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Lado PALAVRA

A SABEDORIA EVANGÉLICA DE CONFISSÃO LUTERANA1

Pastor Mário Francisco Tessmann

No ano de 2000, as igrejas luteranas em todo o mundo foram convidadas a rememorar a Confissão de Augsburgo, que, no dia 25 de julho daquele ano, completava 470 anos de existência. Nesta data, em 1530, ela foi lida na assembleia imperial do Sacro Império Romano-Germânico, e entregue ao imperador Carlos V, como confissão de fé do movimento reformatório, que enfatizava a justificação por graça conforme ensinava Martim Lutero.

A Confissão de Augsburgo (CA) é, passados quase cinco séculos, motivo para nossa reflexão como Igreja Luterana no Brasil, em especial no que concerne àquilo que cremos e confessamos. Nesse sentido, é preciso sempre de novo indagar em que medida a CA ainda tem relevância em nosso meio como confissão de fé. Não seria ela apenas letra morta, presente na constituição eclesiástica, que serve para definição confessional?

A CA, por ser uma confissão de quase cinco séculos atrás, assim como as outras confissões, naturalmente corre o risco, em função de seu condicionamento histórico, de se tornar irrelevante para nossas questões de fé e de conduta. Isto acontece em boa medida quando nos perdemos demasiadamente nas formulações, no texto em si, e nos esquecemos do assunto do qual a confissão quer tratar. Por isso vamos nos ocupar com a CA como uma contribuição fundamental para o aprofundamento no conhecimento da verdade evangélica, proclamada na IECLB.

Protestantes desde a Antiguidade

A Confissão de Augsburgo contém 28 artigos, que estão divididos em dois grandes blocos: 1. Os que tratam da fé e da doutrina (artigos I a XXI); e 2. Os que tratam das divergências entre igrejas católica e protestantes e dos abusos que foram corrigidos pelos últimos em suas igrejas (artigos XXII e XXVIII). Neste texto vamos nos ater ao primeiro bloco, recorrendo ao segundo somente quando for necessário para esclarecer o assunto em questão. Por opção, não vamos reproduzir os artigos na sua íntegra, a não ser quando o texto da CA for indispensável para a compreensão.

Os primeiros três artigos tratam de temas que foram discutidos e decididos pela Igreja Antiga. Eles falam dos Deus Triúno (artigo I), da raiz do pecado (artigo II) e da pessoa de Jesus Cristo (artigo III). Afirmando a sua concordância com as decisões da Igreja Antiga, a CA procura enfatizar com isto que as pessoas protestantes seguem os trilhos já estabelecidos pelas cristãs na Antiguidade no que concerne às doutrinas elementares, e que, desta forma, pertencem à verdadeira Igreja.

Ao dizer que “as igrejas ensinam entre nós com magno consenso que o decreto do Concílio de Nicéia sobre a unidade da essência divina e sobre as três pessoas é verdadeiro e deve ser crido sem qualquer dúvida” (artigo I), a CA estabelece a visão trinitária de Deus, em toda a sua abrangência, como a base para a reflexão dos artigos subsequentes, ocorrendo isso de forma explícita ou não.

É nossa tarefa hoje, por isso, como igreja que quer permanecer fiel à CA, ouvirmos o que está sendo ensinado e pregado nas comunidades, e verificarmos se Deus, o Criador, se Jesus Cristo, o Redentor, e se o Espírito Santo, o Santificador, estão sendo anunciados na perspectiva da unidade trinitária, de forma equilibrada e responsável. Onde uma das “pessoas” da Trindade é esquecida ou é intencionalmente superdimensionada, teremos com certeza problemas em
nosso jeito de sermos cristãos e cristãs, de sermos Igreja de Confissão Luterana em nosso país. Vamos olhar mais de perto sobre o que ensinam o segundo e o terceiro artigos da Confissão de Augsburgo.

