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Breve exortação à confissão

 

Proclamar Libertação – Volume 39
Prédica:
Tiago 5.13-16
Leituras: Mateus 3.5-6 e 1 João 1.8-10
Autor: Osmar Luiz Witt

1. Apresentando o tema

O assunto “confissão de pecados” já foi trabalhado anteriormente em Proclamar Libertação, num excelente estudo do P. Harald Malschitsky, publicado em suplemento sobre o Catecismo Menor de Martim Lutero no ano de 1982. Valho-me dessa contribuição e reproduzo aspectos relevantes, pois certamente aquele texto não está mais facilmente acessível.

Encontramos uma referência clara à prática da confissão de pecados no Catecismo Menor de Lutero: “Que é confissão? Resposta: A confissão compreende duas partes: primeiro, que confessemos os pecados; segundo, que se receba a absolvição ou remissão do confessor como de Deus mesmo, sem duvidar de modo algum, mas crendo firmemente que por ela os pecados são perdoados perante Deus no céu. Que pecados devemos confessar? Perante Deus devemos confessar-nos culpados de todos os pecados, também dos que ignoramos, como fazemos no Pai-Nosso. Mas perante o confessor devemos confessar somente os pecados que conhecemos e sentimos no coração. Quais são esses? Considera aqui o teu estado à luz dos Dez Mandamentos (…)”

Do mesmo teor, mas aprofundando o tema, são as afirmações contidas na “Breve exortação à confissão”. Ela não fazia parte das edições mais antigas do Catecismo Maior, contudo o próprio reformador Martim Lutero considerava o assunto de grande relevância para as pessoas cristãs. Como sabemos, a origem dos Catecismos está relacionada com a atividade de visitação que Lutero realizou entre 1528 e 1529 em várias comunidades. Ele fizera a constatação de que havia, entre a população e também entre pregadores e pastores, um grande desconheci- mento a respeito de questões elementares referentes à doutrina cristã. Além disso, a renovação da igreja pela redescoberta da mensagem do evangelho fez com que muita gente, a pretexto de vivenciar a liberdade cristã, simplesmente passasse a ignorar a prática de confessar-se. Aquilo que antes, no seio da igreja medieval, se havia tornado obrigação, na nova situação passou a ser rejeitado sob o argumento de se estar fugindo do cerceamento à liberdade cristã. Em vista disso, a breve exortação de Lutero acentua que é preciso entender a confissão como uma dádiva concedida à igreja e não como uma imposição a qual estejamos obrigados. De outra parte, desperdiçar ou diminuir a confissão é julgar-se mais e melhor do que realmente somos. Lutero escreveu: “Grave, então, como já disse muitas vezes, que a confissão consiste em duas partes: a primeira é obra e atuação nossa, da pessoa lamentar seu pecado e desejar consolo e alívio para sua alma. A outra parte é a obra de Deus, que absolve dos pecados por meio da palavra colocada na boca da pessoa humana. Essa, aliás, é a parte mais sublime e nobre, que torna a confissão tão agradável e confortadora. O problema é que até agora se insistia somente em nossa atuação, preocupando-se apenas com que a confissão fosse bem pura, ao passo que a segunda parte, a mais necessária, não recebia atenção nem era pregada, como se [a confissão] não passasse de uma boa obra com a qual se prestaria pagamento a Deus”.

Essa mesma perspectiva defendida por Lutero nos Catecismos reaparece na Confissão de Augsburgo, na qual três artigos ocupam-se com o tema. O artigo 11 afirma: “Da confissão ensinam que a absolvição particular deve ser mantida nas igrejas, ainda que na confissão não é necessária a enumeração de todos os delitos, pois tal é impossível, segundo o Salmo: ‘os delitos, quem os discerne?’” A oportunidade da confissão de pecados é concedida para que as pessoas cristãs reencontrem o caminho da paz de consciência quando essa é perturbada por pecados praticados. Conforme se lê no artigo 12: “Do arrependimento [poenitentia] ensinam que os caídos depois do batismo podem alcançar a remissão dos pecados a qualquer tempo, quando se convertem, e que a igreja deve conceder a absolvição a tais que voltam ao arrependimento. Mas o arrependimento consiste, propriamente, nas duas partes seguintes: uma é a contrição, ou os terrores metidos na consciência pelo reconhecimento do pecado; a outra é a fé, que nasce do evangelho, ou absolvição, e crê que os pecados são perdoados por causa de Cristo, consola a consciência e liberta dos terrores. Depois devem seguir as boas obras, que são os frutos do arrependimento”.

