Proclamar Libertação – Volume 42
Prédica: Efésios 4.1-16
Leituras: Êxodo 16.2-4,9-15 e João 6.24-35
Autoria: Paulo Roberto Garcia
Data Litúrgica: 11º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 05/08/2018
A unidade é um desafio e um desejo constante nas tradições bíblicas. Ao mesmo tempo, é parte dessas mesmas tradições o desafio de que o povo de Deus seja bênção para todas as famílias da terra. Unidade e compromisso com o próximo são duas características que deveriam marcar a ação do povo de Deus no mundo. Em especial, em um mundo conflitivo como o nosso, onde a solidariedade está dando lugar ao individualismo, ao egoísmo e ao hedonismo. Infelizmente, essas características negativas da atualidade são encontradas também em comunidades de fé. Expressões de fé que valorizam o “eu” e a posse em detrimento do “nós” e da solidariedade. O resultado dessa situação, tanto nas comunidades de fé como no mundo, são os conflitos. Nosso texto nos convida a repensar a unidade do corpo de Cristo, a repensar os alicerces de nossa fé diante do egocentrismo que marca a sociedade atual e, infelizmente, também as comunidades cristãs.
A Carta aos Efésios é um texto marcado pela singularidade. Buscando fazer uma comparação, poderíamos chamar essa carta de “legado de Paulo”. Com essa comparação queremos destacar o caráter compilatório da teologia paulina. A situação que demanda essa organização é determinada pelo tempo decorrido desde o início do movimento cristão. Não podemos nos esquecer que as primeiras lideranças do movimento tinham a expectativa pela volta iminente de Cristo. Isso significava que o movimento teria curta duração. Deste modo, ele se organizava em torno das lideranças que caminharam com Jesus. Porém, com o passar do tempo, de um lado o movimento se expandiu, criando a necessidade de novos líderes e, por outro, os apóstolos e as primeiras lideranças, em especial, as detentoras da memória dos ensinamentos, foram morrendo. Com isso, tornaram-se necessárias a organização do pensamento cristão e a busca por solucionar os conflitos que surgiram nesse processo.
Um dos grandes desafios nessa compilação do ensino paulino era o de promover a unidade. Precisamos ter em mente que na substituição de lideranças, no crescimento do movimento, no surgimento de novas comunidades, na consolidação dos diversos ministérios, os conflitos começaram a aparecer e a unidade das comunidades entrou em risco. Vale destacar que essa unidade sempre foi frágil. Isso pode ser percebido tanto nas cartas paulinas como também no livro de Atos. É nesse horizonte que nosso texto se localiza. Ele é uma exortação e uma argumentação didática buscando levar a comunidade a alcançar a “unidade da fé” (v. 13).
Na organização geral da carta, temos nos três primeiros capítulos um tratado de organização da fé. Os capítulos 4, 5 e 6 são exortações para a vida cotidiana. O texto, portanto, ao desafiar a comunidade à unidade da fé, insere nossa perícope nas exortações para a vida cotidiana. A busca pela unidade manifesta-se no cotidiano da comunidade.
Nosso texto se organiza em partes. A primeira (v. 1-7) se apresenta como uma argumentação, visando levar a comunidade a agir de acordo com os modelos apresentados: a unidade de um corpo e a unidade de Cristo com o Pai. O v. 7 é uma exortação, conclui essa argumentação e abre a segunda parte, que é uma interpretação do Salmo 68.18: Subiste às alturas, levaste cativo o cativeiro; recebeste homens por dádivas, até mesmo rebeldes, para que o Senhor Deus habite no meio deles. A interpretação, em estilo judaico, usa Cristo como chave de interpretação. Cristo é o que desceu e também subiu. Nessa forma de interpretação, faz-se uma leitura livre do Salmo. Nela, Cristo oferece dons aos seres humanos. Deste modo, nessa interpretação da Escritura é ressaltada a morte/ressurreição de Cristo e o Pentecostes. A dádiva dos dons resulta nos diversos ministérios da igreja, todos eles com o objetivo de aperfeiçoar “os santos” e edificar o corpo (v. 12). No v. 13, aparece novamente uma exortação, fechando essa segunda parte. A exortação é central nesse texto. O desafio visa levar a comunidade a vivenciar “a unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus”. A última parte aparece na forma de advertência aos convertidos: deixarem de ser “criancinhas” facilmente conduzidas. Os verbos no v. 15 determinam o desafio: seguir (a verdade) e crescer (em Cristo).
