Proclamar Libertação – Volume 39
Prédica: Marcos 6.1-13
Leituras: Ezequiel 2.1-5 e 2 Coríntios 12.2-10
Autor: Flávio Schmitt
Data Litúrgica: 6º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 05/07/2015
Sobre o texto de Marcos 6.1-13 há um auxílio homilético publicado no PL XXXIII. Além disso, a perícope aparece segmentada em outras edições. A perícope de Marcos 6.1-6 está contemplada nas edições XVI, XXII e XXVIII. A perícope de Marcos 6.6b-13 consta nas edições de número XIX e XXV. Isso significa que essa passagem já mereceu a atenção de seis colaboradores do PL.
A escolha do texto para o Sexto Domingo após Pentecostes está relacionada com o tema da missão. No texto de Ezequiel 2.1-5, é apresentada a visão do profeta. Ele é chamado para ser atalaia de Israel (Ez 2.1-3.21). Ezequiel ouve a voz de Deus (v. 1), que o chama de Filho do homem e pede para que fique em pé (v. 2). O profeta recebe então a missão para falar (v. 3) a um povo acomodado e indiferente à palavra do profeta (v. 4). Porém, independente da reação dos ouvintes, a missão do profeta é falar (v. 5). Essa é sua vocação.
Em 2 Coríntios 12.2-10, Paulo menciona o “espinho na carne”, símbolo de sua fraqueza e condição, que não lhe permite gloriar-se por ser mensageiro de Deus. Contudo não se sente constrangido com as adversidades da missão (v.10). Pelo contrário, tem consciência de estar “carregando” a cruz.
O Evangelho de Marcos tem sido objeto de inúmeras investigações. As conclusões da alta crítica continuam prevalecendo na compreensão do evangelho. Marcos é o evangelho mais antigo. Segundo a teoria das fontes, serviu de fonte para os demais sinóticos. Além disso, inaugura o gênero evangelho.
A estrutura do Evangelho de Marcos apresenta três partes. A atividade de Jesus começa na Galileia, passa pela Samaria e culmina em Jerusalém, na Judeia. Nessa estrutura, demarcada pelo espaço geográfico, está inserida uma estrutura literária que permite dividir o evangelho em duas partes. A primeira inclui Marcos 1.1-8.26. A segunda compreende Marcos 8.27-16.8 (Brown, p. 206). Portanto o texto de Mc 6.1-13 está inserido no primeiro bloco de textos do evangelho.
O texto de Mc 6.1-13 apresenta duas partes. A primeira, Mc 6.1-6a, tem como conteúdo a volta de Jesus a Nazaré, sua terra natal. A segunda parte, Mc 6.6b-13, trata da missão dos doze, do envio dos discípulos por Jesus. Na perícope imediatamente anterior, Mc 5.35-43, Jesus chega à casa de Jairo para ressuscitar sua filha. Na perícope que segue o texto de Mc 6.6b-13, há um relato sobre a atividade de Herodes (Mc 6.14-29). Chama atenção que entre o envio (6.1-6) e o retorno (6.30-32) dos discípulos está esse texto sobre Herodes e relacionado com a morte de João Batista (Mc 6.14-29). Portanto Jairo e Herodes demarcam a moldura do texto. Nos dois textos está em discussão o tema da ressurreição.
Marcos 6.1-6a
V. 1 – Até agora, o centro da atividade pública de Jesus havia sido Cafarnaum. Dessa localidade Jesus estabelece o primeiro circuito pela Galileia (1.39) e faz uma viagem de ida (4.35) e volta (5.21) pelo lago de Tiberíades.
Uma nova configuração geográfica passa ser tecida na narrativa. Jesus agora vai a Nazaré e dali inicia uma segunda rodada pela Galileia (6.6b). Vai a Betsaida (6.45), retorna (6.53) e depois segue para a região de Tiro e Sidon (7.24), retornando pela Decápolis (7.31). Depois visita Dalmanuta (8.10) e Betsaida outra vez (8.22). Em seguida, entra em Cesareia de Filipe (8.27), sobe e desce uma montanha (9.2,9) e pela Galileia volta a Cafarnaum (9.33). Na sequência, começa a jornada para Jerusalém (10.1).
Em Mc 6-9, Jesus encontra-se fora da área de jurisdição de Herodes Antipas, o que pode ser entendido como uma fuga de quem havia matado João Batista. Aparentemente, a missão de Jesus na Galileia havia fracassado. Além da hostilidade política do ambiente, Jesus perde o acesso às sinagogas e, por fim, é abandonado pelo povo.
