|

A incidência do tema fides et ratio (fé e razão) está inscrita na épica humana desde antes do deslumbre ante o mistério de uma centelha de fogo. O deslumbre humano perante o mistério, o inefável, marca a peregrinação do homo religiosus, cujo advento se confunde com os primórdios do homo sapiens. Se pusermos isto em termos gráficos, se o caminho do homo sapiens é representado por uma seta que se estende por tempo e espaço, o mistério se insere nesta como um distúrbio que fascina e choca, atemoriza, comove e desestabiliza (tremendum). Este inserir-se do mistério dá-se sempre a contrapelo ou ao arrepio da razão. O pensar a religião, o fazer teológico é um inventário anárquico desta trama em que o mistério busca ser encapsulado. Isto é observação rudimentar. Carece voltar a questões elementares para desfazer respostas velhas que jamais esgotam perguntas perenes. Esta é a questão que ressurge em momentos da aventura humana quando o vetor que descreve o itinerário da razão e suas conquistas se crê mais próximo do alvo almejado. É o momento da dissonância em meio à busca da harmonia completa, da ciência de tudo, da metafísica, da conquista ilimitada, do controle total, da tecnologia, do fim da história, do capital onipotente, do sistema dominante, das sistemáticas oniscientes, dos impérios onipresentes. Há, no entanto, nas margens escuras um poder indômito, obscuro, fascinante e terrível, fissurando esquemas. Mais terrível este se faz tanto mais se busca ocultá-lo. Eventualmente, como uma úlcera que a epiderme ignora, irrompe! Isto recebe muitos nomes. Na história do pensamento: o numen, o mistério, o não-racional, o outro, a face, o Angst, o sagrado, a différrance, o caos, o abismo, e tantos outros nomes. Deste fenômeno que está sempre a eludir o pensar canônico, a religião e a teologia alimentam-se na tarefa ingente de nutrir-se dele, representá-lo, domesticá-lo e amoldá-lo aos padrões dos saberes vigentes. Difícil encontrar algo de inusitado neste arrazoar. Um pouco mais raro é encontrar reações que divergem das tradicionais drogas relaxantes para tratar o infortúnio causado pelo mistério, para amestrar o indomável, ou como se chame o inominável. Sequestra-se o mistério à outra dimensão como uma magnitude incomensurável, sem valor de troca ou de uso no cotidiano. Esta opção amiúde vige. Outra e diversa é a abordagem assimilativa que recebe várias versões. Há quem lide com esta dimensão como se fosse uma língua apenas no aguardo por uma tradução. Há também quem, com mais ousadia, declare esta alteridade inominável uma ilusão, um delírio, ou fruto da indolência ou negligência do pensar, preguiça do conceito.

Uma opção diverge das mencionadas. Não se trata de estabelecer outra história de pensamento, um fio vermelho alternativo, uma tradição oculta, mas de detectar lugares e momentos em que algo diferente acontece. O mistério, não remetido à outra dimensão ou administrado como uma anomalia remanescente de atavismos ou obscurantismos, pode sim ser reconhecido por sua força alérgica de intervir no presente quando e onde se dá (ou oferece) como presente, como dádiva. Qualquer momento pode ser este presente inconveniente. A esses momentos pertence a Reforma do século XVI e, em particular, a obra de Lutero.

Neste Seminário Internacional não se trata primeiramente do exame do pensamento de Lutero em si e para si, antes se quer detectar genealogicamente, da maneira como são articulados, eixos que remontam à Reforma ou, especificamente, à teologia de Lutero. Fé e razão servem como chamada já que sua relação, como afirmada pela Reforma, representa um ponto nodal de como articular a questão do pensamento em relação aos seus limites e como estes pontos evocam possibilidades de buscar veredas inusitadas nesta malha de caminhos. O que interessa não é suscitar de Lutero nem sua experiência, nem seu sistema, tampouco sua prática ou sua teoria, mas seu gesto, por vezes ingênuo, por vezes ousado, de deixar o mistério aflorar sua ambivalência corrosiva do inescrutável “Deus contra Deus”. Nos quesitos da virtuosidade acadêmica, prática pastoral, erudição, disciplina, empenho e integridade pessoal, em alguns momentos Lutero consta como um dos melhores, em outros deixa a desejar, para alguns é uma luminária, para outras um disseminador de pragas e vitupérios. Em todo caso, não uma unanimidade e nem se achega a ela. Trata-se de uma impureza que nos roça a contrapelo. É por este motivo que seu gesto transcende sua biografia e sua bibliografia. Olhar esta impureza exige afinco. No impuro há germens que infectam a ordem sistemática das coisas, poluição, mistura, a impropriedade do sincretismo e de todas as coisas híbridas.

Garimpar estas impurezas é buscar pepitas no imundo. E estas tanto vislumbram como aterrorizam, atraem como repelem. Normalmente ocultamos o que não cabe na moldura. Isso Lutero não fez e antes dele ou depois dele outras e outros tampouco o fizeram. O jubileu da Reforma (1517-2017) é um convite a lembrar nem o santo nem o pecador, mas, para voltar à metáfora que Lutero usou de si próprio, aquele saco de vermes que vermina. Há uma riqueza de fontes anteriores a Lutero que carece revisitar com esta perspectiva do espanto. Assim também depois de Lutero há vários momentos em que este espanto ressurge. Quando o ano simbólico da Reforma completou 410, Heidegger chamou atenção à importância deste espanto em Lutero. Mas ele o aprendeu de um teólogo luterano, Rudolf Otto, que no ano de 1917 havia publicado O Sagrado (Das Heilige). Nesta obra buscava recobrar este olhar perdido na pesquisa de Lutero pelos profissionais do ramo. Em grande medida, Otto segue sendo negligenciado por colegas de disciplina, embora seja reconhecido na fenomenologia e na antropologia da religião.

Então este é o desafio: com ajuda de Lutero, lê-lo — por assim de dizer — de trás para frente e de frente para trás, e então recuperar o espanto que desestabiliza sistemas teológicos, políticos, econômicos, ideológicos, religiosos e eclesiásticos.
O convite está lançado!

Vítor Westhelle