinação de uma data fixa era que todas as pessoas – a criação inteira – descansassem no mesmo dia, juntas. Deuteronômio 5.12-15 garante isso como uma liberdade concedida por Deus na própria criação do mundo e reiterada na concessão das tábuas da Lei.
No ano 321 depois de Cristo, o imperador Constantino instituiu o domingo como dia do descanso no Império Romano. O domingo – Dia do Senhor – já era celebrado pelos cristãos como dia da ressurreição do Senhor Jesus Cristo (a nova criação). Além disso, o domingo – dia de santificação – já vinha se firmando como tal entre os cristãos desde o ano 80 a.D., quando as sinagogas judaicas proibiram a presença dos mesmos em suas celebrações no sábado. Proibiu-se o pronunciamento do nome de Jesus Cristo em tais celebrações.
Entendeu-se que a troca do dia não transgredia o mandamento do descanso após seis dias de trabalho contínuo. É evidente que se resguardou o direito das pessoas de poder descansar juntas em família e em comunidade e que sobretudo o salário recebido por seis dias trabalhados fosse o sufi ciente para garantir o sustento da família nos sete dias e pudesse garantir uma vida digna e um descanso abençoado. Essa também deve ser a nossa motivação para santificar o domingo como dia de descanso.
Uma discussão sobre o sábado e o domingo (ou mesmo a sexta-feira com os muçulmanos) precisa ser conduzida a partir da relação entre trabalho e descanso justos e não apenas a partir da data em si. Insistir cegamente no sábado desgarrado dessa relação é desviar do verdadeiro significado e contexto do mandamento. O dia de descanso é a coroação de uma semana plena e justa de trabalho: “E viu Deus que tudo era muito bom… então descansou no sétimo dia” (Gn 1.31;2.3).
Direito ao descanso – O direito ao descanso é condição essencial para o exercício do direito ao trabalho. Descansar o corpo e a mente em períodos regulares faz com que o trabalho possa ser desenvolvido de maneira saudável, rentável e evita o adoecimento. Logo, falar em descanso legal é invocar diretamente o direito à saúde, que é um dos pilares de sustentação do direito à vida. A legislação brasileira assegura diversas modalidades de descanso, abaixo citadas:
– intervalo intrajornada: é o descanso assegurado durante o período em que o trabalhador está cumprindo sua jornada de trabalho e visa ao descanso e à alimentação;
– intervalo interjornada: é o intervalo mínimo a ser respeitado entre duas jornadas de trabalho, para que o trabalhador se afaste do local de trabalho, retorne à residência e possa cumprir a necessidade biológica do sono. A CLT assegura no Artigo 66: Entre duas jornadas de trabalho haverá um período mínimo de onze horas consecutivas para descanso;
– repouso semanal remunerado: é a garantia de um dia de descanso na semana como pausa para que o trabalhador possa cuidar dos afazeres de sua vida pessoal, religiosa e familiar. O Artigo 67 afirma: Será assegurado a todo empregado um descanso semanal de vinte e quatro horas consecutivas, o qual, salvo motivo de conveniência pública ou necessidade imperiosa do serviço, deverá coincidir com o domingo, no todo ou em parte.
– férias anuais: esse direito prestigia o descanso e o lazer por razões médicas, familiares e sociais.
O reconhecimento de que os Dez Mandamentos são um presente de Deus deixa-se perceber no mandamento do dia do descanso, o shabbat, pois já em sua forma o mandamento difere dos outros – não há uma proibição, mas uma afirmação no meio de uma porção de mandamentos com negativas. Esse mandamento é música para os nossos ouvidos. Não é uma tarefa difícil para cumprir ou exigência pesarosa a ser atendida. O sentimento é de estarmos recebendo um presente. Quem de nós não gosta de uma folga, de um feriado, de merecidas férias? Quem não se sente bem quando, depois de uma cansativa jornada, pode jogar tudo para o alto pelo menos uma vez por semana? Aquilo que atende às nossas necessidades não pode ser entendido como um “mandamento”, mas como um presente, uma dádiva. O descanso é um direito que nos é concedido.
Porém, apesar de ser um mandamento que atende as nossas necessidades físicas e mentais, que só quer o nosso bem, ele é transgredido e desrespeitado continuamente. O mandamento não limita a nossa liberdade; pelo contrário, promove e preserva a nossa liberdade. “Você trabalhará seis dias e fará todo o seu serviço. Porém, no sétimo, você descansará.” No sétimo dia, você pode interromper o seu trabalho porque seis dias devem ser sufi cientes para garantir o sustento de sete dias para a família. No sétimo dia, você pode descansar e desfrutar dos resultados de seu trabalho. O sétimo dia pertence a Deus – ele o concede como presente a você para que você possa descansar nele. Por isso você corresponde a esse presente santificando o dia de descanso (texto de Lutero).
Que esse mandamento é uma dádiva nós podemos deduzir ao analisar como o trabalho consome nossa vida. Embora a nossa jornada de trabalho esteja regulamentada pelas leis trabalhistas, a necessidade de trabalhar cada vez mais se avoluma e o descanso cada vez mais perde em qualidade. Fazemos hora extra, dupla jornada, bicos e trabalhamos no final de semana… Tudo isso para juntar o sufi ciente para atender nossas necessidades e poder pagar as contas no final do mês ou para satisfazer nossa ganância. Sentimo-nos cada vez mais limitados em nossa liberdade.