Essa estrutura é, ao mesmo tempo, didática no conteúdo e na forma. Ela conclama à unidade através da argumentação e também oferece as fontes para a busca da unidade.
A primeira fonte para o encontro da unidade é o conceito de vocação. O desafio é andar de acordo com a vocação (v. 1 e 4). A comunidade de fé é vocacionada a ser um corpo (v. 4). Essa estrutura emoldurada pela vocação tem no centro um catálogo de virtudes que seguem essa vocação: humildade, mansidão, longanimidade, apoio mútuo em amor, unidade e paz. A comunidade, um corpo a partir de sua vocação, é desafiada a cultivar as virtudes que preservam a unidade.
A segunda fonte é Cristo. A fé em Cristo está vinculada ao batismo (v. 5) e proporciona graça (v. 7). No centro, uma vez mais, aparece o desafi o à unidade. Agora, a unidade é gerada pela presença do Pai. Há um só Pai, um só Senhor e um só batismo. Deste modo, a comunidade é uma só. Não pode haver divisões. A frase um só Senhor, uma só fé, um só batismo é importante para o cristianismo primitivo. Ela aparece com variações nas cartas paulinas e deve ter sido uma fórmula batismal, ou seja, integrante da liturgia do batismo. Assim, nessa segunda fonte encontramos a memória do ensinamento cristão primitivo como caminho para refl etir sobre a unidade.
A terceira fonte é a Escritura. A reflexão nas escrituras da época (O Antigo Testamento – Pentateuco e Torá – e o livro dos Salmos), no caso de nosso texto, o Salmo 68.18. Possivelmente a partir de comentários rabínicos sobre o Salmo, encontramos Cristo (v. 9-10) como paradigma de interpretação. O Cristo que subiu às alturas, desceu às regiões inferiores e, por isso, pleno de todas as coisas, concedeu dons aos seres humanos. Assim, os dons são dádivas de Cristo para o aperfeiçoamento do corpo (v. 12) visando à unidade (v. 13).
A reflexão termina com uma admoestação para que a comunidade não seja formada por meninos (conduzidos por forças externas – v. 14) e com o desafio para o crescimento em amor. A figura do corpo reaparece nesses dois últimos versículos (15 e 16) como uma síntese do que foi ensinado.
Esse final, em estilo de síntese e, ao mesmo tempo, ápice da argumentação, mostra o centro do problema que ameaça a unidade: as funções de liderança na igreja. Qual o papel dos apóstolos, profetas, evangelistas e mestres (v. 11)? A resposta é o serviço à comunidade para promover a unidade e a edifi cação do corpo de Cristo.
Um dos grandes desafios do cristianismo para a vida em comunidade é a manutenção da unidade. Isso porque a comunidade não pode se estruturar em cargos de poder. O próprio Cristo se anunciou como servo. Porém, com o crescimento e a expansão da fé cristã no primeiro século e a morte dos primeiros líderes que andaram com Jesus, novas lideranças surgem, e com elas surge o conflito em torno do seu papel como líder. Apóstolos, profetas, mestres, evangelistas começam a entrar em choque; surge o questionamento do alcance de autoridade de cada um desses. Nessa hora, é preciso retornar às origens. A comunidade é desafiada a refletir sobre sua origem e sobre os princípios da fé. Esse é o desafio enfrentado pela epístola aos Efésios: compilar os ensinamentos paulinos para orientar a fé da comunidade nesse momento crítico de surgimento de novas lideranças.