Ao contrário do que se costuma ouvir em muitas comunidades evangélicas luteranas, o que nos diferencia dos irmãos e irmãs católico-romanos não é o fato de que a gente não precisa se confessar. Ou pelo menos essa nunca foi a intenção do movimento da Reforma. Na mesma Confissão de Augsburgo, no artigo 25, lê-se: “A confissão não está abolida em nossas igrejas. Pois não se costuma dar o corpo do Senhor a não ser àqueles que previamente foram examinados e absolvi- dos. E o povo é instruído diligentissimamente sobre a fé na absolvição, a respeito da qual antes de nossos tempos houve profundo silêncio. Ensina-se aos homens que tenham a absolvição em alto apreço, porque é a voz de Deus e é pronunciada por ordem de Deus. Louva-se o poder das chaves e lembra-se quão grande conforto leva às consciências aterrorizadas e que Deus requer a fé para que creiamos nessa absolvição como sua voz que soa do céu e que essa fé verdadeiramente alcança e recebe a remissão dos pecados.(…)”

Lutero e os escritos confessionais luteranos estimulam-nos a preservar a confissão de pecados em três modalidades: primeiro, a confissão que fazemos a Deus, confiados/confiadas em sua misericórdia e na entrega de Jesus por nós. Segundo, a prática do perdão mútuo, reconciliando-nos com quem foi prejudica- do por palavras, ações e omissões nossas. Isso é que aprendemos na oração do Senhor, o Pai-Nosso: “Perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores”. Terceiro, a confissão que fazemos diante de um confessor ou confessora, conforme também recomendam várias passagens das Sagradas Escrituras, entre elas a de Tiago 5. Essa prática, embora tenha quase caído em desuso entre nós, constitui-se numa excelente dádiva que Cristo concedeu à igreja (Mateus 16.19; 18.18). Não precisamos carregar nossos “fardos” sozinhos. Podemos reparti-los com uma pessoa de nossa confiança e dela receber o anúncio do perdão, o qual restitui a paz ao coração abatido e atribulado. “Essa modalidade da confissão é oferecida livremente a cada qual que dela necessite, para que possa fazer uso dela em sua necessidade”.

 

2. Reflexão bíblica

A carta do apóstolo Tiago tem uma importância singular para os cristãos da família luterana. Seguindo a ênfase do reformador Martim Lutero, sempre enfatizaram que a salvação não depende da realização de boas obras, mas que ela é resultado da obra de Jesus em nosso favor, ela é graça. Precisamos apenas acolher essa boa notícia com fé, isto é, com confiança na vontade salvadora de Deus. Há inúmeras passagens bíblicas que podem ser lembradas para fundamentar esse ensinamento. Basta mencionar a mais citada, de Romanos 1.17: “O justo viverá por fé”. Ora, a Carta de Tiago parece dizer o contrário, que é preciso demonstrar a fé por meio de boas obras. No tempo da Reforma, aceitava-se que boas obras seriam aquelas que praticamos para receber recompensa. A gente poderia fazer jejum, orar, dar esmolas ou realizar outras obras de caridade. Assim, teríamos um saldo positivo em nossa conta junto a Deus. Mas as boas obras justamente não são aquelas que fazemos em favor de nós mesmos ou com a intenção de merecer algo. Boas obras são aquelas que fazemos em favor de nosso próximo, aquela pessoa que precisa de nossa presença e cuidado. É oportuna a recomendação de Tiago: visitem as pessoas doentes, orem uns pelos outros, arrependam-se dos maus caminhos e confessem os pecados cometidos. O apóstolo poderia dizer-nos: não pensem que a vossa fé é apenas de palavra. Ela se traduz nas opções, nos caminhos e nas ideias que definem o que é importante para vocês. Tiago não quer deixar que a fé se torne irrelevante em nossa vida e na sociedade em que vivemos. Pelo contrário, pretende que ela se traduza em ações em favor de vida abundante. A fé também saberá ser crítica e não se deixará manipular. Assim, ao contrário do que muitas vezes se disse, a boa notícia da salvação por graça mediante a fé não está em oposição à prática de boas obras. As Escrituras ensinam a observar a ordem dos elementos: obras, por mais importantes que sejam, não podem criar a fé em nós. Isso será sempre obra do Espírito Santo. Mas a fé viva e atuante que o Espírito cria em nós sempre se traduzirá em obras.

