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Do desejo de vingança à crítica penitente

 

Proclamar Libertação – Volume 39
Prédica: Jeremias 11.18-20
Leituras: Marcos 9.30-37 e Tiago 3.13-4.3, 7-8a
Autor: Antonio Carlos Ribeiro
Data Litúrgica: 17º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 20/09/2015

 

1. Introdução

A violência é sempre um apelo forte, surge das pulsões mais elementares, encontra eco numa realidade mal informada e em sociedades com os valores cor- rompidos e nunca restabelece a justiça. Por maior que seja o impulso de suposta- mente “estabelecer a justiça”, essa nunca se concretizará sem uma metrificação das penas, de modo a tornar justa a punibilidade legal. Esse é o sentido da Lei de Talião ao determinar o “olho por olho, dente por dente” e não o da vingança sórdida, desmedida e baseada em massacres, comum em nossa história, incluída a recente.

Jeremias é um caso paradigmático a provocar profunda reflexão, especialmente em espaços sagrados, vestidos de imagens religiosas, com vitrais visibilizando a história da salvação e movimentos marcados por ritos litúrgicos, como a pretender a absorção e cristalização do sagrado. A motivação desse ato é ainda mais perigosa, já que a devoção, a emoção e mesmo a paixão são sentimentos sem parâmetros, avassaladores, que pretendem o apoio de todas as forças, atropelam os sentidos e desprezam a razão. Por isso sempre desembocam num desejo último, desesperado, inatingível, como quem dispara o gatilho da máquina fotográfica com o objetivo – inalcançável – de evitar a morte do momento, como mostrou Susan Sontag.

O Evangelho de Marcos trouxe o ensino de que “quem quiser ser o primeiro será o último e servo de todos”. Jesus foi contra a violência pressuposta nos valores da época, nadou contra essa maré, apostou numa fé autêntica que não se rende às pressões do poder. Como ensinaram os alemães: Nur tote Fische schwimmen mit dem Strom (Só os peixes mortos nadam com a correnteza). Já a Epístola de Tiago ensina que o sábio busca o caminho da mansidão, do proceder condigno e não o da inveja amargurada, da vingança ressentida e da história vivida pelos injustamente vencidos. Só em paz encontramos as soluções, nunca com inveja, mentira, guerra e morte.

No esforço para ser a voz do sagrado, Jeremias não temeu olhar para a própria humanidade. Percebeu a trama, sentiu a amargura da traição, viveu a paixão de não sensibilizar os algozes, mas assim como Jean Valjean, de Os Miseráveis, recusou entregar-se à vingança, preferiu o sofrimento dos pobres, não apelou à morte dos inimigos. Pelo mesmo sofrimento, o Jesus de Christ lag in Todesbanden, de J. S. Bach, esteve nos laços da morte, mas ressuscitou.

A crítica penitente nasce do critério, do parâmetro e da medida. E não se constrói sem dor.

 

2. Exegese

A Assíria era uma potência econômica e militar quando o profeta Jeremias nasceu em Anatote em torno do ano 650 a.C. No entanto, ao assumir seu trabalho profético na juventude (627 a.C.), o império assírio já tinha concluído a linha de ascensão, feito a curva do apogeu e mergulhava no declínio, sucumbindo menos de um século depois (512 a.C.) à monumental força do império babilônico, que surpreendeu pela ascensão célere.

Durante esse mesmo período de crise econômico-política, que determinou a decadência dos assírios e a ascendência veloz e hegemônica dos babilônios, o reino de Judá teve liberdade e avanços econômicos, chegando a estender para o norte o seu território. Nesse ambiente e período (622 a.C.), começou sua reforma religiosa sob a liderança do rei Josias. Época de crescimento econômico que produz mudanças, inclusive na vida religiosa, a reforma propôs-se erradicar os cultos que perderam a autenticidade, condenando a idolatria – como sempre associada a um sistema de interesses, acomodação e vantagens, construído a partir dos altares e santuários no interior – e centralizando o culto em Jerusalém.