O nosso pecado e o Filho de Deus

Dois artigos da Confissão de Augusburgo (CA), que juntamente com a visão trinitária de Deus assumida pelos reformadores, estão na esteira das decisões teológicas definidas pela Igreja até o quinto século da nossa era. São eles o segundo e o terceiro artigos, que tratam dos temas do pecado original (artigo II) e do Filho de Deus (artigo III), conforme a linguagem da CA.

Falar do pecado original e do Filho de Deus é falar, na verdade, de nossa realidade vivencial alienada, e de quem nos liberta desta condição, respectivamente. Para entender melhor o que está se expondo aqui olhemos estes dois artigos de forma separada. Quando a CA afirma que “depois da queda de Adão (Gênesis 3) todos os seres humanos propagados segundo a natureza, nascem com pecado, isto é, sem temor a Deus, sem confiança em Deus, e com concupiscência” (artigo II), ela está procurando em última análise, descrever qual é a situação do ser humano perante Deus. Esta descrição da condição humana pode parecer um tanto negativa, ou se quisermos ir mais longe, perversa. Contudo, a visão de ser humano que a CA nos apresenta não deve ser medida segundo critérios do pessimismo ou do otimismo antropológico. A CA quer ser apenas fiel à tradição bíblica, em sua concepção de pecado. Além disso, pecado para a CA não é em primeiro lugar um ato humano, mas sim o estado, a condição do mesmo perante Deus. Ato pecaminoso existe por causa do ser humano pecaminoso e não vice-versa, afirma a Confissão.

Mas a CA não apresenta somente a nossa situação como ser humano, parando por aí. Ela indica também o caminho para a superação da nossa realidade ao dizer que Jesus Cristo veio ao mundo com o propósito de nos reconciliar “com o Pai e ser um sacrifício, não só pela culpa original, mas ainda por todos os pecados atuais dos seres humanos” (artigo III). Ao crermos nele, apesar de toda fragilidade da fé, experimentamos em nossos corações e em nossas consciências que Deus supera a alienação, consolando, vivificando e defendendo do mal. Pela fé, temos esta certeza, e isto nos basta!

O quarto artigo da CA, que veremos a seguir, trata da justificação.

Eu não posso fazer nada!

Vamos recapitular: Nos três primeiros artigos da Confissão de Augusburgo (CA), vimos que o seu autor, Filipe Melanchton, procurou ressaltar neles a sua concordância com as decisões conciliares realizadas pela igreja antiga. Já no quarto artigo, que trata da justificação, Melanchton começa a expor aqueles aspectos que fazem parte da contribuição específica da pregação reformatória.

E o que afirma o artigo da justificação, como marca distintiva da compreensão obtida por Martim Lutero acolhida por seu amigo e colaborador Melanchton? Segundo ele, “as pessoas não podem ser justificadas diante de Deus por forças, méritos ou obras próprias” (artigo IV). Ou seja, para que ocorra a relação adequada, que Deus deseja entre Ele e o ser humano, é indispensável que este último aceite que ele nada pode fazer por ela. Nada mesmo? Sim, nada! Pois somente com essa radicalidade é que o ser humano entende que o início, o meio e o fim de sua relação Deus está nas mãos do próprio Deus, e que Ele a concede, “gratuitamente, por causa de Cristo, mediante a fé, quando creem que são remitidos por causa do Cristo” (artigo IV).

Ainda segundo Melanchton, é a fé quem descortina toda a real situação entre Deus e o ser humano. Está fé, no entanto, para o autor da CA, é dádiva divina, para que ser humano não pense que ele a tenha produzido. Essa ênfase unilateral da gratuidade da salvação ocorre porque Melanchton bem como Lutero querem preservar a plena liberdade de Deus em seu agir, assim como a Bíblia a mostra. Logo, para a CA não há espiritualidade, nem tradição, nem sacramento, nem movimento ou ainda instituição religiosa que possa oferecer aquilo que somente Deus em Cristo possibilita, qual seja, a relação adequada entre Ele e o ser humano, e isto gratuitamente.