Ao se propor a pregação sobre a perícope de Tiago referente ao tema da confissão de pecados, está se fazendo a opção por destacar um aspecto do texto dentre outros (“confessem os seus pecados uns aos outros” – v. 16). As passagens do Evangelho segundo Mateus (João batizava as pessoas que confessavam seus pecados) e da Primeira Carta de João (Deus perdoa os pecados de quem confessa) igualmente são referências ao tema. Na passagem de Tiago, “o traço comum aos v. 13-18 é a oração, com ênfase especial nos casos do doente e do pecador” (Bíblia de Jerusalém). A prática de comunidade que Tiago conheceu ou experimentou e descreveu nessa passagem permite uma aproximação com o modelo de vida cristã que Lutero defendeu em seus escritos. A redescoberta de textos como esse possibilitaram uma nova concepção e prática penitencial. Confessar os pecados na vida comunitária ganha, nesse modelo de igreja, uma dimensão profundamente terapêutica. Tiago menciona a cura (salus, salvação) como o resultado da oração pelo doente e pela pessoa pecadora. A intervenção dos presbíteros é recomendada, posto que esses eram pessoas com maturidade na vivência da fé. A comunidade cristã é espaço acolhedor para quem está alegre, para quem está tris- te, para quem está doente e para quem sente sobre os ombros o peso de sua culpa. A comunidade descrita por Tiago é espaço no qual as pessoas se sentem responsáveis umas pelas outras, militam em conjunto, apoiam-se e aliviam as cargas.

 

3. Meditação

Chegou o tempo da salvação! Ou então: “O reinado de Deus está próximo!” Arrependei-vos e crede no evangelho! Arrepender-se de quê? Dos pecados? Quais pecados? Ainda existem pessoas que se preocupam com o que é pecado? Hoje diz-se que esse discurso da igreja sobre pecado é somente para impor culpa às pessoas. Melhor libertar-se dessa imposição. Mas isso é justo o que a mensagem do evangelho diz: vocês são libertados de pecado e culpa porque Jesus os inocentou! Depois de Jesus, o discurso não é mais, em primeiro plano, sobre pecado e culpa, mas sobre perdão e reconciliação. Somos pessoas reconciliadas com Deus porque ele nos amou primeiro. Deus acolheu-nos e segue dispensando-nos seu cuidado para que sejamos fortalecidas e fortalecidos, a fim de que possamos sinalizar sua presença entre nós. A prática da oração de uns pelos outros e da confissão uns aos outros, como recomendada pela Carta de Tiago, visa criar um espaço de cuidado e de apoio fraterno e sororal. Na comunidade de pessoas batizadas, viver o Batismo significa a oportunidade para encontrar o caminho da reconciliação, libertando-nos de pecados e de culpas que pesam sobre nós. Viver o Batismo é saber que há possibilidade de reconciliação consigo mesmo, com o próximo e com Deus. O Batismo de Jesus, assim como o nosso Batismo, coloca-nos dentro da esfera de atuação do Espírito de Deus, capacitando-nos e fortalecendo-nos para dar testemunho de seu amor e para colocá-lo em prática em nossas relações. Sejamos felizes e permitamos que as outras pessoas sejam felizes também. Livremo-nos das culpas e dos interesses egoístas e tenhamos coração para a dor do nosso próximo: Misericórdia quero e não holocaustos e cerimônias religiosas! (Isaías 58). A nova vida que nasce do perdão que recebemos de Deus nunca vem dissociada de uma prática coerente em favor da vida das outras pessoas também. O reinado de Deus traduz-se entre nós em sinais de perdão, vida nova e salvação. A prática da confissão pode ser oportunidade de libertação de culpa e de opressão. O perdão anunciado é qual remédio que restaura a alegria de viver e de poder abraçar as pessoas com quem convivemos. “O confessando é libertado de um peso que o tornava uma pessoa ensimesmada, pois o peso do pecado fecha as pessoas em si mesmas e as afasta das demais. A culpa confessada e perdoada abre o caminho à comunhão com os outros” (H. Malschitsky).