A entrada em cena de Jeremias deve-se a seu apoio às reformas e ao rei Josias. A atitude religiosa e política não dispensou a criticidade que, aliada ao dever profético (falar em nome de Deus ao povo) e sacerdotal (falar em nome do povo a Deus), manteve a distância necessária à criticidade e à argúcia para ler os fatos. Assim, logo percebeu que a reforma tinha limites e não seria profunda, que havia estruturas religiosas criadas, com sacerdotes e cultos ativos, o sistema de ofertas vigente e que a pouca experiência da justiça de Javé não sensibilizou os sacerdotes com as lutas dos pobres.

Não basta conhecer a lei de Javé sem ouvir o clamor dos seus filhos; nem anunciar sua aliança com o povo, sem sair em defesa desse; nem anunciar a aliança divina, sem ver sua usurpação sob as bênçãos dos sacerdotes. Se esses tomassem a sério a aliança com Javé, a reforma poderia ter transformado o povo e o país, com benefícios para todos. Mas a reforma acabou se resumindo ao conflito de interesses do reinado e dos sacerdotes, pelo que o profeta a rejeitou e denunciou.

A pregação do profeta Jeremias concentrou-se no caos que sucedeu ao povo, não escondeu crises como a ascensão do império e os efeitos danosos da concentração de poder e propôs ao povo uma atitude de arrependimento, confissão e retorno ao cumprimento da aliança. Em meio ao encantamento com o poder e a confiança exagerada no nacionalismo, o discurso de Jeremias teve péssima repercussão, especialmente entre a classe sacerdotal.

Diante dos riscos, Jeremias mostrou-se insistente e disposto a pagar preços. Assumiu sua causa profética, reuniu as forças, enfrentou os conflitos e assumiu as consequências. Recebeu uma mensagem de que estava sendo vítima de uma trama perversa. Sentiu-se como um cordeiro, o animal inofensivo que é docilmente levado para o matadouro. Nosso texto reflete esse conflito existencial e espiritual, inserido no contexto das chamadas confissões de Jeremias. É a primeira parte da série de cinco confissões entre os capítulos 10 e 20 (11.18-12.6; 15.10-21; 17.14-18; 18.18-23; 20.7-13).

As confissões de Jeremias refletem a fala pessoal do profeta. São desabafos que expressam sua dor, angústia e revolta contra o povo e contra Javé, contrastando os sentimentos de confiança e compromisso com a missão que recebeu de Javé. Mesmo variando em forma e conteúdo, três elementos destacam-se em todas elas, caracterizando sua marca e constituindo seu centro: 1. A perseguição, hostilização e ameaça por causa da pregação (11.19; 15.10,15; 17.15,18; 18.18,22s.; 20.10s.); 2. A legitimidade: surgida entre sua pregação e a ação de seus inimigos, e as esperanças de Jeremias depositadas em Javé, de quem pedia julgamento e legitimação de sua ação (11.20; 15.11,15,16ss.; 17.16; 18.20; 20.12); e 3. A vingança: que pede que Javé realize (11.20; 15.15; 17.18; 18.21-23; 20.12).

É possível e legítimo que alguém a serviço de Deus sinta dúvidas quanto à missão, sofra riscos e ameaças, podendo até desesperar-se em algum momento. Mas deve admitir sentimentos “maus” e “demasiadamente humanos”, como o desejo de vingança, e dirigir-se a ele, entregar o que o maltrata e pedir a justiça dele.