Vamos ver agora como Deus cria esta fé em nossos corações.

O vento divino

Como vimos acima, no artigo IV da CA, o ser humano é justificado por Deus mediante a fé. Como, no entanto, obtemos tal fé justificante? Para podermos responder a essa indagação adequadamente, Filipe Melanchton sugere que olhemos com atenção para o que está expresso no quinto artigo da CA, Do Ministério Eclesiástico. Na verdade o título deste artigo deveria ser De Como Recebemos o Espírito Santo, pois esse é o tema abordado pelo autor.

O Espírito Santo é uma realidade para Filipe Melanchton. Sobre ele não se precisa nem se deve discutir, visto que ele é uma das pessoas pertencentes à unidade trinitária. O que é indispensável, no entanto, é que as pessoas cristãs saibam que ele vem. Segundo o que Martinho Lutero ensinava, Melanchton afirma que “mediante a palavra e pelos sacramentos, como por instrumentos, é dado o Espírito Santo, que opera a fé, onde e quando agrada a Deus, naqueles e naquelas que ouvem o Evangelho” (artigo V).

Melanchton procura salientar nesse artigo que Deus concede o Espírito Santo por intermédio da palavra e dos sacramentos, estes que ele chama de instrumentos. Por que, no entanto, Deus precisa fazer uso de tais instrumentos para nos dar o seu Espírito? Por que nós não podemos recebê-lo diariamente? Para Melanchton e para Lutero, Deus faz uso da palavra e dos sacramentos como instrumentos para nos conceder o Espírito Santo por que Ele tem misericórdia de nós. Porque se Deus se apresentasse diretamente a nós, em sua glória e majestade, nós não poderíamos suportar esta presença desnudada, visto que Ele é completamente santo e perfeito e nós, seres humanos, somos pecadores e imperfeitos. Existe, pois, para Melanchton e também para Lutero, uma enorme diferença qualitativa entre Deus e os seres humanos. Desta diferença, Deus tem plena consciência. Nós não a temos. Em vista disto, Ele se aproxima de nós apenas via palavras e sacramentos.

Para concluir, falta nos dizer como obtemos a fé justificante, que nos permite sermos vistos e vistas por Deus como pessoas justas, apesar de permanecermos pecadoras. Conforme Melanchton, a fé é obra do Espírito Santo. É ele quem a gera em nossas vidas e isso se dá por meio dos instrumentos já mencionados. Deus assim procede por um motivo: misericórdia!

O que eu já posso fazer

Do Novo Testamento nós aprendemos que a fé legítima se evidencia em atos concretos, como nos diz Tiago. Ela é atuante por meio do amor, conforme afirma Paulo em sua carta à comunidade de Gálatas. Fé que não tem visibilidade pode ser chamada de qualquer outra coisa, menos de fé cristã. Esta “concreticidade” da fé é também uma das preocupações centrais de Filipe Melanchton. Ao redigir a Confissão de Augsburgo, em 1530, ele destacou essa temática em dois artigos, no VI, cujo título é Da Nova Obediência, e no XX, que se chama Da Fé e das Boas Obras.

Melanchton confessa, no sexto artigo, que a “fé deve produzir bons frutos e que é necessário que se façam as boas obras ordenadas por Deus, por causa da vontade de Deus, não para confiarmos que merecemos por essas obras a justificação diante de Deus”.

Inicialmente o autor da CA recorda que a fé que produz frutos é aquela fé justificante, a fé que tem sua origem na ação de Deus em nós. Não é qualquer tipo de fé que gera bons frutos, mas sim, conforme Melanchton, a fé que é dádiva divina, obra exclusiva do Espírito Santo. Por que é importante salientar isso? Porque existem outras possibilidades de fé, que necessariamente não provêm de Deus, e que por isso não têm compromisso com frutos, que não têm visibilidade, como dissemos anteriormente.

