|

Proclamar Libertação – Volume 38
Prédica: Mateus 21.1-11
Leituras: Salmo 118.1-2, 19-29 e Filipenses 2.5-11
Autor: Emílio Voigt
Data Litúrgica: Domingo de Ramos
Data da Pregação: 13/04/2014

 

1. Introdução

É possível compreender a entrada em Jerusalém e a ação no templo como um ato único, estendendo a perícope até o v. 17. Para este auxílio, mantemos a sugestão de terminar a leitura no v. 11. No calendário litúrgico, a perícope é indicada para o período de Advento e para o Domingo de Ramos. Ambos são momentos festivos. Dentro da estrutura do Evangelho de Mateus, o relato marca o início da paixão de Jesus. A alegria da chegada do Messias pressupõe a posterior amargura da cruz. O texto de Filipenses fala do despojamento de Cristo ao assumir a condição humana e enfrentar o escândalo da morte na cruz. Esse caminho de rebaixamento conduz à exaltação. Nesse caso, o Domingo de Ramos sucede a crucificação.

 

2. Exegese

Entre as várias diferenças nos relatos de Mateus e Marcos destacam-se: Marcos menciona apena o jumentinho, enquanto Mateus fala em uma jumenta e um jumentinho. Marcos relata a ação dos discípulos buscando o jumentinho, ao passo que Mateus se limita a dizer que eles fizeram como Jesus ordenara. Mateus também omite a menção de devolver o animal. Enquanto Marcos fala em reino de Davi, Mateus faz questão de dizer que Jesus é o rei, incluindo citação do Antigo Testamento. Mateus acrescenta ainda o alvoroço causado pela entrada do cortejo, a pergunta dos habitantes de Jerusalém e a resposta dada pelas multidões.

V. 1-3 – Betfagé pertencia aos limites territoriais de Jerusalém. Era uma espécie de bairro ou distrito e distava cerca de 1 km da cidade, que se preparava para a festa da Páscoa. Jesus incumbe dois discípulos de buscar uma jumenta e um jumentinho. Não há qualquer questionamento ou admiração em relação ao fato de Jesus saber da existência e do paradeiro dos animais. No caso de alguém questionar a ação dos discípulos, a resposta deveria ser: “O Senhor (kyrios) precisa deles”. O uso de um animal que não lhe pertence seria um sinal de sua pobreza e humildade? Ou seria uma indicação de sua soberania? Assim como um governante poderia requisitar ou confiscar a propriedade de alguém, Jesus, como kyrios, também poderia fazê-lo? Ou o termo kyrios teria aqui um sentido cristológico, assim como em Filipenses 2.11?

V. 4-5 – O sentido da incumbência dada aos discípulos é o cumprimento do que foi dito pelo profeta, que Mateus não nomina. A citação do v. 5 é uma combinação de Isaías 62.11 com Zacarias 9.9. Tudo indica que Mateus não considerou ou não entendeu o texto hebraico de Zacarias. A redação hebraica contém um parallelismus membrorum, um tipo de formulação que usa palavras duplicadas ou paralelas para descrever a mesma coisa: montado sobre um jumento, sobre um jumentinho, cria de jumenta. Trata-se de apenas um animal. O evangelista, todavia, entendeu ser uma referência a dois animais. Por isso o texto grego de Mateus diz que o rei vem montado sobre uma jumenta e sobre um jumentinho. O “e” (que não está na tradução de Almeida Revista e Atualizada) dá a impressão de que Jesus cavalgaria dois animais ao mesmo tempo. Essa interpretação de Zacarias 9.9 explica por que os discípulos são enviados para buscar dois animais (em Marcos e Lucas, eles devem buscar apenas um jumentinho).

A filha de Sião é Jerusalém e é para lá que o rei se dirige. Mateus utiliza somente a designação humilde (grego: prais), omitindo os adjetivos justo e salvador, que são mencionados em Zacarias 9. O termo prais aparece no Novo Testamento ainda em Mateus 5.5; 11.29 e 1 Pedro 3.4, onde é traduzido por “manso” (Almeida). No hebraico, o significado da palavra está mais próximo de “pobre” e “aflito”. A partir do contexto de Zacarias, o sentido pode estar ligado à paz e à não violência. Pois o rei não vem montado em um cavalo de guerra, mas num jumento, e destruirá as armas de guerra (Zc 9.10). É importante lembrar que o conceito hebraico de paz não significa apenas ausência de confrontos verbais, físicos ou militares. A paz está ligada à prática da justiça e à vida digna.