O termo grego patrida geralmente é entendido como local de nascimento. Porém, como Jesus não nasceu em Nazaré, dificilmente essa palavra pode ter esse sentido aqui. Há quem diga que, para Marcos, Jesus nasceu em Nazaré, por desconhecer a história do nascimento em Belém. A verdade é que Jesus viveu em Nazaré por trinta anos. Esse tempo de vida em Nazaré faz dessa localidade sua terra natal.
V. 2 – Ao que parece, o falar de Jesus é surpreendentemente revestido de autoridade. Da mesma forma, seus atos são espantosos. O texto fixa-se no que é conhecido da vida de Jesus. Isso aparentemente deixa o pessoal confuso. O ceticismo diante dos fatos é evidente. Afinal, como poderia Nazaré, uma insignificante localidade, que de tão pequena nem mesmo aparece na lista de cidades da Galileia mencionada por Flávio Josefo, estar protagonizando essa situação? Todos conheciam Jesus. Porém ignoram “os fatos maiores do admirável poder de Jesus” (CHAMPLIN, 2002, p. 703). Ao se fixarem nos traços humanos de Jesus, nada diferentes das demais pessoas da localidade, ficam impedidas de ver a verdadeira identidade de seu conterrâneo. Certamente temiam ver nele o Messias, pois isso traria consequências imprevisíveis. Como todos os que se deparam com a verdade em suas vidas, aquela gente não acredita no que testemunha.
Embora não tivesse as credenciais tradicionais para fazê-lo, Jesus ensina na sinagoga. A autoridade maior na sinagoga tinha o poder de conceder a palavra a quem quisesse. Ao que parece, depois desse contato e rejeição na sinagoga em Nazaré, as portas das demais sinagogas fecharam-se para Jesus. As lideranças judaicas inclusive enviam espiões para verificar o que Jesus andava pregando e fazendo.
Possivelmente, Jesus tenha retornado para Nazaré a fim de descansar, rever amigos e familiares. Porém sua missão não lhe permitiu o descanso que buscava.
V. 3 – O carpinteiro (Marcos) e ilho de carpinteiro (Mateus), função da qual zombaria Celso no século II, é apresentado como ilho de Maria. A ausência de José tem duas explicações: ou José já havia falecido, ou a referência a Maria está relacionada com o nascimento virginal, que Marcos não alude em seu evangelho.
O texto ainda menciona, pelo nome, os irmãos de Jesus. Tiago, José, Judas e Simão são mencionados como irmãos. O nome das irmãs não é mencionado. A palavra adelfós pode significar irmão ou parente. O fato de todos terem se escandalizado com Jesus dá a entender que são mesmo os irmãos de sangue que o fazem.
V. 4 – Diante da reação de todos, Jesus cita um provérbio conhecido de sua gente: “Um profeta não é honrado em sua própria terra”. A familiaridade com Jesus torna-se um obstáculo para a audiência. Não sabemos ao certo a razão do desprezo. Além da familiaridade, a inveja pode estar em cena. Como é comum nessas situações, a cegueira fala mais alto.
V. 5 – Este versículo fala das limitações impostas a Jesus em sua própria terra e em meio a sua gente. Não obstante a censura no quesito milagres, Jesus dá atenção aos enfermos, impõe-lhes as mãos.
Essa obstinação do pessoal de Nazaré dá-nos uma ideia do quanto pessoas ainda hoje são privadas da manifestação do poder de Jesus por conta da censura, do descrédito e da falta de confiança. Aqui, o ministério de Jesus na Galileia fecha-se. A popularidade de Jesus declina. Doravante, apenas o grupo de discípulos, com toda a sua ambiguidade, continuará ao lado do mestre.
V. 6a – Jesus admira-se da incredulidade de seus conterrâneos. O versículo confronta-nos com o “inacreditável”. A atitude da gente de Nazaré, além de estranha, é desconcertante. Jesus parece estupefato. Mas não diz mais nada. Não há nada a dizer, apenas a fazer. Por isso o versículo continua falando dos próximos passos da prática de Jesus.
V. 6b – Diante da resistência de sua gente em Nazaré, Jesus segue para as aldeias circunvizinhas. Abre uma nova frente de contatos. Porém, diferente do que havia feito por ocasião do primeiro circuito na Galileia, agora Jesus manda seus discípulos na frente.