Um segundo ponto a ser destacado tem a ver com o tipo de frutos, de obras. Para Filipe Melanchton, assim como para Lutero, as ações das pessoas cristãs não devem ser simplesmente produto de sua fantasia e de sua imaginação, o que não aconteceu poucas vezes, mas sim para fazer aquilo que Deus ordenou. Melanchton e Lutero têm em vista, em princípio, os Dez Mandamentos como as boas obras ordenadas por Deus que devem orientar os cristãos e as cristãs na sua forma de agir perante Deus, o próximo e a próxima. Surgem, por vezes, situações na vida que estão para além dos mandamentos. O que fazer então? Quando isso ocorrer, Lutero e Melanchton recomendam: Examine-se a questão à luz da consciência, com bons argumentos racionais, para então poder agir conforme ela nos indica. Isso vale, no entanto, para as situações de exceção. Em nosso dia-a-dia, os critérios são os Dez Mandamentos.

Com estes dois aspectos, podemos ver como Melanchton na CA relaciona a fé com as obras, e vice-versa. Para encerrar, vamos olhar com mais atenção para o tema “Igreja”.

Santos luteranos e santas luteranas

A palavra “igreja” pertence às nossas conversas diárias. Entretanto, mesmo que façamos o uso desta palavra com tanta frequência, isso ainda não significa que todos nós estejamos falando de igreja no mesmo sentido.

Não são poucas os casos em que a palavra igreja é usada para se referir a um templo, a um prédio, onde pessoas se reúnem para realizarem seus cultos. Igreja também pode ser uma referência denominacional: a Igreja Católica, a Igreja Luterana, a Igreja Batista, a Igreja Assembleia de Deus, e assim por diante. Por ser uma palavra que é de uso múltiplo, torna-se indispensável de que perspectiva olhamos para o conceito igreja.

A Confissão de Augsburgo nos seus artigos VII e VIII faz uma leitura do termo igreja que pode auxiliar a compreender o que vem a ser a esta palavra no sentido primeiro. Segundo Filipe Melanchton, a Igreja é a “congregação dos santos”. Esta é uma definição teológica para a palavra igreja. Diferente de outras perspectivas, a igreja aqui não é alusão a um prédio, a uma denominação, mas sim a uma associação de pessoas. Mas uma simples associação de pessoas ainda não é uma igreja. O que faz com que essa congregação, esta associação se torne uma igreja? Melanchton novamente nos auxilia, dizendo que existem dois elementos indispensáveis que necessitam estar presentes nessa associação para que ela se torne igreja por excelência no sentido teológico: a pregação pura do evangelho e a correta administração dos sacramentos.

A presença desses dois elementos possibilita que uma associação convencional de pessoas possa ser chamada de congregação das pessoas santas. Esta congregação, no entanto, não é composta de pessoas perfeitas, prontas na fé, mas sim, de gente que carrega consigo a disposição de se achegar perante Deus e dizer: “Senhor, eu creio, ajuda-me, contudo, na minha falta de fé” (Marcos 9.24).

A sabedoria evangélica

Vimos que a Confissão de Augsburgo não é apenas um documento histórico, que é designado de escrito confessional na Constituição da IECLB. A CA é, no fundo, uma espécie de sabedoria teológica acumulada, que serve de orientação e de estímulo para a reflexão e a para a prática da fé evangélico-luterana.

Nota:

1. Artigo publicado originalmente no Jornal Rio dos Sinos, durante o ano 2000 e adaptado para o PalavrAção.


Este estudo teve a linguagem revista e atualizada. A proposta integra o volume 3 da Coleção Palavração denominado “Graça e Fé: temperos para a vida”, publicado em 2003 pelo Departamento Nacional para Assuntos da Juventude da IECLB – DNAJ, sob a coordenação de Cláudio Giovani Becker e impresso por Contexto Gráfica e Editora (ISBN 85-89000-14-1).


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