V. 6-7 – Sobre os animais foram colocadas vestes, e Jesus sentou. A tradução de Almeida Revista e Atualizada explicita que Jesus sentou sobre as vestes. Mas sobre qual dos dois animais? O texto grego é ainda mais impreciso: o verbo “sentar” pode estar relacionado às vestes ou aos animais. Há, portanto, duas possibilidades de tradução: 1) Jesus sentou sobre as vestes; 2) Jesus sentou sobre os animais. A opção de sentar sobre as vestes parece ser a mais lógica, mas a ideia de sentar sobre os animais é deduzida do fato de terem sido dois os animais trazidos. Por que trazer dois animais se Jesus montaria apenas um? Mas como Jesus poderia cavalgar dois animais ao mesmo tempo? Muitas foram as explicações para o enigma na história da interpretação: Jesus teria montado primeiro na jumenta e depois no jumentinho; Jesus teria alternado entre os dois; Jesus teria usado o jumentinho como apoio para subir na jumenta; em sentido alegórico, a jumenta representaria Israel e o jumentinho representaria os gentios. Não há como saber o que o evangelista tinha em mente. Nesse caso, Almeida Revista e Corrigida e a Nova Tradução na Linguagem de Hoje acertam ao fazer uma tradução mais aberta.

V. 8 – O ato de espalhar vestes pelo caminho é testemunhado no Antigo Testamento por ocasião da aclamação de Jeú como rei (2Rs 9.13). Não era um ritual específico para a entronização, mas um gesto de honraria a reis ou pessoas muito importantes. Também a ornamentação do caminho com ramos e flores era um costume conhecido. Decoração e gestos eram acompanhados de aclamações. Em alguns casos, altas personalidades eram recebidas fora dos muros e conduzidas com solenidade à cidade. Esse costume reflete-se na versão do Evangelho de João, embora não sejam moradores da cidade, mas peregrinos os que saem para receber Jesus.

Mateus não deixa claro se todo o caminho foi ornamentado. Da mesma forma, ele não se preocupa em explicar se os peregrinos tinham uma veste sobressalente. Por veste entende-se aqui a capa. Duas eram as vestimentas básicas da época: a túnica e a capa (ou manto). A túnica era feita de algodão ou linho e tinha comprimento até os joelhos. Em casa ou no trabalho, usava-se apenas a túnica. A capa era feita de lã grossa e era a roupa que se usava em público, sobre a túnica. A capa também servia como coberta para os pobres e peregrinos (Êx 22.26s).

Diferente de Marcos, que diz serem muitos os participantes do cortejo, Mateus usa um termo que pode – mas não precisa necessariamente – ser traduzido por multidão (ochlos). O termo indica um agrupamento de pessoas, sem quantificá-las. Em alguns casos, a aglomeração de 50 ou 100 pessoas podia ser considerada uma multidão. Esse é o caso de Atos 1.15, em que a multidão (Almeida traduz por “assembleia”) era de umas cento e vinte pessoas.

V. 9 – O grupo que acompanha Jesus aclama-o com o Salmo 118.25s. O termo hosana expressava originalmente um pedido de socorro a Deus (queira ajudar; ajuda, por favor). No período pós-exílico, o Salmo 118 foi incorporado à liturgia de dias festivos. Por ocasião das principais festas judaicas, os peregrinos que chegavam a Jerusalém podiam ser saudados com esse Salmo:

Habitantes de Jerusalém: Oh Senhor, ajuda!

Peregrinos: Oh, Senhor, nós te pedimos!

Habitantes de Jerusalém: Bendito aquele que vem em nome do SENHOR!

Peregrinos: Nós bendizemos a vós outros da Casa do SENHOR!

O Salmo 118 não estava vinculado a expectativas messiânicas. Somente a citação de Zacarias 9.9 e o título “Filho de Davi” conferem conotação messiânica ao evento.

V. 10-11 – Mateus destaca que a entrada de Jesus em Jerusalém causou um impacto grandioso: toda a cidade se alvoroçou. O verbo grego é o mesmo utilizado em Mateus 27.51 (a terra tremeu) e em 28.4 (os guardas ficaram apavorados). Não é alvoroço de alegria, mas de dúvida e temor. O evangelista aponta para uma divisão: de um lado, um grupo que aclama Jesus; de outro, um grupo que se apavora com sua chegada. A pergunta da população – “quem é este?” – recebe uma resposta ambígua: “Este é o profeta Jesus, de Nazaré da Galileia”: seria um profeta, como Jeremias (veja Mt 16.14), ou o profeta escatológico? Seja qual for o caso, trata-se de uma designação positiva, de reverência a Jesus. É comum dizer que o povo que exclamou hosana também gritou “crucifica-o”. Essa afirmação é altamente questionável, pois não oferece explicação segura para a mudança tão drástica na opinião do povo. O relato de Mateus permite outra suposição. Quem saudou Jesus foram os peregrinos que entraram com ele em Jerusalém. O povo da cidade não o conhecia. É mais provável que os que gritaram pela crucificação não conheciam ou não reconheciam Jesus como profeta/messias.