 

4. A caminho da prédica

A pregação pode seguir o seguinte esquema:

a) Inicialmente, pode-se lembrar a prática confessional no tempo da Reforma luterana e como a ênfase na salvação por graça mediante a fé possibilitou dar novo conteúdo à confissão de pecados, enfatizando o perdão de Deus, que liberta para uma nova vida. O acento não recai mais sobre a perfeita enumeração dos pecados cometidos (a qual nunca se sabe ao certo se foi alcançada), mas sobre a perfeita obra de Cristo em nosso favor. A absolvição divina possibilita reconstruir a vida.

b) Apresentar o texto bíblico e destacar a prática comunitária da oração e da confissão de pecados (através de ambos manifesta-se o poder de curar).

c) A cura que o perdão divino possibilita é expressão da proximidade do reinado de Deus entre nós nos termos que foram expostos na meditação.

d) Estimular e desafiar a comunidade para romper os preconceitos em relação à prática da confissão particular e da oração de uns pelos/pelas outros/outras.

 

5. Subsídios litúrgicos

Saudação:

“Se confessarmos os nossos pecados, Deus é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça” (1Jo 1.9).

Confissão de pecados:

Deus, Senhor onipotente, Pai misericordioso! Eu, pobre e mísero ser humano, confesso-te todos os meus pecados e iniquidades que cometi em pensamentos, palavras e ações e com os quais, a qualquer hora, causei a tua ira, merecendo o teu castigo temporária e eternamente. Todos eles, porém, me oprimem e deles me arrependo de todo o coração. Suplico-te pela tua infinita misericórdia e pela inocente e amarga paixão e morte de teu Filho Jesus Cristo: queiras compadecer-te de mim, pobre ser humano pecador, e perdoar-me todos os meus pecados e conceder-me benignamente, para melhorar a minha vida, a força de teu Espírito Santo. Amém.

Anúncio do perdão:

“Mas eu – eu mesmo – sou o seu Deus e por isso perdoo os seus pecados e os esqueço” (Is 43.25).

Oração do dia:

Deus, fonte de amor! Agradecemos que nos reúnes aqui para servir-nos com o teu perdão, tua Palavra [e Sacramento]. Concede que o nosso louvor a ti seja sincero. Capacita-nos com teu Espírito Santo em nossa disposição de viver reconciliados e em paz com tudo o que criaste. Acolhe nossas orações e responde-nos no tempo certo, de acordo com a tua vontade. Não permite, Senhor, que a dor e a injustiça nos sejam indiferentes. Fortalece-nos na fé, na esperança e no amor. Oramos em nome de Jesus, que Contigo e o Espírito Santo é luz para os nossos caminhos, desde sempre e para sempre. Amém.

Hinos:

HPD I : 148, 150, 152;
HPD II: 336, 378, 379.

 

Bibliografia

LIVRO DE CONCÓRDIA – As Confissões da Igreja Evangélica Luterana. 2. ed. São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 1981.
MALSCHITSKY, Harald. “A Confissão”. In: KILPP, Nelson (Coord.) Proclamar Libertação – auxílios homiléticos (Suplemento 1, Catecismo Menor de Martim Lutero). São Leopoldo: Sinodal, 1982. p. 210-215.
UNSER GLAUBE – Die Bekenntnisschriften der evangelisch-lutherischen Kirche. 6. ed. Gütersloh: Gütersloher Verlagshaus, 2013.

 

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Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).