O caminho da reflexão é relembrar os pilares da fé cristã e as fontes que alimentam os mesmos. As escrituras, a vocação e o próprio Cristo são os pilares que sustentam a fé cristã. A partir deles, a reflexão sobre a unidade e sobre o papel das lideranças deve ser realizada.
Uma primeira reflexão é que a comunidade cristã é vocacionada à unidade, exemplificada metaforicamente como um corpo. Cada parte do corpo tem sua função específica e complementar. Essas funções são exemplificadas em um catálogo de virtudes que marcam a comunidade orientada pelo Espírito.
Uma segunda reflexão é que a fé em Cristo, sinalizada no batismo, nos liga ao Pai. A fórmula batismal aponta para o Pai como centro da unidade trinitária (Espírito – Pai – Cristo). A unidade da Trindade é também desafio para a unidade da comunidade, forjada no batismo.
Por fim, esse texto é marcado por uma reflexão trinitária primitiva; Cristo, que subiu aos céus e desceu às profundezas, é aquele que, conforme interpretado nas escrituras, concede dons aos seres humanos. Ou seja, os dons de Cristo são conferidos aos seres humanos para o serviço, para a unidade, para a edificação do corpo e para a manutenção da paz.
A unidade trinitária se desenvolve na vida comunitária a partir do uso dos dons, visando à edificação do corpo e no “esforço diligente” de, através das virtudes que marcam a vida cristã, “preservar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz”.
Nesse ponto, encontramos o contato com os demais textos que marcam o calendário litúrgico para essa data (Êx 16.2-4,9-15; Jo 6.24-35). Moisés enfrenta a murmuração do povo pela falta de pão (ou por só ter pão) e Jesus também critica ser seguido só pelo pão. Dois textos que mostram a quebra da unidade a partir dos interesses pessoais. Diante disso, o texto de João apresenta Jesus conclamando o povo a buscar o alimento que não perece: realizar as obras de Deus. Isso só é possível a partir de Cristo.
Esse desafio é muito presente para os tempos em que vivemos. Tempos em que os interesses pessoais se sobrepõem às necessidades comunitárias. Tempos em que as pessoas dão mais valor aos seus interesses do que a espaços de convivência e de exercício da fé e da cidadania. Tempos de conflito e de divisões. Tempos de preconceito e de exclusão. Nesse tempo, o desafio da unidade em Cristo, da vivência do vínculo da paz a partir do serviço, é uma prioridade.
Sugerimos usar imagens e situações atuais de violência, como fruto da intolerância, do egoísmo etc. Situações locais são ideais. Não faltam imagens da intolerância transformada em violência. Desde o cotidiano do trânsito até as guerras entre as nações, passando pela violência religiosa, violência doméstica, sistemas de exclusão. Em especial, destacamos as situações em que esses processos de violência, de exclusão, de crítica surgem para defender o interesse próprio ou de um grupo, como o povo de Deus no deserto reclamando da falta de pão e da falta de variedade, ou de multidões que seguiam Jesus por ele dar pão. Situações em que a convicção do seguimento ou o questionamento de uma liderança estão fundamentadas em alimentar o próprio desejo.
Sugerimos, na liturgia, o uso da “Oração pela unidade”, de autoria de Luiz Carlos Ramos.
“Senhor Jesus, é teu desejo que sejamos um, como tu és com o Pai, e por isso esse também é o nosso desejo.
A despeito de todas as forças contrárias, de todas as ameaças de dispersão, de toda pressão e repressão desintegradora…
Apesar de tanta maldade, de tanto egoísmo, de tanta intolerância…
Nós nos dispomos a fazer a tua vontade. E, no que depender de nós, nos comprometemos a construir a paz para toda a família humana.
Cumpre em nós a tua palavra, ó Cristo, de tal maneira que o mundo creia que tu nos enviaste em missão de paz e em comunhão fraterna. Amém.”
Rev. Luiz Carlos Ramos†
(Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, 2015)
Fonte: http://www.luizcarlosramos.net/oracao-pela-unidade-ii/
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).