 

3. Meditação: Jeremias ainda é um modelo de atuação para nosso tempo?

Assumir a vocação com um amor autêntico, forte e intenso provoca impactos nas instituições religiosas e nas sociedades. A determinação de perseguir objetivos, negociar avanços e alcançar mudanças sempre encontra resistência e provoca dor e sofrimento. A frase “a dor é inevitável, o sofrimento é opcional”, de Carlos Drummond de Andrade, ensina-nos que a dor é uma consequência para quem faz opções, assume projetos e luta por resultados. Já o sofrimento depende- rá do amor, dedicação e preços a serem pagos, mas será sempre abatido na conta da alegria profunda, da palavra latina gaudium – o sentimento de quem sempre foi fiel aos caminhos que escolheu –, daí tirando a força para lutar.

Jeremias avaliou e interveio na reforma proposta pelo rei Josias, que centralizou o culto, lidou com o poder dos sacerdotes e do Templo e confrontou interesses sacerdotais locais. Isso criou desconforto com os sacerdotes de Anatote, que se fecharam num bloco para defender suas prerrogativas, assegurar os lucros e conjugar interesses de classe. Mas, no final, perderam seu ministério, tendo que se sujeitar ao clero de Jerusalém. Ao mostrar simpatia pela reforma, Jeremias foi considerado traidor por amigos e familiares.

Na verdade, o motivo da perseguição foi sua pregação profética, pela qual não perdeu sua criticidade. Ele nunca defendeu integralmente a estrutura da reforma, percebendo suas falhas e denunciando a corrupção sob o manto religioso. Desenvolveu uma visão crítica e objetiva dos acontecimentos nacionais e internacionais, chegando a relativizar a confiança na eleição de Sião. Não temeu o conflito, assumiu-o e suportou. Desafiou o rei e o Templo. Denunciou. Profeta que sabe a que veio torna-se um incômodo. E se “escondeu em Deus, contra Deus”, como disse Lutero.

 

4. Imagens para a prédica

Alguns conflitos resultam da incapacidade de enfrentá-los, pelo menos da forma como Jeremias enfrentou os do seu tempo. Nosso primeiro erro é temê-los e evitá-los. Ficamos silenciosos, enquanto ele cresce. A teologia que não corre riscos e que não desafia as comunidades deve perguntar-se a que veio e como lidar com a profecia emudecida. Perplexos, indagamos pelos teólogos, ministros e lideranças leigas. Seguimos mudos, a voz arde no peito, mas quando sairá das gargantas e chegará às ruas e praças?

A leitura teológico-pastoral precisa, mãe da estratégia, não tem seu parto no medo. Só quando o enfrentamos, avançamos. Os temas da política eclesiástica e da exclusão étnica e social são paradigmáticos. Um resolvemos, e não nos incomoda mais. O outro tememos, fugimos e sublimamos como o “obstáculo que fomos incapazes de superar”. O medo desse conflito inconcluso é pior do que o conflito.

O primeiro era a tensão com a ditadura militar, a ideologia da superioridade, a moral kantiana do dever, o apoio dissimulado da igreja e até um membro entre os generais presidentes. Aí veio a assembleia da Federação Luterana Mundial (1970), a construção da sede da igreja em Porto Alegre (RS), o grito tamponado diante das torturas, o mal-estar dos demais luteranos, a transferência da assembleia para Evian-les-Bains na França. A crise abriu o tema, provocou o debate, fez surgir o Manifesto de Curitiba e o conjunto de avanços dos anos 1970.

O segundo é o desdobramento dessa proposta teológico-pastoral para dentro da realidade brasileira. Os novos campos de missão, as pastorais populares, a formação de lideranças para as funções públicas, a participação de luteranos em temas políticos, religiosos e educacionais que supõem debate, pedem estratégias, despertam vocações, exigem aprimoramento qualificado e continuado. Onde o compromisso da igreja com a terra brasilis que os imigrantes fizeram sua pelo trabalho? E dos membros da igreja, ordenados e leigos, ocupando funções em organismos continentais e mundiais? E a participação da igreja na década em que o país deu um salto de desenvolvimento? Que impactos proporcionou? Que efeitos sofreu? Como entender sua diminuição vertiginosa nos centros urbanos do país? Por que acabaram as parcerias frutíferas da década de 1990? Por que mudamos tanto em uma década e, aparentemente, não debatemos essas mudanças?