V. 7 – Jesus chama e envia os doze. O projeto missionário de Jesus está em ação. Esse é o modo eficaz e determinado de fazer missão. Jesus envia seus discípulos em duplas. Dois a dois, recebem poder e autoridade sobre espíritos imundos. O número dois pressupõe a duplicação do “poder de fogo” da missão.
A expressão “espíritos imundos” abre o leque de possibilidades de interpretação. Aqui cabe todo espírito que não está limpo. Toda forma de manifestação que não seja transparente, clara.
V. 8 – Este versículo confronta-nos com a ascese necessária aos discípulos missionários. Aqui está em jogo o “bem-viver” missionário. Nada de supérfluo, nada de sobrecarga. Jesus dá “instruções práticas para uma ocasião especial, instruções temporárias para uma circunstância particular” (CHAMMPLIN, p.705). Positivamente, são orientados a levar um bordão. A proibição fica por conta do pão, do alforje e do dinheiro.
Quando nossas traduções falam de dinheiro, o texto grego menciona “cobre”. Nesse caso, está se referindo à moeda de pequeno valor. Nem mesmo moeda de cobre, que dirá de prata ou ouro, devem portar os discípulos.
V. 9 – Aqui são mencionadas as sandálias e túnicas. Os discípulos devem calçar sandálias. Porém, para a veste, é recomendada apenas uma túnica. Vestir-se com duas túnicas, uma por baixo e outra à vista, era costume antigo no vestuário de pessoas de distinção na sociedade daquele tempo. Esse “luxo” é desrecomendado aos missionários enviados por Jesus.
O equipamento dos missionários é simples e provisório. Além disso, a viagem pela Galileia não seria demorada. Para dar conta de suas necessidades, alimento e abrigo, os discípulos são orientados a depender da hospitalidade. Aos missionários cabe viajar sem carga.
V. 10 – Este versículo traz mais uma recomendação aos missionários. A hospitalidade oferecida não pode ser rejeitada. O local da hospitalidade torna-se referência para o missionário. Caso tenhamos aqui um reflexo da atividade missionária da igreja primitiva, a orientação é não se deixar levar pelas conveniências e fazer do local de hospedagem uma referência para a igreja em formação. A obra missionária não pode estar sujeita a instabilidades. As referências são fundamentais para missão.
V. 11 – O v.11 aponta para uma experiência vivida por Jesus. A rejeição em Nazaré aqui vira orientação para os discípulos. Missionários devem estar preparados para conviver com adversidades e limitações, mas também com oposição e recusa.
Sacudir o pó de algum lugar é uma forma simbólica de assumir a rejeição. Os judeus não apenas sacudiam o pó, mas costumavam lavar partes do corpo e até tomar banho depois de passar por regiões pagãs.
V. 12 – Assim como João Batista havia feito, agora são os discípulos de Jesus que saem para anunciar a mensagem sobre o reino e conversão. Os discípulos convocam ao arrependimento. O arrependimento é o primeiro passo para conversão; a conversão, o primeiro passo para santificação.
A conversão anunciada pelos missionários não consiste numa simples mudança de mentalidade ou compreensão, mas uma transformação segundo a imagem de Cristo.
V. 13 – A atuação dos missionários consiste em expulsar demônios, ungir e curar enfermos. A cura com a unção de óleo parece ter sido um costume comum entre os judeus (Tg 5.14s). Acreditava-se que o óleo tinha propriedades medicinais. O fato de Mateus e Lucas não fazer menção do óleo tem levado à tese de que esse era um costume antigo na igreja e não necessariamente algum método de cura de Jesus. Independente de teoria, nada impede que Jesus e os discípulos tenham recorrido a uma prática conhecida dos judeus para curar pessoas. Nesse caso, o óleo era usado apenas ocasionalmente, pois a menção à cura com óleo aparece apenas nesse versículo e em Tiago 5.14. O normal na cura de Jesus é a imposição de mãos ou a simples palavra de ordem (CHAMPLIN, p.706).
A Palavra
O regresso de Jesus a Nazaré depois da primeira circulada pela Galileia mostra o quanto é importante voltar às origens. Nesse regresso está contemplada toda a expectativa do reencontro, por mais frustrante que esse reencontro, por vezes, possa ser. A frustração, no entanto, não impede Jesus de dar prosseguimento à sua missão. Por mais estarrecido que tenha ficado com a reação de seus conterrâneos com suas palavras e ações, a missão continua. Nazaré não é o fim da linha, por mais final e finita que tenha sido a missão de Jesus na Galileia a partir dessa localidade.