O mercado gostaria que nós trabalhássemos 18 horas por dia durante os sete dias da semana, tal como era no Egito dos tempos de Moisés. Porém Deus diz através do mandamento: Você tem direito ao descanso semanal. É seu merecimento por ter trabalhado seis dias. Eu, o Senhor, asseguro-lhe esse direito.
Cada qual percebe como o trabalho pode consumir sua saúde e sua vida. Por isso o mandamento de trabalhar seis dias e descansar no sétimo é uma libertação. O dia do descanso existe para proteger nossa saúde, nossa liberdade, nossa vida. O dia do descanso remete à criação. Pois fomos criados à imagem de Deus e, por isso, destinados à liberdade. Faz parte da essência de nossa vida ser livres e conduzir a vida em liberdade responsável. O dia do descanso é a grande criação de Deus – é ele quem nos concede o direito ao descanso.
Porque Deus descansou, nós também podemos descansar e renovar nossas forças. O mundo inteiro e cada obra de nossas mãos necessitam após o trabalho de uma fase de descanso para ser completada. Cada obra só se torna completa e plena após o devido repouso. Porém descanso não significa atirar-se nas cordas e fazer nada. Trata-se de garantir o espaço para poder fazer aquilo que é impedido pelo sufoco e pelos compromissos diários; poder fazer o que é prazeroso (o ser
humano não vive só de pão); no dia do descanso, poder apreciar e experimentar tudo aquilo que Deus criou muito bem.
Não podemos ignorar que, para nós podermos descansar, outros precisam trabalhar no dia de nosso descanso: médicos, motoristas, garçons, policiais, empregadas domésticas e todos os demais plantonistas. Precisamos defender o direito ao descanso comum para a maioria das pessoas. Para tanto, o comércio não precisa abrir no dia do descanso.
Todos nós necessitamos de um dia em comum, de um tempo com nossa família, com a comunidade, com os amigos. Nós necessitamos de um ritmo, de uma dinâmica de trabalho, descanso e lazer que permitam estabelecer contatos em nosso tempo livre, para poder encontrar pessoas, libertados da necessidade de trabalhar ou de exigir o trabalho dos outros. Quando os dias de descanso não mais coincidem, quando não conseguimos mais nos encontrar com família e comunidade, então a vida se torna uma escravidão.
Por isso, ao usufruirmos da nossa liberdade de descanso, cuidemos para não impedir outros do sagrado direito de descanso e de curtir família, comunidade e contatos sociais. O ritmo de seis dias de trabalho e um de descanso assegura a toda a sociedade e à criação como um todo o direito à liberdade. A liberdade torna-se plena se cada um respeitá-la e compartilhá-la responsavelmente com as outras pessoas, sem se sentir escravizado nem escravizar os outros. O mandamento deseja garantir e resguardar a nossa liberdade. A liberdade somente será plena se garantir o direito das outras pessoas a um trabalho dignificado e valorizado e ao descanso merecido.
Retomar o aspecto da liberdade concedida por Deus como dádiva – através do mandamento, o descanso é um direito assegurado por Deus.
Apontar para a necessidade de condições justas de trabalho e de descanso – a relação entre trabalho e descanso precisa ser justa.
Apontar para a necessidade e o direito do descanso em conjunto – família, comunidade, incluindo o lazer.
Apontar para a gratidão pela dádiva divina do descanso – Martim Lutero interpretou assim: Santificarás o dia do descanso.
Na época própria, pesquisar a relação trabalho-salário em sua região. Como estará a situação das empregadas domésticas em 2014? Ao escrever esta reflexão, acompanho a implantação da legislação que garante o descanso semanal às empregadas domésticas. Há mais de 20 anos, quando se legislou sobre os trabalhadores rurais, a consequência foi o desemprego, o êxodo para as periferias urbanas e o surgimento dos boias-frias. As empregadas domésticas terão seus direitos assegurados ou serão mais uma classe desempregada? Em 2014, o pregador terá em mãos dados mais concretos.
Uma ilustração pode retratar uma situação familiar urbana: A família X trabalha na mesma fábrica. O trabalho acontece em escalas: 06 às 14 horas; 14 às 22 horas; 22 às 06 horas, com direito a uma folga semanal em dias alternados. Assim, a família nunca se encontra. Férias coletivas só entre Natal e Ano Novo. Férias individuais, somente em meses diferentes. Nos cultos dominicais, apenas um familiar presente. Tensões e conflitos afloram na vida familiar. O dono da fábrica ausenta-se por períodos longos para participar de torneios de golfe no Caribe, de cruzeiros nas ilhas gregas…
ALMEIDA, Fábio Py Murta de. Coisas de Criança: uma leitura do terceiro mandamento. In: Revista de Cultura Teológica n. 55. São Paulo: Paulinas, 2006.
FELMBERG, Bernhard. Predigt zu Exodus 20.8-11. Goettinger Predigten im Internet. Disponível em: . Data: 20.05.2012.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).