A reforma, firmada na pessoa de Josias, não avançou após sua morte. Poderia estar comprometida desde o início? Não tinha o estofo necessário para se perpetuar? Tudo isso pode ser verdade, mas não limitou a atuação do profeta, que sabia a que veio. Seu sacerdócio não o fechou nas sacristias nem o tombou vítima dos conluios, mesmo tendo pago preços altos e vivido grande solidão. A diferença do profeta pode ter sido “não ter perdido a esperança”, ter se dado conta de que, precisamente para isso, ele estava ali naquele momento, não ter perdido o ímpeto, mesmo tendo aparecido muito e dizer que não era sua tarefa, que interferia em assuntos que não lhe cabiam, que não teria o apoio devido ou simplesmente que não conseguiria.

Em meio à prisão, sob a destruição de Judá, comprou um campo em Anatote, sinalizando que todo mal não lhe fez turvar a visão. Sofreu pela condição humana e por ser profeta. No completo abandono e isolamento, descobriu que a legitimidade de sua função vinha do próprio Deus e da necessidade do povo. Anunciou o que não queria. Orou pedindo o que queria. Brigou com Deus pela simples convicção de que só dele viriam as respostas. Não esmoreceu na busca pelo sentido para os absurdos da vida. Assim, moveu o chão do Templo e as fronteiras do reino a partir da sua vocação. E assumiu os preços de suas dores, recusando-se a sofrer.

 

5. Subsídios litúrgicos

Saudação:

Amada comunidade: neste Pentecostes, aprendamos a confiar no Espírito que pôs ordem no caos inicial, levantou profetas, criou a igreja, vocacionou servidores – ordenados e leigos – para nosso tempo e lugar. Que ele nos desinstale, nos dê tarefas crescentemente mais difíceis, faça-nos ver possibilidades maiores que as dadas pelo nosso tempo. Que nos dê curiosidade, ousadia, percepção e capacidade para ler sinais dos tempos. Para que ajudemos as comunidades a auscultar estes tempos. E para que aceitemos o mandato do anúncio da salvação e ousemos fazer os que os outros insistem ser impossível. Para que possamos corresponder à tarefa que nos confias, sem planos alternativos, pedimos.

Confissão e lamento pelos pecados:

Deus, pedimos que dês à tua comunidade vocações legítimas e pessoas sensíveis. Ajuda-nos na perspectiva pastoral comprometida, na leitura crítica da realidade e na coragem para enfrentar os próprios dilemas. Anima-nos a aproveitar nossa comunhão na comunidade de fé como uma rara oportunidade de amar. E pelas dificuldades de assumir riscos e viver desse modo, pedimos:
Tem piedade de nós, Senhor!

Oração do dia:

Buscamos tua presença como os que sabem ser espiritualmente pobres. Ajuda-nos a assumir tarefas e responsabilidades sem buscar nosso próprio interesse ou de nossa comunidade. Abre nossos olhos para nos tornar críticos e penitentes. Faze-nos vislumbrar os desafios frente aos quais nos colocas como comunidades de fé. E ajuda-nos a viver e testemunhar neste novo espaço de contiguidades. Na tua esperança, pedimos. Amém!

 

Bibliografia

KILPP, Nelson. 18º Domingo após Pentecostes. HOEFELMANN, Verner; SILVA, João A. M. (coord.). Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, EST, 2005. p. 256-262. v. 31.

VOIGT, Emilio. 18º Domingo após Pentecostes. STRECK, Edson Edilio; KILPP, Nelson. (coord.). Proclamar Libertação. São Leopoldo: IEPG, Sinodal, 1993. p. 246-251. v. 19.

 

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Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).