Na reação dos nazarenos importa destacar a resistência à mensagem de Jesus, embora alguns tenham percebido sabedoria e autoridade. O anúncio do reino de Deus não é algo tranquilo. Não foi para Jesus, nem haveria de ser para seus discípulos. Sempre houve e sempre haverá resistência. Mas não é da resistência que vem a ordem de comando. Pelo contrário, Jesus sabe-se comprometido com a causa do reino. Esse compromisso leva-o adiante.
Depois da narrativa em torno de Nazaré, Jesus incrementa sua prática com a colaboração dos discípulos. Agora Jesus não atua mais sozinho. Também amplia seu raio de ação. Multiplica sua capacidade de atuação. Depois de devidamente preparados, orientados e instruídos, os discípulos são enviados a fazer nas regiões circunvizinhas o que Jesus havia feito na Galileia. “A missão dos discípulos de pregar a conversão, de expulsar demônios e de curar os doentes é uma extensão da missão de Jesus, e ele lhes concede o poder de realizá-la. As condições austeras (nada de alimento, dinheiro, bagagem) demonstravam claramente que os resultados, quaisquer que fossem, não seriam afetados pelos meios humanos” (Brown, p. 216).
Diante da possibilidade de escolha da ênfase a ser dada na pregação, convém fazer uma opção. Por um lado, a pregação poderá focar o regresso de Jesus a Nazaré e as consequências decorrentes dessa decisão. Por outro lado, a pregação também poderá focar a missão dos discípulos coordenada por Jesus nas aldeias próximas à Galileia. Em cada uma das opções, a pregação poderá explorar aspectos relacionados com os textos de leitura previstos para este domingo.
Na opção pela ênfase em Mc 6.1-6a, as possibilidades de tema para pregação são várias. A ligação com pessoas e lugares pode ser abordada com o tema do regresso às origens, o tema da família, o tema dos costumes do lugar (ir à sinagoga), o tema da rejeição e o tema da ambiguidade como as coisas podem ser interpretadas (alguns enxergam sabedoria e autoridade, outros são incrédulos).
Se a opção for pela ênfase em Mc 6b-13, a pregação poderá focar o tema da missão e seus aspectos: preparativos, comissionamento, envio. O tema da conversão, das “tarefas” recebidas (curar, expulsar demônios) e do comportamento dos discípulos também pode ser abordado.
O tema da cura e expulsão de demônios parece mais adequado diante dos desafios com os quais cada comunidade local se depara com a questão. De qualquer forma, toda comunidade missionária precisa ter em seu projeto a perspectiva da libertação e cuidado das pessoas.
Isaías 55.11: Assim será a palavra que sair da minha boca: não voltará para mim vazia, mas fará o que me apraz e prosperará naquilo para que a designei.
Salmo: 86.11-17
Senhor, estamos comprometidos/comprometidas com tua missão. Queremos ser teus cooperadores. Somos tua comunidade, povo teu aqui reunido. Orienta e ajuda-nos diante da resistência, indiferença e descaso com teu evangelho. Anima nossos corações desfalecidos. Envia teu Santo Espírito e aquece nossa frieza. Dá-nos teu poder para animar, curar e cuidar. Por Jesus, nosso Senhor, te pedimos. Amém.
Oração final (Martim Lutero):
C: Tu és um Deus maravilhoso, cheio de amor. Tu nos governas maravilhosa e amigavelmente. Tu nos levantas, quando nos rebaixas.
Tu nos tornas justos, quando de nós fazes pecadores. Tu nos levas ao céu, quando nos atiras no inferno.
Tu nos dás a vitória, quando permites que sejamos vencidos. Tu nos consolas, quando nos deixas enlutados.
Tu nos fazes alegres, quando nos deixas gritar. Tu nos fazes cantar, quando nos deixas chorar. Tu nos fortaleces, quando sofremos.
Tu nos tornas sábios, quando de nós fazes tolos. Tu nos tornas ricos, quando nos envias a pobreza.
Tu de nós fazes senhores, quando nos deixas servir.
BROWN, Raymond Edward. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2004.
CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento interpretado versículo por versículo: volume 1: Mateus, Marcos. São Paulo: Hagnos, 2002.
SIEGLE, Manfredo. Auxílio Homilético Proclamar Libertação XXXIII. Disponível em: http://www.luteranos.com.br/conteudo/marcos-6-1-13. Acesso em 03.06.2014.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).