Qual o sentido da entrada em Jerusalém? Não há como saber se a aclamação de Jesus foi uma ação planejada já na Galileia ou se aconteceu espontaneamente na chegada a Jerusalém. Por que, afinal de contas, Jesus foi para lá? Foi como peregrino, para cumprir suas obrigações religiosas? Queria aproveitar a festa para anunciar sua mensagem? Ou aguardava ali uma intervenção de Deus e a concretização do reino que anunciava? A marcha de uma multidão aclamando Jesus como rei tem caráter político inequívoco. Por que não houve reação das autoridades romanas, tão rápidas em agir diante de ameaças que pudessem desestabilizar a ordem? Seria porque a dimensão da ação não foi tão grande como dá a entender o evangelista? Mas a crucificação de Jesus como “rei dos judeus” não poderia ser um indício de que a ação foi considerada política? A dificuldade de achar pessoas no meio da multidão e o temor de um tumulto entre o povo poderiam explicar por que a prisão e a execução de Jesus não aconteceram imediatamente após sua entrada em Jerusalém? Não há como dar respostas seguras.

O historiador Flávio Josefo cita vários casos de movimentos proféticos no período de 30 d.C. a 73 d.C. Entre eles, pelo menos seis apresentam analogias com a ação narrada em nossa perícope. Os traços comuns desses movimentos eram:

– Um grupo dirige-se a um determinado local;
– Local e caminho têm importância simbólica;
– O grupo que marcha espera a manifestação de Deus;
– A ação é comandada por um profeta;
– A ação é combatida pelas autoridades;
– O acontecimento esperado não se realiza.

Os profetas estavam convictos de que suas ações simbólicas resultariam em uma intervenção divina. Todos os movimentos foram destroçados pelas forças romanas. Seria possível dizer que a entrada de Jesus em Jerusalém foi uma ação simbólica para anunciar ou apressar a chegada do reino de Deus? Não sabemos. Também a analogia com os movimentos proféticos permanece como suposição. Em todo caso, ações simbólicas já eram conhecidas dos profetas do AT (Is 20.3; Jr 19.1-13; Os 1.2ss).

 

3. A caminho da prédica

O texto de pregação, pelo menos em seus traços gerais, é conhecido. A tradição de procissões no Domingo de Ramos colocou a figura de Jesus montado em um jumento no imaginário coletivo. A cena é normalmente idealizada e romantizada. Ela não choca, não escandaliza, porque não se tiram as consequências de reconhecer como rei alguém que não chega com pompa, mas montado em um animal que nem mesmo é seu.

A compreensão de um Jesus humilde provavelmente está bem arraigada. E ela procede do texto. Aparece como atributo do rei e é acentuada na leitura de Filipenses. A grande problemática está na compreensão do termo “humilde”. Em português, os dicionários dão várias definições. Uma pessoa humilde pode ser definida como modesta, passiva, servil, submissa, carente, pobre, simples, comedida, despretensiosa, medíocre, insignificante, que tem consciência de suas limitações. Que associações nós fazemos com essa palavra? A pergunta pode ser feita também durante a prédica. Ajudará ouvintes a refletir sobre suas concepções.

Em que sentido Jesus é apresentado como “humilde”? Cavalgar um jumento, e não um cavalo, sinaliza o oposto da imponência, presunção e glória, normalmente associadas a poder. A escolha foi intencional para indicar que Deus se revela nas coisas consideradas menos gloriosas. Há uma inversão de valores, que vai se manifestando desde as condições do nascimento até as circunstâncias da morte. Em pregação sobre esse texto, Lutero diz que quem crê em Cristo precisa reconhecer riqueza sob a pobreza, honra sob o opróbrio, alegria sob a amargura, vida sob a morte. Também podemos lembrar a afirmação do apóstolo Paulo de que Deus escolhe as coisas loucas e fracas para envergonhar os sábios e os fortes (1Co 1.27). Reconhecer as coisas pelos seus opostos e também a ação de Deus nesses opostos pode ser um bom exercício para nos tirar da zona de conforto.

O rei humilde é o rei pacificador. Essa possibilidade de significar a palavra humilde vem do contexto de Zacarias. O termo pacificador é mais adequado do que a palavra “manso”. Manso indica pessoa de temperamento afável, sossegado, dócil, pacato, mas também pode designar passividade ou alguém que se domesticou. Ser pacificador ou pacificadora não significa permanecer em posição passiva. Em Zacarias 9.10, o rei destruirá as armas de guerra. Ser pacificador ou pacificadora inclui exigir ou lutar por direitos e não se submeter às ordens que contrariam a vida. A única submissão do Jesus humilde foi em relação à vontade de Deus. Jesus subverteu as ordens. Mesmo assim, a imagem dócil e domesticada parece ser a que mais prevalece. A pregação poderia mencionar Mateus 5.5 – onde o mesmo termo grego de Mateus 21.5 é traduzido por manso (Almeida) – e apontar para o aspecto ativo de ser pacificadora e pacificador.

O texto é conhecido como a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, mas nenhum dos evangelistas trata o ato dessa maneira. É interessante observar como uma visão triunfalista se acomodou na tradição cristã. De triunfal aparentemente a ação não teve muito. Jesus não entrou com soldados, prisioneiros e despojos, como nos cortejos de reis e grandes conquistadores. E é possível que não tenha sido um grupo muito grande que o aclamou e estendeu ramos e vestes pelo caminho. Pode ser um escândalo achar que a entrada de Jesus em Jerusalém não teve a dimensão que normalmente lhe é atribuída. Mas não é a cruz ainda mais escandalosa? Se Deus se revela numa cruz, não poderia também se manifestar num pequeno grupo que reconhece em Jesus o Messias?

Moradores de Jerusalém perguntaram, e os que estavam com Jesus o apresentaram: “Este é o profeta Jesus, de Nazaré da Galileia”. Continua nossa tarefa apresentar Jesus Cristo às pessoas. Talvez um grande problema, hoje, resida no fato de que quase não se pergunta mais “quem é este?”. Ademais, como encontrar esse rei no meio da multidão e reconhecê-lo, já que ele não vem da maneira convencional? Na parábola de Mateus 25.31-46, tanto as pessoas que fizeram o bem como as que deixaram de fazê-lo não reconheceram Jesus no rosto do necessitado. Mas lá estava ele, onde menos se imaginava encontrá-lo.

As perguntas “quem é este?” e “como reconhecê-lo?” podem ser acompanhadas por outra, talvez ainda mais importante: “quais as consequências de reconhecer que Deus se manifesta de maneira tão inesperada?”. Outras perguntas ainda podem ser acrescentadas: a atração que o poder, o luxo, a fama e a beleza exercem seria decorrência da incapacidade de reconhecer um messias que vem montado em um jegue? E por que Deus age nos opostos, justamente onde não imaginaríamos a sua presença?

 

4. Imagens para a prédica

A tradição de procissões por ocasião do Domingo de Ramos é bem antiga. No século IV, é testemunhado que a comunidade cristã se reunia no Monte das Oliveiras e ali passava a tarde cantando. Às 17h, lia-se a narrativa da entrada de Jesus em Jerusalém e então iniciava o cortejo até a cidade. O bispo ia montado em um jumento, e a comunidade seguia a pé, segurando e abanando ramos. Esse costume espalhou-se também para o Ocidente, tornando-se muito popular, possivelmente porque a comunidade assumia um papel ativo. A crítica luterana à bênção dos ramos e à sua utilização como amuleto não deveria servir de empecilho para que a comunidade realize algum ato simbólico para lembrar o evento.

É interessante observar também que a figura do jumentinho ganhou bastante espaço na religiosidade popular, principalmente para referir-se ao tema “servir”. Assim como o jumentinho é um animal de carga e sua função é servir, Jesus também colocou sua vida a serviço. “Senhor, sou apenas teu jumentinho. Que todas as atenções estejam voltadas a ti, e não a mim.” Essa frase, ora atribuída a Dom Helder Câmara, ora a Madre Tereza de Calcutá, é outro tipo de associação, porém ligada ao tema da humildade (ou vaidade) pessoal.

 

5. Subsídios litúrgicos

O culto poderia iniciar no lado de fora da igreja, com a comunidade lendo, em responsório, o Salmo 118.1-2,19-29. A comunidade entra em procissão cantando um hino de aclamação. Algumas pessoas podem ir à frente, ornamentando o corredor até o altar, assim como sugere o v. 27.

 

Bibliografia

LUZ, Ulrich. Das Evangelium nach Matthäus. In: Evangelisch-Katholischer Kommentar zum Neuen Testament. Neukirchen-Vluyn: Neukirchener, 1985-2002.
VOIGT, Emilio. Die Jesusbewegung. Hintergründe ihrer Entstehung und Ausbreitung – eine historisch-exegetische Untersuchung über die Motive der Jesusnachfolge. Stuttgart, 2006.

 

Ir para índice do PL 38

 

Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).